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81.A PSICANÁLISE DO AMOR (2019) VOL.1 PT/2.(CONT.)
81.A PSICANÁLISE DO AMOR (2019) VOL.1 PT/2.(CONT.)

A PSICANÁLISE DO AMOR (2019) VOL.1 PT/2 (CONT.)

 

 

[13] AFETOS E ESTADOS DE DESEJO

 

Os resíduos dos dois tipos de experiências [de dor e de satisfação] que acabamos de examinar são os afetos e os estados de desejo. Estes têm em comum o fato de que ambos envolvem um aumento da tensão Q em y - produzido, no caso de um afeto, pela liberação súbita e, no de um desejo, por soma. Ambos os estados são da maior importância para a passagem [da quantidade] em y, pois deixam atrás dele motivações para isso, que se constituem no tipo compulsivo. O estado do desejo resulta numa atração positiva para o objeto desejado, ou mais precisamente, por sua imagem mnêmica; a experiência da dor leva à repulsa, à aversão por manter catexizada a imagem mnêmica da dor leva à repulsa, à aversão por manter catexizada a imagem mnêmica hostil. Eis aqui a atração de desejo primária e a defesa [repúdio] primária.

A atração de desejo pode ser facilmente explicada pelo pressuposto de que a catexia da imagem mnêmica agradável num estado de desejo supera amplamente em Q a catexia que ocorre quando há uma simples percepção, de modo que a facilitação particularmente boa passa do núcleo y para o neurônio correspondente do pallium.

É mais difícil explicar a defesa primária ou recalcamento - o fato de a imagem mnêmica hostil ser regularmente abandonada o mais depressa possível por sua catexia. Apesar disso, a explicação deve estar no fato de que as experiências primárias da dor foram eliminadas pela defesa reflexa. A aparição de outro objeto, em lugar do hostil, foi o sinal para o fato de que a experiência da dor estava terminando, e o sistema y, pensando biologicamente, procura reproduzir o estado de y que assinalou a cessação da dor. Com a expressão pensando biologicamente acabamos de introduzir uma nova base de explicação, que deve ter validade independente, ainda que não exclua, mas, pelo contrário, exija o recurso a princípios mecânicos (fatores quantitativos). No caso diante de nós, poderia perfeitamente ser o aumento de Q, invariavelmente produzido com a catexia de uma lembrança hostil, que força o acréscimo da atividade de descarga e, com isso, também a drenagem da lembrança.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

Os afetos e os estados de desejo envolvem um aumento de tensão. O estado de tensão resulta numa atração positiva; e a experiência da dor leva à repulsa, à aversão.

O aumento de tensão também se dá no brincar, no lúdico, que tem o papel de dramatizar a cena ou o comportamento do indivíduo com seu significado, sentido, conceito, contexto, funcionalidade e comportamento no ato da cena, representando com o brinquedo sua psique e funcionalidade, inclusive seu Episódio Verbal que pode vir a ser Completo ou Incompleto, depende da codificação e da decodificação das mensagens, se completas ou incompletas, em seus significados, sentidos e conceitos. Falamos da semântica ou da significação das palavras que torna-se, aqui, objeto da Psicanálise Mitológica, com a alfabetização e o aprendizado de novas línguas e de novas linguagens como por exemplo, a da Pulsão Auditiva de Mattanó de 1995 (a linguagem que foi criada, difamada e roubada e novamente difamada a partir de uma pergunta para uma docente do Curso de Psicologia da UEL em sala de aula).

 

MATTANÓ

(29/03/2018)

 

 

Mattanó aponta que os afetos e os estados de desejo envolvem um aumento de tensão. Desencadeia-se uma atração positiva com o estado de tensão, e repulsa e aversão com a experiência da dor, da mesma forma no Reino dos Céus os pequeninos, meninos, hão de ser os maiores no Reino dos Céus, disse Jesus. E quem receber, em meu nome, uma criança como esta, a mim é que recebe. Quem escandalizar um desses pequeninos que acreditam em mim, melhor seria para tal que lhe pendurassem ao pescoço uma pedra de moinho, e o lançassem ao fundo mar. O estado de tensão desencadeia uma atração positiva de Jesus para com as crianças, e a experiência da dor pode gerar repulsa e aversão em relação às crianças.

 

                MATTANÓ

            (06/01/2019)

 

 

 

[14] INTRODUÇÃO DO EGO

 

Com efeito, porém, com a hipótese da “atração de desejo” e da propensão ao recalcamento, já abordamos um estado de y que ainda não foi discutido. Pois esses dois processos indicam que em y se formou uma organização cuja presença interfere nas passagens [de quantidade] que, na primeira vez, ocorreram de determinada maneira [isto é, acompanhadas de satisfação ou dor]. Essa organização se chama “ego”. Pode ser facilmente descrito se considerarmos que a recepção sistematicamente repetida de Q endógena em certos neurônios (do núcleo) e o conseqüente efeito facilitador produzem um grupo de neurônios que é constantemente catexizado [em [1] e [2]-[3]] e que, desse modo, corresponde ao veículo da reserva requerido pela função secundária [em [1]]. O ego deve, portanto, ser definido como a totalidade das catexias y existentes em determinado momento, nas quais cumpre diferenciar um componente permanente e outro mutável [em [1], adiante]. É fácil ver que as facilitações entre os neurônios y fazem parte dos domínios do ego, já que representam possibilidades, se o ego for alterado, de determinar a sua extensão nos momentos seguintes.

Embora esse ego deva esforçar-se por se livrar de suas catexias pelo método da satisfação, isso não pode acontecer de nenhuma outra maneira senão por ele influenciar a repetição das experiências de dor e dos afetos, e pelo método seguinte, que é geralmente descrito como inibição.

Uma Q que irrompe em um neurônio a partir de um ponto qualquer continuará em direção à barreira de contacto que estiver mais facilitada, estabelecendo uma corrente nessa direção. Explicando com mais precisão: a corrente de Q se dividirá na direção das diversas barreiras de contacto na proporção inversa de suas resistências; e, em tal caso, quando uma fração se choca contra uma barreira de contacto cuja resistência é inferior a ela [barreira de contacto], não passará praticamente nada por esse ponto. Essa relação pode facilmente conduzir-se para cada Q no neurônio, pois poderão surgir frações que sejam superiores também ao limiar de outras barreiras de contacto. Assim, o curso adotado dependerá das Q e da relação das facilitações. Já conhecemos, porém, o terceiro fator poderoso [Ver em [1]-[2]]. Quando um neurônio adjacente é simultaneamente catexizado, isso atua como uma facilitação temporária da barreira de contacto existente entre os dois, modificando o curso [da corrente], que, de outro modo, teria tomado a direção de uma barreira de contacto facilitada. Assim, pois, uma catexia colateral atua como uma inibição do curso da Q. Imaginemos o ego como uma rede de neurônios catexizados e bem facilitados entre si, da seguinte maneira: [ver Fig. 14].

 

Fig. 14

 

Suponhamos que uma Q penetrasse no neurônio a vindo do exterior (), então, se não fosse influenciada, ela passaria para o neurônio b; mas ela é tão influenciada pela catexia colateral - que libera apenas uma fração para b, e talvez nem sequer chegue de todo a b. Logo, se o ego existe, ele deve inibir os processos psíquicos primários.

Uma inibição desse tipo representa, porém, uma vantagem decisiva para y. Suponhamos que a seja uma imagem mnêmica hostil e b, um neurônio-chave para o desprazer [Ver em [1]]. Então, se  é despertado, o desprazer primariamente será liberado, o que talvez fosse inútil e que o é, de qualquer modo, [quando ele é liberado] em sua totalidade. Com a ação inibitória de , a liberação de desprazer ficará muito reduzida e o sistema nervoso será poupado, sem qualquer outro dano, do desenvolvimento e da descarga de Q. Agora se torna fácil imaginar como o ego, com o auxílio de um mecanismo que atrai sua atenção para a nova catexia iminente da imagem mnêmica hostil, pode conseguir inibir a passagem [da quantidade] de uma imagem mnêmica para a liberação do desprazer por meio de uma copiosa catexia colateral que pode ser reforçada de acordo com as necessidades. E, realmente, se admitirmos que a liberação inicial de desprazer é captada da Q pelo próprio ego, teremos nessa mesma [liberação] a fonte do dispêndio que a catexia colateral inibidora exige do ego. Nesse caso, quanto mais intenso for o desprazer, mais forte será a defesa primária.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

O ego deve ser definido como a totalidade das catexias existentes em determinado momento, nas quais cumpre diferenciar um componente permanente e outro mutável. Assim o comportamento de ouvir eventos obscenos no lugar da realidade ou do falado pode ser definido como uma consequência dos componentes permanentes e mutáveis das catexias do ego.

 

MATTANÓ

(30/03/2018)

 

 

Mattanó aponta que o ego compreende a totalidade das catexias existentes em determinado momento, com um componente permanente e outro mutável que geram modificações no comportamento e na percepção dos indivíduos, da mesma forma tudo o que ligamos na terra, será ligado no céu. E tudo o que desligardes na terra, será desligado no céu. Jesus disse que ¨se dois de vós na terra se unirem entre si para pedirem qualquer coisa que seja, meu Pai, que está nos céus, lhes dará; porque, onde se acham dois ou três reunidos em meu nome, aí estou entre eles¨. O ego é quem liga às coisas da terra às coisas do céu, modificando o comportamento e a percepção dos indivíduos e suas catexias.

 

MATTANÓ

(06/01/2019)

 

 

 

 

 

 

[15] OS PROCESSOS PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO EM Y.

 

A conclusão do que até aqui se desenvolveu é que o ego em y, que consideramos no que tange às suas tendências, como a totalidade do sistema nervoso, pode, quando os processos não são influenciados em y, cair num estado de inermidade e sofrer dano em duas situações.

Quer dizer, isto pode ocorrer em primeiro lugar quando ele, encontrando-se em estado de desejo, catexiza de novo a lembrança de um objeto e então põe em ação o processo de descarga; nesse caso, deixa de ocorrer a satisfação, porque o objeto não é real, mas está presente apenas como idéia imaginária. Para começar,  é incapaz de estabelecer essa distinção, já que só pode funcionar como base da seqüência de estados análogos entre neurônios. Assim, necessita de um critério proveniente de outra parte para distinguir entre percepção e idéia.

Por outro lado, y precisa de uma indicação que atraia sua atenção para a recatexização de uma imagem mnêmica hostil e que lhe permita evitar, por meio de catexias colaterais, a conseqüente liberação de desprazer. Se y conseguir efetuar essa inibição a tempo, a liberação de desprazer e ao mesmo tempo as defesas serão mínimas; caso contrário, ocorrerá um desprazer imenso e uma defesa primária excessiva.

Ambas, a catexia de desejo e a liberação de desprazer, quando a lembrança em questão é de novo catexizada, podem ser biologicamente nocivas. É o que acontece na catexia de desejo sempre que ela ultrapassa determinada quantidade e, desse modo, age como um estímulo à descarga; e é o que acontece também na liberação de desprazer, pelo menos quando a catexia da imagem mnêmica hostil emana (por associação) do próprio y, e não do mundo externo. Aqui, mais uma vez, trata-se, portanto, de encontrar uma indicação para distinguir entre percepção e lembrança (idéia).

 

Provavelmente, são neurônios w que fornecem essa indicação: a indicação da realidade. No caso de cada percepção externa, produz-se em w [Ver em [1]] uma excitação qualitativa que, na primeira situação, porém, não tem nenhuma importância para y. Deve-se acrescentar que a excitação de w conduz a uma descarga de w e que desta, como de qualquer descarga [em [1]], chega a informação a y. Desse modo, a informação da descarga proveniente de w constitui a indicação da qualidade ou da realidade para y.

Quando o objeto desejado é abundantemente catexizado, a ponto de ser ativado de maneira alucinatória, também se produz a mesma indicação de descarga ou de realidade que no caso da percepção externa. Nessa situação o critério falha. Mas quando a catexia do desejo ocorre sujeita a uma inibição, como pode acontecer quando existe um ego catexizado, pode ser imaginada uma instância quantitativa em que a catexia de desejo, não sendo suficientemente intensa, não produza nenhuma indicação de qualidade, ao passo que a percepção externa seria capaz de produzi-la. Nessa instância, portanto, o critério manteria seu valor. Porque a diferença consiste em que a indicação de qualidade, quando proveniente do exterior, aparece sempre, seja qual for a intensidade da catexia, ao passo que, quando proveniente de y, ela só se manifesta em presença de intensidades elevadas. É, por conseguinte, a inibição pelo ego que possibilita um critério de diferenciação entre a percepção e a lembrança. A experiência biológica ensinará, então, a não iniciar a descarga antes da chegada da indicação da realidade e, tendo essa finalidade em vista, a não levar a catexia das lembranças desejadas além de certa quantidade.

Por outro lado, a excitação dos neurônios w também pode servir para proteger o sistema y no segundo dos casos mencionados: isto é, atraindo a atenção de y para o fato da presença ou ausência de uma percepção. Com essa finalidade, deve-se presumir que os neurônios w estão originalmente vinculados de forma anatômica com as vias de condução procedentes dos diversos órgãos sensoriais e que [os neurônios w] reorientam sua descarga para os aparelhos motores pertencentes a esses mesmos órgãos sensoriais. Em tal caso, a informação desta última descarga (a informação da atenção reflexa) atuará para y como um sinal biológico de que ele deve enviar uma quantidade de catexias nessas mesmas direções.

 

Resumindo, pois: quando há inibição por um ego catexizado, as indicações de descarga w tornam-se, em termos muito gerais, indicações da realidade, que y aprende biologicamente a aproveitar. Quando o ego, no momento em que surge essa indicação da realidade, se encontra em estado de tensão e desejo, ela permite que se siga uma descarga no sentido da ação específica [Ver em [1]]. Quando a indicação da realidade coincide com um aumento do desprazer, y produzirá então, por meio de uma catexia colateral de considerável grandeza, uma defesa de magnitude normal situada no lugar indicado. Se não ocorrer nenhuma dessas duas circunstâncias, a catexia poderá prosseguir sem nenhum impedimento, de acordo com as condições em que se encontrem as facilitações. A catexia de desejo, levada ao ponto de alucinação, [e] a completa produção do desprazer, que envolve o dispêndio total da defesa, são por nós designadas como processos psíquicos primários; em contrapartida, os processos que só se tornam possíveis mediante uma boa catexia do ego, e que representam versões atenuadas dos referidos processos primários, são descritos como processos psíquicos secundários. Ver-se-á que a precondição necessária destes últimos é a utilização correta das indicações da realidade, que só se torna possível quando existe inibição por parte do ego.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

A catexia do desejo, levada ao ponto de alucinação, e a completa produção de desprazer, que envolve o dispêndio total da defesa, são os processos psíquicos primários; e as versões atenuadas dos referidos processos psíquicos primários, são os processos psíquicos secundários que tem por precondição necessária a utilização correta da realidade, que só se torna possível quando existe inibição por parte do ego.

Se nos voltarmos para os processos psíquicos primários em relação à natureza humana descobriremos que sua natureza é voltada para a dualidade e para o conflito amor/ódio, vida/morte, Deus/demônio, paz/guerra, trabalho/descanso, etc., e não para outros fenômenos como a criminalidade; a criminalidade só se torna possível quando buscamos os processos psíquicos secundários, pois não nascemos criminosos, mas com a dualidade e os conflitos, com conflitos autoclíticos permanentes. Estes conflitos autoclíticos permanentes são primeiro primários e só depois, secundários.

Estes conflitos autoclíticos primários permanentes norteiam o caminho da moral que se torna, a partir dos secundários, Justiça e criminalidade como, por exemplo, a corrupção no Brasil, parece ser o caminho da desordem e da violência, da imoralidade, do abuso e da exploração sexual, do abuso e da violência física, telepática e mental, exemplos máximos da imoralidade e das injustiças no Brasil e no mundo.

 

MATTANÓ

(31/03/2018)

 

 

Mattanó aponta que os processos primários geram a dualidade e os processos secundários geram os comportamentos e os problemas ou eventos sociais, os dois processos geram os conflitos autoclíticos permanentes, que são primeiro, primários e só depois, secundários, da mesma forma Jesus fala desses conflitos autoclíticos permanentes primários e secundários quando ensina sobre o servo que suplicou perdão ao seu senhor e lhe foi concedido até conforme um acordo, mas esse mesmo servo diante de um de seus colegas que lhe devia e que também lhe suplicou perdão, mas seu amigo lhe negou o perdão, fenômeno que desencadeou a ira do seu senhor que lhe entregou em mãos de algozes, até pagar a dívida toda. Jesus disse ¨ assim também vos há de tratar meu Pai celeste, se de coração não vos perdoastes mutuamente [cada um a seu irmão]. Ou seja, a dualidade amor/ódio do servo lhe gerou seu sofrimento em mãos de algozes até pagar a dívida toda (através de comportamentos e eventos sociais).

 

MATTANÓ

(06/01/2019)

 

 

 

 

[16] COGNIÇÃO E PENSAMENTO REPRODUTIVO

 

Formulamos a hipótese de que, durante o processo de desejar, a inibição por parte do ego produz uma catexia moderada do objeto desejado, que permite reconhecê-lo como não-real; e agora podemos prosseguir com a análise desse processo. Várias possibilidades podem ocorrer. No primeiro caso: simultaneamente à catexia de desejo da imagem mnêmica, acha-se presente a percepção dela. Se assim é, as duas catexias coincidem - o que não pode ser biologicamente aproveitado -, mas, além disso, a indicação da realidade provém de  após o que, como mostra a experiência, a descarga é eficaz [Ver em [1]]. Esse é um caso fácil de abordar. No segundo caso: a catexia de desejo está presente e, ao lado dela, uma percepção que não corresponde a ela inteiramente, mas apenas em parte. É chegado o momento de lembrar que as catexias perceptivas nunca são catexias de neurônios isolados, mas sempre de complexos. Até agora desconsideramos essa característica; chegou o momento de levá-la em conta. Suponhamos que, em termos bastante gerais, a catexia de desejo se relaciona com o neurônio a + o neurônio b, e a catexia perceptiva, com os neurônios a + c. Visto que este será o caso mais comum, mais comum que o da identidade, ele merece uma consideração mais precisa. Também aqui a experiência biológica ensina [Ver em [1]] que não é seguro iniciar a descarga se as indicações da realidade não confirmarem a totalidade do complexo, mas só uma parte dele. Agora, porém, encontra-se um modo de aperfeiçoar a semelhança, convertendo-a em identidade. Comparando o complexo perceptual com outros complexos congêneres, pode-se decompô-lo em dois componentes: o peimri, que geralmente se mantém constante, é o neurônio a, e o segundo, habitualmente variável, é o neurônio b. A linguagem aplicará mais tarde o termo juízo a essa análise e descobrirá a semelhança que de fato existe [por um lado] entre o núcleo do ego e o componente perceptual constante e [por outro] entre as catexias cambiantes no pallium [em [1] e [2]] e a componente inconstante: esta [a linguagem] chamará o neurônio a de a coisa, e o neurônio b, de sua atividade ou atributo - em suma, de seu predicado. [Cf. em [1]-[2], [3] e [4]].

Assim, julgar é um processo  que só se torna possível graças à inibição pelo ego e que é evocado pela dessemelhança entre a catexia de desejo de uma lembrança e a catexia perceptual que lhe seja semelhante. Daí se deduz que a coincidência entre essas duas catexias se converte num sinal biológico para pôr fim à atividade do pensamento e permitir que se inicie a descarga. Quando as duas catexias não coincidem, surge o ímpeto para a atividade do pensamento, que voltará a ser interrompida pela coincidência entre ambas.

 

O processo pode ser mais bem analisado. Se o neurônio a coincide [nas duas catexias], mas o neurônio c é percebido em lugar do neurônio b, a atividade do ego segue as conexões desse neurônio c e, mediante uma corrente de Q ao longo dessas conexões, faz surgir novas catexias até que se encontre acesso para o neurônio b desaparecido. Via de regra, aparece a imagem de um movimento [uma imagem motora], que é intercalada entre os neurônios c e b; e quando essa imagem é ativada de novo pela realização efetiva de um movimento, ficam estabelecidas a percepção do neurônio b e, ao mesmo tempo, a identidade visada. Suponhamos, por exemplo, que uma imagem mnêmica desejada [pela criança] seja a do seio materno com o mamilo, vistos de frente, e que a primeira percepção obtida seja uma visão lateral do mesmo objeto, sem o mamilo. Na memória da criança há uma experiência, casualmente adquirida no ato de mamar, segundo a qual a imagem frontal se converte em lateral mediante determinado movimento da cabeça. A imagem lateral agora percebida conduz [à imagem do] movimento da cabeça; um teste experimental mostra que o equivalente desse movimento deve ser executado para se obter a percepção da imagem frontal.

Por enquanto, ainda não há muito julgamento nisso; mas trata-se de um exemplo da possibilidade de chegar, pela reprodução das catexias, a uma ação que já é uma das ramificações acidentais da ação específica.

Não resta dúvida de que o elemento subjacente a essa migração ao longo dos neurônios facilitados é a Q proveniente do ego catexizado, e de que essa migração não é regida pela facilitação, e sim por um objetivo. Que objetivo é esse e como pode ser alcançado?

O objetivo é voltar ao neurônio b desaparecido e liberar a sensação de identidade - isto é, o momento em que só é catexizado o neurônio b e em que a catexia migratória desemboca no neurônio b. [Cf. em [1] e [2].] Ele é alcançado mediante um deslocamento experimental de Q ao longo de cada via possível, e é claro que, para tal propósito, é necessário um dispêndio ora maior, ora menor, de catexia colateral, conforme se possa aproveitar as facilitações presentes ou se uma precisa trabalhar contra elas. A luta entre as facilitações estabelecidas e as catexias mutáveis caracteriza o processo secundário do pensamento reprodutivo, em contraste com a seqüência primária de associações.

O que dirige o curso dessa migração? O fato de que a idéia desejante da memória [isto é, do neurônio b] se mantém catexizada durante o tempo em que a cadeia associativa é percorrida a partir do neurônio c. Como já sabemos [em [1]], graças a essa catexização do neurônio b, todas as suas conexões possíveis ficam, por sua vez, mais facilitadas e acessíveis.

No curso dessa migração pode acontecer que a Q esbarre numa lembrança relacionada com uma experiência de dor, provocando assim uma liberação de desprazer. Visto ser esse um sinal seguro de que o neurônio b não pode ser atingido por essa via, a corrente se desvia imediatamente da catexia em questão. Apesar disso, as vias do desprazer conservam o seu grande valor como orientadoras da corrente de reprodução.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

Durante o processo de desejar o ego pode reconhecer o objeto desejado como não-real, na percepção dela, da imagem mnêmica; como o ego pode catexizar o objeto porém a percepção pode não corresponder a ela inteiramente, mas apenas em parte.

Não é seguro iniciar a descarga se as indicações da realidade não confirmarem a realidade do complexo, mas só uma parte dele. Assim, julgar é um processo que só se torna possível graças a inibição pelo ego e que é evocado pela dessemelhança entre a catexia do desejo de uma lembrança e a catexia perceptual que lhe seja semelhante.

Na telepatia e na lavagem cerebral o ego fica confuso e reconhece o objeto desejado como não-real, até mesmo na imagem mnêmica e na sua percepção. Deste modo não é seguro iniciar a descarga se as indicações da realidade não confirmarem a realidade do complexo, normalmente associado a telepatia e a lavagem cerebral, levando o indivíduo a um contínuo e perpétuo estado crítico e de avaliação, autoclítico e de julgamento, um processo que só se torna possível graças a inibição pelo ego que é evocado pela dessemelhança entre a catexia do desejo de uma lembrança e a catexia perceptual que lhe seja semelhante no caso da telepatia e da lavagem cerebral, causando confusão mental e desorientação.

 

 

MATTANÓ

(31/03/2018)

 

 

Mattanó aponta que durante o processo de desejar o ego pode reconhecer o objeto como não-real, a descarga da catexia depende de sua segurança que é assegurada pelo reconhecimento do objeto e pela semelhança do objeto, a dessemelhança causa confusão mental e desorientação, da mesma forma o processo de desejar um amor ou um casamento pode reconhecer no outro ou na outra um objeto como não-real que pela sua dessemelhança causa confusão mental e desorientação. A descarga da catexia do matrimônio é assegurada pelo reconhecimento do objeto e pela sua semelhança, que gera alegria, amor, perdão, reconciliação e orientação.

 

MATTANÓ

(06/01/2019)

 

 

 

 

 

[17] MEMÓRIA E JUÍZO

 

O pensamento reprodutivo tem, pois, um objetivo prático e um fim biologicamente estabelecido - a saber, conduzir de volta para a catexia do neurônio desaparecido uma Q que está migrando da percepção supérflua [indesejada]. Com isso, obtém-se a identidade e o direito à descarga, se, em adição, a indicação da realidade provier do neurônio b. Mas o processo também pode tornar-se independente deste último objetivo e lutar unicamente pela identidade. Se é assim, temos diante de nós um ato puro de pensamento, embora este possa em qualquer caso, mais tarde, ser colocado em prática. Aqui, ademais, o ego catexizado se comporta de maneira exatamente igual.

Chegamos agora a uma terceira possibilidade que pode surgir no estado de desejo: é quando há uma catexia de desejo e emerge uma percepção que não coincide, de modo algum, com a imagem mnêmica desejada (mnem. +). Surge então um interesse de conhecer essa imagem perceptiva, de maneira que talvez se consiga encontrar, afinal, uma via entre ela e a mnem. + . É de se supor que, com essa finalidade em vista, a imagem perceptiva seja novamente hipercatexizada a partir do ego, como aconteceu no caso anterior com apenas uma parte componente dela, o neurônio c. Se a imagem perceptiva não for absolutamente nova, ela agora recordará e reviverá uma imagem perceptiva mnêmica com a qual coincida pelo menos em parte. O processo de pensamento prévio é agora repetido, em conexão com essa imagem mnêmica, embora, até certo ponto, sem o objetivo que foi anteriormente proporcionando pela idéia de desejo catexizada [Cf. em [1]].

Na medida em que coincidem, as catexias não dão oportunidade à atividade de pensamento. Por outro lado, as partes discrepantes “despertam interesse” e podem dar lugar à atividade do pensamento de duas maneiras. Ou a corrente se dirigirá para as lembranças despertadas e porá em ação uma atividade mnêmica sem objetivo, que assim será dirigida pelas diferenças, e não pelas semelhanças, ou [a corrente] permanecerá nos componentes [da percepção] recém-surgidos e em tal caso exibe uma atividade judicativa igualmente sem objetivo. [1]

Suponhamos que o objeto que compõe a percepção se pareça com o sujeito - um outro ser humano. Nesse caso, o interesse teórico [que lhe é dedicado] também se explica pelo fato de que um objeto semelhante foi, ao mesmo tempo, o primeiro objeto hostil, além de sua única força auxiliar. Por esse motivo, é em relação a seus semelhantes que o ser humano aprende a conhecer. Os complexos perceptivos emanados desse ser semelhante serão então, em parte novos e incomparáveis - como, por exemplo, seus traços, na esfera visual; mas outras percepções visuais - as do movimento das mãos, por exemplo - coincidirão no sujeito com a lembrança de impressões visuais muito semelhantes, emanadas de seu próprio corpo, [lembranças] que estão associadas a lembranças de movimentos experimentados por ele mesmo. Outras percepções do objeto - se, por exemplo, ele der um grito - também despertarão a lembrança do próprio grito [do sujeito] e, ao mesmo tempo, de suas próprias experiências de dor. Desse modo, o complexo do ser humano semelhante se divide em dois componentes, dos quais um produz uma impressão por sua estrutura constante e permanece unido como uma coisa, enquanto o outro pode ser compreendido por meio da atividade de memória - isto é, pode ser rastreado até as informações sobre o próprio corpo [do sujeito]. Essa dissecação de um complexo perceptivo é descrita como o conhecimento dele; envolve um juízo e chega a seu término uma vez atingido este último objetivo. Como se verá, o juízo não é uma função primária, mas pressupõe a catexia das porções [da percepção] díspares [não comparáveis] a partir do ego; no primeiro caso, [o juízo] não tem nenhuma finalidade prática e, ao que parece, durante o processo judicativo, a catexia das porções díspares é descarregada, pois isso explicaria por que as atividades, os “predicados” [em [1]] são separados do complexo do sujeito por uma via relativamente frouxa. [1]

A partir daqui seria possível penetrar a fundo na análise do ato judicativo; mas isso nos desviaria de nosso tema. Contentemo-nos, pois, em deixar bem estabelecido que é o interesse primitivo em estabelecer a situação de satisfação que leva, num caso, à consideração reprodutiva e, no outro, ao juízo, como um método para ir da situação perceptiva dada na realidade à situação que é desejada. Para tanto, o requisito indispensável continua sendo o de que os processos não sigam seu curso sem serem inibidos, e sim em conjunto com um ego ativo. Com isso ficaria demonstrado o sentido eminentemente prático de toda atividade de pensamento.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

Quando no estado de desejo, há uma catexia de desejo e emerge uma percepção que não coincide, de modo algum, com a imagem mnêmica desejada, surge então um interesse de conhecer essa imagem perceptiva. Se a imagem perceptiva não for absolutamente nova, ela agora recordará e reviverá uma imagem perceptiva mnêmica com a qual coincidia em parte. Este interesse primitivo em estabelecer a situação de satisfação leva, à consideração reprodutiva, como, ao juízo, método para ir da situação perceptiva dada na realidade à situação que é desejada.

Por esse motivo, é em relação a seus semelhantes que o ser humano aprende a conhecer. Os complexos perceptivos emanados desse ser semelhante serão então, em parte novos e incomparáveis - como, por exemplo, seus traços, na esfera visual; mas outras percepções visuais - as do movimento das mãos, por exemplo - coincidirão no sujeito com a lembrança de impressões visuais muito semelhantes, emanadas de seu próprio corpo, [lembranças] que estão associadas a lembranças de movimentos experimentados por ele mesmo. Outras percepções do objeto - se, por exemplo, ele der um grito - também despertarão a lembrança do próprio grito [do sujeito] e, ao mesmo tempo, de suas próprias experiências de dor. Desse modo, o complexo do ser humano semelhante se divide em dois componentes, dos quais um produz uma impressão por sua estrutura constante e permanece unido como uma coisa, enquanto o outro pode ser compreendido por meio da atividade de memória - isto é, pode ser rastreado até as informações sobre o próprio corpo [do sujeito]. Essa dissecação de um complexo perceptivo é descrita como o conhecimento dele; envolve um juízo e chega a seu término uma vez atingido este último objetivo. Este interesse primitivo em estabelecer a situação de satisfação leva, à consideração reprodutiva.

 

MATTANÓ

(02/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que quando no estado de desejo, há uma catexia de desejo e emerge uma percepção que não coincide, de modo algum, com a imagem mnêmica desejada, surge então um interesse de conhecer essa imagem perceptiva. Desse modo, o complexo do ser humano semelhante, isto é, como o ser humano começa a conhecer os seus semelhantes, se divide em dois componentes, dos quais um produz uma impressão por sua estrutura constante e permanece unido como uma coisa, enquanto o outro pode ser compreendido por meio da atividade de memória - isto é, pode ser rastreado até as informações sobre o próprio corpo [do sujeito]. Essa dissecação de um complexo perceptivo é descrita como o conhecimento dele; envolve um juízo e chega a seu término uma vez atingido este último objetivo. Este interesse primitivo em estabelecer a situação de satisfação leva, à consideração reprodutiva. Da mesma forma, Jesus ensina a reconhecer as crianças como filhas e membros do Reino dos Céus, ¨porque o Reino dos Céus pertence aos que se assemelham a elas¨ disse Jesus para seus discípulos que as repreendiam. Ou seja, aprender a reconhecer o seu semelhante é como aprender a reconhecer as crianças e o Reino dos Céus, um se assemelha ao outro.

 

MATTANÓ

(07/01/2019)

 

 

 

 

 

[18] PENSAMENTO E REALIDADE

 

Assim, o objetivo e o fim de todos os processos de pensamento é o estabelecimento de um estado de identidade, a transmissão de uma catexia Q [sic], emanada do exterior, a um neurônio catexizado a partir do ego. O pensamento cognitivo ou judicativo procura uma identidade com uma catexia corporal, ao passo que o pensamento reprodutivo procura uma identidade com uma catexia psíquica do próprio sujeito (com uma experiência do próprio sujeito). O pensamento judicativo opera antes do reprodutivo, fornecendo-lhe facilitações já prontas para a migração associativa posterior. Quando uma vez concluído o ato de pensamento, a indicação da realidade chega à percepção, obtém-se então um juízo de realidade, uma crença, atingindo-se com isso o objetivo de toda essa atividade.

No que se refere ao juízo, cumpre ainda observar que sua base é, evidentemente, a presença de experiências corporais, sensações e imagens motoras de si próprio. Enquanto faltarem esses elementos, a porção variável [Cf. em [1]] do complexo perceptivo permanece não compreendida - isto é, poderá ser reproduzida, mas não apontará direção para novas vias de pensamento. Assim, por exemplo, e isso se tornará importante mais adiante [na Parte II], nenhuma experiência sexual produz qualquer efeito enquanto o sujeito ignora toda e qualquer sensação sexual - quer dizer, em geral, antes do início da puberdade.

O juízo primário parece pressupor um grau de influência menor por parte do ego catexizado do que os atos reprodutivos de pensamento. Neste [no juízo primário], trata-se de persistir numa associação que se deve a uma coincidência parcial [entre as catexias de desejo e perceptiva] - uma associação à qual não se aplica modificação alguma. E, efetivamente, também existem caso sem que o processo associativo do juízo é levado a cabo com [um montante] integral [de] quantidade. A percepção corresponderia a um objeto-núcleo + uma imagem motora. Enquanto alguém está percebendo a percepção, ele copia o próprio movimento - isto é, inerva-se tão intensamente a própria imagem motora despertada para coincidir [com a percepção] que o movimento vem a ser efetuado. Daí se pode falar em percepções que têm valor imitativo. Ou então a percepção desperta a imagem mnêmica de uma sensação de dor do próprio sujeito, de modo que sente o desprazer correspondente e se repete o movimento defensivo adequado. Eis aí o valor de simpatia de uma percepção.

Não resta dúvida de que esses dois casos nos apresentam o processo primário atuando no juízo, e podemos presumir que todo juízo secundário tenha surgido pela atenuação desses processos puramente associativos. Assim, o juízo, que mais tarde se converterá num meio de cognição de um objeto que talvez tenha importância prática, é originalmente um processo de associação entre catexias que chegam ao exterior e catexias oriundas do próprio corpo - uma identificação de informações ou catexias procedentes de f e de dentro. Talvez não esteja errado supor que ele [o juízo] representa, ao mesmo tempo, um método pelo qual as Qs procedentes de f podem ser transmitidas e descarregadas. O que chamamos coisas são resíduos que fogem de serem julgados.

O exemplo do julgamento nos fornece, pela primeira vez, indício da diferença em suas características quantitativas que é preciso descobrir entre o pensamento e o processo primário. É lícito supor que, durante o pensar, saia de y uma tênue corrente de inervação motora - mas, naturalmente, só se durante esse processo tiver sido inervado um neurônio motor ou um neurônio-chave [Ver em [1]]. Apesar disso, seria errôneo considerar essa descarga como o próprio processo de pensamento, do qual ela não passa de um efeito acessório e inintencional. O processo de pensamento consiste na catexia dos neurônios y, acompanhada por uma mudança, promovida pela catexia colateral do ego, naquilo que é imposto pelas facilitações. Do ponto de vista mecânico, é compreensível que, nesse caso, apenas uma parte da Q possa acompanhar as facilitações e que a magnitude dessa parte seja constantemente regulada pelas catexias. Mas é também evidente que, ao mesmo tempo, economiza-se com isso Q suficiente para fazer com que a reprodução como um todo seja proveitosa. Do contrário, toda a Q necessária para a descarga final seria gasta durante a sua passagem pelos pontos de saída motora. Assim, o processo secundário é uma repetição da passagem original [da quantidade] em , num nível mais baixo e com quantidades menores.

Aqui se poderia objetar: “Com Qs ainda menores do que as que normalmente correm pelos neurônios? Como é possível franquear a Qs tão pequenas as vias que, afinal, só são transitáveis por [Qs] maiores do que as que W recebe habitualmente?’’ A única resposta cabível é que isso deve ser uma conseqüência mecânica das catexias colaterais. Devemos concluir que as condições são tais que, quando há uma catexia colateral, pequenas Qs fluem por facilitações que comumente só seriam percorríveis por [Qs] grandes. A catexia colateral liga, por assim dizer, uma cota de Q que corre pelo neurônio.

Existe uma outra condição que o pensamento necessita satisfazer. Não deve realizar modificação essencial nas facilitações criadas pelos processos primários; caso contrário, efetivamente falsearia os traços da realidade. Quanto a essa condição, basta observar que a facilitação provavelmente é o resultado de uma única [passagem de] grande quantidade e que a catexia, por mais poderosa no momento, não deixa no entanto atrás de si qualquer efeito permanente comparável. As pequenas Qs que passam durante o pensamento não podem em geral prevalecer contra as facilitações.

Não resta dúvida, porém, de que o processo de pensamento deixa efetivamente atrás de si traços duradouros, uma vez que um segundo pensamento, um re-pensar, exige tão menor dispêndio [de energia] que o primeiro. Portanto, a fim de que a realidade não seja falseada, faz-se necessária a existência de traços especiais, signos dos processos de pensamento, que constituam uma memória - [de] - pensamento, que ainda não é possível delinear. Mais adiante, veremos de que maneira os traços dos processos - [de] - pensamento se diferenciam dos da realidade.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

O objetivo de todos os processos de pensamento é o estabelecimento de um estado de identidade, até mesmo o pensamento telepático e o da lavagem cerebral, pois retratam um estado onde a realidade está alterada, fugidia, confusa, desorientada, doentia, transtornada, ambos buscam uma catexia psíquica do próprio sujeito.

O pensamento cognitivo ou judicativo procura uma identidade com uma catexia corporal, enquanto que o pensamento reprodutivo procura uma identidade com uma catexia psíquica do próprio sujeito. O pensamento judicativo opera antes do reprodutivo. Quando concluído o ato de pensamento, a indicação de realidade chega à percepção, obtêm-se então um juízo de realidade, uma crença, o objetivo de toda essa atividade.

 

MATTANÓ

(02/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que o objetivo que todo tipo de pensamento é a identidade. Quando concluído o ato de pensamento, a indicação de realidade chega à percepção, obtêm-se então um juízo de realidade, uma crença, o objetivo de toda essa atividade. Da mesma forma Jesus ensinou com palavras, milagres, obras e a própria vida, morte e ressurreição a seus discípulos terem pensamentos voltados para o Reino dos Céus, formando uma percepção, um juízo de realidade, uma crença e a própria identidade, o objetivo de todo tipo de pensamento.

 

MATTANÓ

(07/01/2019)

 

 

 

 

[19] PROCESSOS PRIMÁRIOS - O SONO E OS SONHOS

 

Surge agora o problema quanto a quais são os meios quantitativos que mantêm o processo primário y. No caso de uma experiência de dor, trata-se evidentemente da Q que irrompe do exterior; no caso de um afeto, é a Q endógena liberada por facilitação. No caso do processo secundário do pensamento reprodutivo, é óbvio que uma Q maior ou menor pode ser transferida do ego para o neurônio c [em [1]] e esta [Q] pode ser descrita como interesse do pensamento, sendo proporcional ao interesse afetivo, onde este houver surgido. A questão é apenas saber se existem processos y de índole primária para os quais seja suficiente a Q fornecida por f, ou se a catexia f de uma percepção é automaticamente suplementada por uma contribuição y (atenção), sendo somente esta que possibilita um processo y. [Ver em [1], adiante.] Essa questão terá que permanecer em aberto, embora talvez se possa determinar se ela é especialmente aplicável a [alguns] fatos psicológicos.

Um fato importante é que os processos de y, tais como os que foram biologicamente suprimidos no curso do desenvolvimento de y, se apresentam diariamente a nós durante o sono. Um segundo fato de igual importância é que os mecanismos patológicos revelados nas psiconeuroses pela análise mais cuidadosa guardam uma grande semelhança com os processos oníricos. Dessa comparação, que desenvolveremos mais adiante [em [1]], tiram-se as mais importantes conclusões. [1]

Antes, porém, é preciso introduzir o fato do sono em nossa teoria. A precondição essencial do sono é facilmente reconhecida na criança. As crianças dormem enquanto não são atormentadas por nenhuma necessidade [física] ou estímulo externo (pela fome ou pela sensação de frio causada pela urina). Elas adormecem depois de serem satisfeitas (no seio). Os adultos também adormecem com facilidade post coenam et coitum [depois da refeição e da cópula]. Por conseguinte, a precondição do sono é uma queda da carga endógena no núcleo de y, que torna supérflua a função secundária. No sono, o indivíduo se encontra no estado ideal de inércia, livre de sua reserva de Q [Ver em [1]].

 

Nos adultos, essa reserva se encontra acumulada no “ego” [em [1]]; podemos supor que é a descarga do ego que determina e caracteriza o sono. E aqui, como se percebe de imediato, temos a precondição dos processos psíquicos primários.

Não é certo que, nos adultos, o ego fique completamente livre de sua carga durante o sono. De qualquer forma, ele retira um enorme número de catexias, que, no entanto, ao despertar, são restabelecidas imediatamente e sem esforço. Isso não contradiz nenhuma de nossas pressuposições; mas chama atenção para o fato de que devemos presumir que, entre os neurônios adequadamente ligados, existem correntes que afetam o nível total [da catexia], tal como ocorre nos vasos comunicantes, embora o nível atingido em cada neurônio em particular precise apenas ser proporcional, e não necessariamente uniforme. [Cf. em [1].]

As peculiaridades do sono revelam uma série de coisas de que talvez não fosse possível suspeitar.

O sono se caracteriza por uma paralisia motora (paralisia da vontade). A vontade é a descarga da Q total de y [em [1]]. No sono, o tônus espinhal fica parcialmente relaxado; é provável que a descarga motora de f se manifeste no tônus; outras inervações persistem [durante o sono], junto com as fontes de sua excitação.

É sumamente interessante que o estado do sono comece e seja provocado pela oclusão dos órgãos sensoriais que podem ser obstruídos. Durante o sono não se produzem percepções, e nada perturba mais o sono do que a aparição de impressões sensoriais, do que a catexização de y a partir de f. Isso parece indicar que, durante a vigília, uma catexia constante, embora deslocável (atenção), dirige-se aos neurônios do pallium, que recebem percepções de f [em [1]], sendo, pois, bem possível que os processos primários de y sejam levados a cabo com o auxílio dessa contribuição de y [Cf. em [1]]. Resta saber se os próprios neurônios do pallium ou os neurônios nucleares adjacentes já se encontram pré-catexizados. Quando  retira essas catexias do pallium, as percepções incidem sobre os neurônios não-catexizados, sendo pequenas e talvez até incapazes de dar uma indicação de qualidade a partir de W [em. [1]]. Como já presumimos, ao se esvaziarem os neurônios , cessa também a inervação de uma descarga que aumenta a atenção. A explicação do enigma do hipnotismo também teria que ser abordada a partir desse ponto. A aparente inexcitabilidade dos órgãos sensoriais [durante a hipnose] deve basear-se nessa retirada da catexia da atenção.

Assim, por meio de um mecanismo automático que é correlato do mecanismo de atenção,  exclui as impressões de  enquanto está catexizado.

O mais estranho, porém, é que durante o sono ocorrem processos  - os sonhos, que têm muitas características que não são compreendidas.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

Processos que foram biologicamente suprimidos no curso do desenvolvimento se apresentam a nós durante o sono.

No sono o indivíduo se encontra em estado ideal de inércia, numa queda de energia endógena, que torna superfula a função secundária. Nos adultos, essa reserva se encontra acumulada no ego, é a descarga do ego que, talvez, produz o sono.

Na telepatia a função secundária se encontra em estado de inércia, pois ouvimos uma compulsão de ideias oriundas da função primária, donde o indivíduo se encontra em estado de primitividade, havendo menor ou nenhuma influência ou controle da consciência e do superego, produzindo, assim, um estado perpétuo de imoralidade libidinal, da comunhão e do exercício da força.

 

MATTANÓ

(02/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que no sono o indivíduo se encontra em estado ideal de inércia, numa queda de energia endógena, que torna superfula a função secundária. É a descarga do ego nos indivíduos adultos que, talvez, produz o sono. Da mesma forma se produz o caminho para aquele que quer deixar ¨casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou esposa, ou filhos, ou fazendas, por amor do meu nome, há de receber o cêntuplo, e possuirá a vida eterna¨ disse Jesus para seus discípulos. Nos dois casos há o abandono do ego, do autocontrole para que se prevaleçam as forças inconscientes e espirituais, milagrosas dos sonhos e de Jesus que como recompensa lhe dará um prêmio, a vida e/ou a vida eterna.

 

MATTANÓ

(07/01/2019)

 

 

 

 

[20] A ANÁLISE DOS SONHOS

 

Os sonhos apresentam todos os graus de transição até a vigília e a uma mistura com os processos  normais; no entanto, é fácil discernir o que constitui a natureza onírica propriamente dita.

(1) Os sonhos são desprovidos de descarga motora e, em geral, de elementos motores. Nos sonhos, ficamos paralisados [Ver em [1]].

A explicação mais fácil dessa característica é a falta de pré-catexia espinhal graças à cessação da descarga de . Quando os neurônios não estão catexizados [em [1]], a excitação motora não pode transpor as barreiras .  Em outros estados oníricos, o movimento não é excluído. Esta não é a característica mais essencial dos sonhos.

(2) Nos sonhos, as conexões são parcialmente absurdas, parcialmente imbecis, ou até mesmo sem sentido ou estranhamente loucas.

 

Esta última característica se explica pelo fato de que, nos sonhos, predomina a compulsão a associar, que sem dúvida também domina primordialmente a vida psíquica em geral. Ao que parece, duas catexias coexistentes precisam pôr-se em mútua conexão. Colhi alguns exemplos cômicos do predomínio dessa compulsão na vida de vigília. (Por exemplo, alguns homens das províncias que se encontravam no Parlamento francês durante um atentado [a bomba] chegaram à conclusão de que, cada vez que um deputado proferia um bom discurso, era aplaudido … a tiros.)

As outras duas características, que na realidade são idênticas, demonstram que uma parte das experiências psíquicas [do sonhador] fica esquecida. Com efeito, todas as experiências biológicas que comumente inibem o processo primário são esquecidas, o que se deve à falta de catexia do ego. A insensatez e a ilogicidade dos sonhos devem, provavelmente, ser atribuídas a essa mesma característica. Ao que parece, as catexias  que não foram retiradas estabilizam-se, em parte, em direção às facilitações mais próximas e, em parte, em direção às catexias vizinhas. Se a descarga do ego fosse completa, o sono teria que ser forçosamente livre dos sonhos.

(3) As idéias oníricas são de caráter alucinatório; despertam a consciência e recebem crédito.

Essa é a característica mais importante do sono. Manifesta-se de pronto quando há momentos alternantes de sono [e vigília]. A pessoa fecha os olhos e alucina; torna a abri-los e pensa com palavras. Existem várias explicações para o caráter alucinatório das catexias oníricas. Em primeiro lugar, pode-se supor que a corrente de f para a mobilidade [durante a vida desperta] impediria uma catexia retroativa dos neurônios  a partir de ,1 e que, quando essa corrente cessa, f é retroativamente catexizado, satisfazendo-se assim a precondição necessária para [a produção de] qualidade. O único argumento contrário é o de que os neurônios f, pelo fato de não estarem catexizados, deveriam estar protegidos contra a catexia proveniente de y, tal como ocorre com a motilidade. É típico do sono que inverta toda a situação nesse caso, que suspenda a descarga motora vinda de y e que torne possível a descarga retroativa até f. Seria tentador atribuir aqui o papel determinante à grande corrente de descarga que, na vida desperta, vai de  até a motilidade. Em segundo lugar, poderíamos invocar a natureza do processo primário e ressaltar que a lembrança primária de uma percepção é sempre uma alucinação e que somente a inibição por parte do ego nos ensinou a jamais catexizar uma imagem perceptiva de maneira tal que possa transferir [Q] retroativamente até f. [Ver em [1] e [1].] Para tornar essa hipótese mais aceitável, poder-se-ia acrescentar nesta conexão que, em todo caso, a condução de f- é mais fácil que a de y-; de modo que uma catexia y de um neurônio, mesmo quando ultrapassa em muito a catexia perceptiva do mesmo neurônio, ainda assim não precisa ser retroativamente conduzida. Essa explicação é também apoiada pela circunstância de que, nos sonhos, a vivacidade de alucinação é diretamente proporcional à importância - isto é, à catexia quantitativa - da idéia em questão. Isso indica que é Q que determina a alucinação. Quando uma percepção chega de  na vida desperta, a catexia de  (interesse) a torna sem dúvida mais nítida, mas não vívida; não altera sua característica quantitativa.

(4) O objetivo e o sentido dos sonhos (dos normais, pelo menos) podem ser estabelecidos com certeza. Eles [os sonhos] são realizações de desejos - isto é, processos primários que acompanham as experiências de satisfação [em [1]];e só não são reconhecidos como tal porque a liberação de prazer (a reprodução de traços das descargas de prazer [em [1]] neles é escassa, pois, em geral, eles seguem seu curso sem afeto (sem liberação motora). É muito fácil, porém, demonstrar que esta é sua verdadeira natureza. É justamente por essa razão que me sinto inclinado a deduzir que a catexia de desejo primária também foi de caráter alucinatório [em [1]].

(5) É digno de nota como a lembrança dos sonhos é fraca e o pouco dano que eles causam, comparados com outros processos primários. Mas isso se explica facilmente pelo fato de que os sonhos, na maior parte, seguem as velhas facilitações e por isso não provocam nenhuma mudança [nelas]; de que as experiências de  se mantêm afastadas deles e de que [os sonhos], devido à paralisia da motilidade, não deixam atrás de si nenhum vestígio de descarga.

(6) Além disso, é interessante que, nos sonhos, a consciência fornece a qualidade com a mesma facilidade que na vida desperta. Isso demonstra que a consciência não está presa ao ego, podendo agregar-se a qualquer processo y. Isso nos adverte, também, contra uma possível identificação dos processos primários com os processos inconscientes. Eis aqui dois conselhos para futuro!

Se, quando a lembrança de um sonho é preservada, indagarmos sobre o seu conteúdo, verificaremos que o significado dos sonhos como realizações de desejo se acha encoberto por uma série de processos : todos os quais são reencontrados nas neuroses, de cuja natureza patológica são característicos [Cf. em [1]].

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):
             
Nos sonhos predomina a compulsão a associar, que sem dúvida domina primordialmente a vida psíquica em geral, inclusive na telepatia e na lavagem cerebral.

Os sonhos são realizações de desejos, isto é, processos primários que acompanham as experiências de satisfação.

Quando a lembrança de um sonho é preservada, seu conteúdo nos mostra realizações de desejos que se acham encobertos por vários processos que também são encontrados nas neuroses, inclusive na telepatia e na lavagem cerebral.

 

MATTANÓ

(02/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que nos sonhos predomina a compulsão para associar como na vida psíquica, eles são realizações de desejos que se acham encobertos por vários processos como os sintomas dos transtornos mentais. Da mesma forma os operários na vinha estão associados por um mesmo contrato de trabalho, mas reclamam segundo suas queixas individuais se esquecendo que estão contratados segundo um contrato de trabalho e não segundo a carga horária e o esforço de cada um, mas pela coletividade em associação, onde os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos. [Porque são muitos os chamados e poucos os escolhidos].

 

MATTANÓ

(07/01/2019)

 

 

 

 

[21] A CONSCIÊNCIA DO SONHO

 

A consciência das idéias oníricas é, acima de tudo, descontínua. O que se torna consciente não é uma sucessão integral de associações, mas apenas alguns de seus pontos de parada isolados. Entre os quais existem vínculos intermediários inconscientes que podemos facilmente descobrir quando estamos acordados. Se investigarmos a causa dessas lacunas, eis o que descobriremos. Suponhamos que A [Fig. 15] seja uma idéia onírica que se tornou consciente e que conduz a B. Em vez de B, porém, aparece C na consciência simplesmente porque [ele] se encontra no caminho entre B e uma catexia D, simultaneamente presente. Desse modo, um desvio é produzido por uma catexia simultânea de outra espécie, que, a propósito, também não é consciente. Por esse motivo, então, C tomou o lugar de B, muito embora B se enquadre na conexão de pensamento, na realização do desejo.

 

Fig. 15

 

Por exemplo, [num de meus próprios sonhos,] R. dá uma injeção de propileno em A. Depois, com toda a nitidez, vejo diante de mim trimetilamina, alucinada como uma fórmula. Explicação: o pensamento simultaneamente presente [D] é a natureza sexual da doença de A. Entre esse pensamento e o propileno [A] existe uma associação com uma conversa a respeito da química sexual [B] que tive com W Fl[iess], durante a qual ele me chamou especialmente a atenção para a trimetilamina. Isso agora se torna consciente [C] devido à pressão de ambos os lados.

É muito estranho que não se tornem conscientes também o vínculo intermediário (química sexual) [B] e a idéia diversiva (a natureza sexual da doença), coisa que precisa ser explicada. Poder-se-ia supor que as catexias de B ou de D não são, por si sós, suficientemente intensas para fazer o percurso até uma alucinação regressiva, ao passo que C, catexizada de ambos os lados, poderia obter esse resultado. No exemplo escolhido, porém, D (a natureza sexual [da doença]) era certamente tão intenso quanto A (a injeção de propileno), e o derivado dessas duas, a fórmula química [C], era extremamente vívido. O enigma dos vínculos intermediários inconscientes se aplica também ao pensamento desperto, no qual eventos semelhantes são uma ocorrência cotidiana. Mas o que persiste como característica dos sonhos é a facilidade com que a Q de desloca [neles] e, com isso, a substituição de B por um C que lhe é quantitativamente superior.

Algo parecido ocorre, geralmente, com a realização dos desejos no sonho. O que acontece, por exemplo, não é que o desejo se torne consciente e sua realização seja, então, alucinada, mas apenas está ultima: o vínculo intermediário fica por inferir. Não resta a menor dúvida de que ele foi percorrido, sem que tivesse oportunidade de se desenvolver qualitativamente. É evidente, porém, que a catexia da idéia de desejo nunca poderá ser mais forte que o motivo que impele para ela. Desse modo, a passagem psíquica [da excitação] no sonho se efetua de acordo com Q; mas não é Q que decide o que se tornará consciente.

 

Dos processos oníricos talvez possamos inferir também que a consciência se manifesta durante a passagem de uma Q - quer dizer, que não é despertada por uma catexia constante. Deve-se ainda suspeitar de que uma corrente intensa de Q não é favorável à geração da consciência, uma vez que ela [a consciência] se vincula ao resultado do movimento - a uma persistência relativamente tranqüila, por assim dizer, da catexia. Por causa dessas precondições mutuamente contraditórias, torna-se difícil discernir o que realmente determina a consciência. Além disso, devemos levar em consideração as circunstâncias em que a consciência se manifesta no processo secundário.

A peculiaridade da consciência onírica, que acabamos de indicar, talvez se explique pelo fato de que o fluxo retroativo de uma corrente de Q até  é incompatível com uma corrente enérgica até as vias de associação . Os processos da consciência de  parecem estar subordinados a outras condições.

25 set 95

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

A consciência das ideias oníricas é, acima de tudo, descontínua, como também é descontínua a consciência das ideias na telepatia e na lavagem cerebral. Também existem lacunas que quando investigadas descobrimos os vínculos intermediários. Na telepatia também existem estes vínculos intermediários, já na lavagem cerebral eles, os vínculos intermediários oriundos das lacunas, podem não existir, pois o fluxo ou a continuidade de ideias e de pensamentos é fragmentada pela violência.

 

MATTANÓ
              (02/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que a consciência das ideias oníricas é descontínua, como também é descontínua a consciência das ideias na telepatia e na lavagem cerebral. Na lavagem cerebral os vínculos intermediários dos sonhos oriundos das lacunas, podem não existir, pois o fluxo ou a continuidade de ideias e de pensamentos é fragmentada pela violência. Da mesma forma Jesus disse para seus discípulos: ¨Eis que subimos a Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue aos grandes sacerdotes e escribas, que o condenarão à morte, e o entregarão aos pagãos, para ser escarnecido, flagelado e crucificado. Mas ele, ao terceiro dia, ressuscitará¨. Assim como a lavagem cerebral e a violência produzem lacunas nos vínculos intermediários dos sonhos o escárnio, o flagelo e a crucificação de Jesus produzem o sábado de Aleluia, um dia em que Deus fica em silêncio, produzindo uma santa lacuna nos vínculos do evangelho.

 

MATTANÓ

(07/01/2019)

 

 

 

 

 

 

APÊNDICE A: O USO DO CONCEITO DE REGRESSÃO, DE FREUD

 

O conceito de regressão, prenunciado nas duas últimas seções da Parte I do Projeto, iria desempenhar um papel cada vez mais importante nas teorias de Freud.

Numa nota de rodapé acrescentada em 1914 ao Capítulo VII (B) de A Interpretação dos Sonhos (Edição Standard Brasileira, Vol. V, [1], IMAGO Editora, 1972), o próprio Freud atribuiu a descoberta do conceito de regressão a Albertus Magnus, filósofo escolástico do século XIII, e ao Leviathan de Hobbes (1651). Mas parece tê-lo deduzido ainda mais diretamente da contribuição teórica de Breuer aos Estudos sobre a Histeria (ibid., Vol. III, [1], IMAGO Editora, 1974), publicado apenas alguns meses antes de ele mesmo ter escrito a presente obra. Breuer ali descreveu o movimento retrogressivo da excitação proveniente de uma idéia ou imagem mnêmica desde a percepção (ou alucinação) quase exatamente da mesma maneira aqui descrita por Freud. Ambos usaram a mesma palavra, “rückläufig”, aqui traduzida como “retrogressiva”.

A palavra alemã “Regression” apareceu pela primeira vez, ao que nos conste (num contexto semelhante), cerca de dezoito meses mais tarde, num rascunho enviado a Fliess no dia 2 de maio de 1897 (Rascunho L, [1]). Mas sua primeira publicação foi em A Interpretação dos Sonhos (1900a), no trecho subseqüentemente vinculado à nota de rodapé citada no início deste Apêndice.

Com o correr do tempo, o termo passou a ser usado nos sentidos mais variados, a certa altura classificado por Freud como “topográfico”, “temporal” e “formal”.

A regressão “topográfica” é a que Breuer introduziu; foi empregada no Projeto e forma o tema principal do Capítulo VII (B) de A Interpretação dos Sonhos (1900a). Deve seu nome ao quadro diagramático da mente que aparece naquele Capítulo (Edição Standard Brasileira, Vol. V, [1], IMAGO Editora, 1972), que registra a trajetória dos processos psíquicos entre a extremidade perceptiva e a extremidade motora do aparelho psíquico. Na regressão topográfica, a excitação é concebida como um retrocesso que se move no sentido da extremidade perceptiva. Desse modo, o termo constitui, essencialmente, a descrição de um fenômeno psicológico.

A regressão “temporal” tem relações mais estreitas com o material clínico. Surge pela primeira vez, mas sem qualquer referência explícita à “regressão”, no caso clínico de “Dora”, escrito em 1901, embora só publicado quatro anos depois (1905e). Ali ela aparece relacionada com um exame das perversões (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, [1]-[2], IMAGO Editora, 1972). O que se sugere é que, quando algum incidente fortuito na vida posterior inibe o desenvolvimento normal da sexualidade, a conseqüência pode ser o ressurgimento da sexualidade infantil “indiferenciada”. Freud apresentou então, pela primeira vez, uma de suas analogias favoritas: “Uma corrente de água que encontra obstáculos no leito do rio fica represada e reverte para velhos canais que antes pareciam fadados a secar”. A mesma hipótese, ilustrada pela mesma analogia, aparece mais de uma vez nos Três Ensaios (ibid., Vol. VII, [1]), mas novamente sem mencionar, na primeira edição dessa obra, o termo “regressão”, embora ele ocorra em vários trechos acrescentados às edições posteriores (por exemplo, ibid., [1], acrescentado em 1915). Essa espécie de regressão já fora identificada nos Três Ensaios como desempenhando um papel não só nas perversões como também nas neuroses (ibid., [1]), até na escolha normal de objeto na puberdade (ibid., [1]).

A princípio, não se percebeu nitidamente que existiam de fato dois tipos de mecanismos diferentes nessa regressão “temporal”. Tanto se poderia tratar simplesmente de um retorno a um objeto libidinal anterior, como de um retorno da própria libido a modos de funcionamento anteriores. Esses dois tipos já se encontram, de fato, implícitos no exame das perversões nos Três Ensaios, onde fica patente que pode haver um retorno tanto a um objetivo sexual anterior como a um objeto sexual anterior. (Essa distinção fica bem clara na Conferência XXII das Conferências Introdutórias (1916-17), Edição Standard Brasileira, Vol. XVI, [1].) Assim como o primeiro desses tipos de regressão temporal é particularmente característico da histeria, o segundo está especialmente associado à neurose obsessiva. Já se haviam fornecido exemplos dessa relação no caso clínico do “Homem dos Ratos” (1909d), ibic., X, [1]-[1]. Mas só se chegou à plena compreensão de sua importância com o advento da hipótese dos pontos de fixação e das organizações pré-genitais no desenvolvimento da libido. Aí foi possível compreender o efeito da frustração como causa da regressão da libido para algum ponto de fixação anterior. Isso se tornou especialmente claro em dois artigos: “Tipos de Desencadeamento da Neurose” (1912c), ibid., Vol. XII, ver em [1], e “A Predisposição à Neurose Obsessiva” (1913i), ibid., Vol. XII, ver em [1]-[2]. Mas já se suspeitava de que um processo semelhante também deveria estar em ação nos distúrbios mais graves, na esquizofrenia e na paranóia, hipótese cuja prova seria encontrada no estudo da autobiografia de Schreber (1911c), ibid., ver em [1].

Se aceitarmos a última definição de Freud para a “defesa” (em Inibição, Sintoma e Angústia, 1926d, ibid., XX, [1]-[2]), como uma “designação geral para todas as técnicas a que o ego recorre nos conflitos que podem levar a uma neurose”, talvez possamos considerar todos esses exemplos de regressão “temporal” como mecanismos de defesa. Isso, porém, dificilmente pode ser dito, salvo em sentido muito indireto, sobre outra manifestação clínica da regressão - a transferência - que foi examinada por Freud em seu artigo técnico “A Dinâmica da Transferência” (1912b), ibid., XII, ver em [1]-[2]. Essa forma especial de regressão temporal foi alvo de alguns outros comentários interessantes em A História do Movimento Psicanalítico (1914d), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, [1]-[2], IMAGO Editora, 1974.

A terceira espécie de regressão de Freud - a regressão “formal” - descrita por ele como ocorrendo “onde os métodos primitivos de expressão e representação tomam o lugar dos métodos habituais” (A Interpretação dos Sonhos, Edição Standard Brasileira, Vol. V, [1], IMAGO Editora, 1972) - foi por ele examinada sobretudo nas Conferências X, XI e XII das Conferências Introdutórias em relação com os sonhos, o simbolismo e a lingüística.

As próprias classificações de Freud dessas várias espécies de regressão não foram uniformes. Na primeira delas, nas Cinco Lições (1910a), Edição Standard Brasileira, Vol. XI, [1], IMAGO Editora, 1970, ele descreveu a regressão “temporal” e a “formal”. No parágrafo incluído em 1914 em A Interpretação dos Sonhos, ibid., Vol. V, [1], ele acrescentou a regressão “topográfica”. Em seu artigo metapsicológico sobre os sonhos (1917d), escrito em 1915, falou (ibid., Vol. XIV, [1]-[2]) de dois tipos de regressão “temporal”, “um afetando o desenvolvimento do ego e outro, o da libido”; e em (ibid., em [1]), referiu-se a uma regressão“topográfica”, diferenciando-a da “já mencionada regressão temporal ou evolutiva”. Por fim, na Conferência XIII das Conferências Introdutórias (1916-1917), Edição Standard Brasileira, Vol. XV, em [1], diferenciou uma regressão “formal” de uma “material”.

Ao considerar essas pequenas variações de terminologia, convém lembrar o comentário final de Freud no parágrafo acrescentado em 1914 à Interpretação dos Sonhos (Edição Standard Brasileira, Vol. V, em [1], IMAGO Editora, 1972), que já citamos mais de uma vez: “Todas essas três espécies de regressão; porém, são no fundo uma só e ocorrem, em geral, simultaneamente; pois a que é mais antiga no tempo é a mais primitiva na forma, e na topografia psíquica situa-se mais próxima da extremidade perceptual”.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

Na regressão há um retorno a um estado libidinal, de comunhão e/ou de exercício da  força, como de um retorno da própria energia a modos de funcionamento anteriores. A regressão é um mecanismo de defesa. A regressão só ocorre, em geral, por exemplo, quanto mais antiga no tempo é a mais antiga na forma, e na topografia situa-se mais próxima da extremidade perceptual.

É por meio da regressão que um indivíduo extrai por meio da moral e da Justiça, da autoridade e da força, da imposição, alguma parte do meu corpo como o cérebro e a mente com técnica ou meio não revelado que pode ser dotado de imoralidade, de perigo, de ameaça, de violência, de periclitação da vida e da saúde, pois esse evento é como roubar pedaços do corpo humano, como os olhos, a boca, os dentes, os rins, o estômago, o cérebro, o sangue, a mente, o coração, a pele, etc., e o mais grave contaminar essas vítimas que podem estar sendo usadas como cobaias humanas, vítimas mediante curandeirismo e charlatanismo! A moral não pode admitir estes procedimentos pois já causaram a minha morte mais de uma vez, pois, o Direito,  a Medicina e a Psicologia não podem se associar a eventos e procedimentos desumanos, cruéis e violentos como tortura, lavagem cerebral, tentativas de estupro e estupro virtual, ameaças, roubo, qualquer espécie de linchamento e terrorismo.

 

 

MATTANÓ

(02/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que na regressão há um retorno a um estado libidinal, de matrimônio, de comunhão e/ou de segurança, como de um retorno da própria energia a modos de funcionamento anteriores. A regressão é um mecanismo de defesa. A regressão só ocorre, em geral, por exemplo, quanto mais antiga no tempo é a mais antiga na forma, e na topografia situa-se mais próxima da extremidade perceptual. Da mesma forma existe um mecanismo de defesa no Reino dos Céus que é vontade do Pai celeste. Quando pedimos coisas a Jesus que Ele não tem autoridade para nos dar, pois depende da concessão do Pai celeste, Jesus diz como no exemplo da mãe dos filhos de Zebedeu ¨Mas, quanto a vos sentardes à minha direita ou à minha esquerda, não compete a mim o concedê-lo, mas é daqueles para quem está preparado por meu pai¨. Quem de vós quer ser o maior, seja vosso ministro, e quem de vós quer ser o primeiro, seja vosso servo. Exatamente como o Filho do Homem que não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a própria vida como redenção de muitos¨. A regressão de Jesus é voltada para Deus Pai.

 

MATTANÓ

(07/01/2019)

 

 

 

 

 

 

 

PARTE II

 

 

PSICOPATOLOGIA

 

A primeira parte desse projeto continha, mais ou menos a priori, tudo o que se poderia deduzir das hipóteses básicas, modelado e corrigido segundo várias experiências concretas. Esta segunda parte procura inferir na análise dos processos patológicos alguns determinantes adicionais do sistema fundamentado nas hipóteses básicas; uma terceira parte tentará estruturar, a partir das duas anteriores, as características do transcurso normal dos eventos psíquicos.

  1. A. Psicopatologia da Histeria

 

[1] A COMPULSÃO HISTÉRICA

 

Começarei pelo estudo dos fenômenos que ocorrem na histeria, sem que lhe sejam forçosamente peculiares. - O que antes de mais nada chama a atenção de qualquer observador da histeria é o fato de que os pacientes histéricos estão sujeitos a uma compulsão exercida por idéias excessivamente intensas. Assim, por exemplo, uma idéia pode surgir na consciência com freqüência particular, sem que a passagem [dos eventos] a justifique; ou a ativação dessa idéia será acompanhada de conseqüências psíquicas que são inteligíveis. A emergência da idéia excessivamente intensa acarreta conseqüências que, por um lado, não podem ser suprimidas e, por outro, não podem ser compreendidas - descarga de afeto, inervações motoras, impedimentos. A pessoa não fica, de modo algum, alheia ao caráter surpreendente da situação.

As idéias excessivamente intensas também ocorrem normalmente. Elas conferem individualidade ao ego. Não nos surpreendem quando conhecemos seu desenvolvimento genético (educação, experiências) e seus motivos. Estamos acostumados a considerar essas idéias excessivamente intensas como produto de motivos imperiosos e justificáveis. As idéias histéricas excessivamente intensas, ao contrário, surpreendem por sua extravagância; são idéias que não teriam conseqüências em outras pessoas e cuja importância não conseguimos entender. Parecem-nos intrusas, usurpadoras e, conseqüentemente, ridículas.

A compulsão histérica é, portanto, (1) ininteligível, (2) incapaz de resolver-se pela atividade do pensamento, (3) incongruente em sua estrutura.

Existe uma compulsão neurótica simples que pode ser contrastada com a de tipo histérica. Assim, por exemplo, um homem pode ter corrido o risco de cair de uma carruagem e, desde então, ser-lhe impossível viajar dessa maneira. Essa compulsão é (1) inteligível, pois se conhece sua origem e (3) congruente, pois a associação com o perigo justifica a relação entre o viajar de carruagem e o medo. No entanto, não é também passível de ser solucionada pela atividade do pensamento. Esta última característica não pode ser considerada como inteiramente patológica: também as nossas idéias normais excessivamente intensas são, muitas vezes, impossíveis de solucionar. Negar-se-ia à compulsão histérica qualquer caráter patológico, se a experiência não nos demonstrasse que, nas pessoas saudáveis, tal compulsão só persiste por um breve espaço de tempo depois de sua ocorrência, desintegrando-se gradativamente. A persistência da compulsão é, pois, patológica e indica uma neurose simples.

Nossa análise mostra agora que a compulsão histérica se resolve imediatamente, é explicada (tornada inteligível). Essas características são, assim, em essência uma. Aprendemos na análise, também, como opera o processo do aparecimento da absurdidade e da incongruidade. O resultado da análise, expressa em termos gerais, apresenta-se como se segue:

Antes da análise, A é uma idéia excessivamente intensa que irrompe na consciência com demasiada freqüência, provocando a cada vez o pranto. A pessoa não sabe por que chora diante de A; acha absurdo, mas não consegue evitar.

Depois da análise, descobriu-se que existe uma idéia B que, com toda a razão, é motivo de pranto, e que com toda a razão se repete freqüentemente enquanto a pessoa não pratica contra ela uma determinada ação psíquica bastante complicada. O efeito de B não é absurdo; é inteligível para a pessoa e pode até ser combatido por ela.

B mantém uma relação particular com A.

Pois houve uma ocorrência que consistiu de B + A. A foi uma circunstância incidental; B foi apropriado para produzir um efeito duradouro. A reprodução desse evento na memória tomou agora uma forma de tipo tal que é como se A tomasse o lugar de B. B tornou-se um substituto, um símbolo de B. Daí a incongruidade: A é acompanhado de conseqüências que não parecem adequadas, que não se enquadram nele.

A formação de símbolos também ocorre normalmente. Um soldado é capaz de se sacrificar por um farrapo multicor preso a um mastro, por que isso se transformou para ele no símbolo de sua pátria, e ninguém considera isso neurótico.

Mas o símbolo histérico porta-se de outra maneira. O cavaleiro que se bate pela luva de sua dama sabe, em primeiro lugar, que a luva deve toda a sua importância à dama; e, em segundo lugar, sua veneração pela luva não o impede, de modo algum, de pensar na dama e de servi-la de outras formas. O histérico, que chora por causa de A, não percebe que isso se deve à associação A-B, sendo que B não desempenha o menor papel em sua vida psíquica. Neste caso, a coisa foi completamente substituída pelo símbolo.

Essa confirmação está certa no sentido mais estrito. Nós [podemos] convencer[-nos] de que, sempre que é evocada, do exterior ou por associação, alguma coisa que de fato deveria catexizar B, em seu lugar aparece A na consciência. A rigor, pode-se deduzir a natureza de B a partir das causas provocadoras que - de maneira marcante - suscitam o aparecimento de A.

Em suma: A é compulsiva e B está recalcada (ao menos da consciência).

A análise levou a esta surpreendente conclusão: para cada compulsão existe um recalque correspondente e, para cada intrusão excessiva na consciência, existe uma amnésia correspondente.

A expressão “excessivamente intensa” aponta para características quantitativas. É plausível supor que o recalcamento tenha o sentido quantitativo de ser despojado de Q, e que a soma dos dois [da compulsão e do recalcamento] seja igual ao normal. Sendo assim, só a distribuição se modificou. Algo foi acrescentado a A, que foi subtraído de B. O processo patológico é um processo de deslocamento, tal como vimos a conhecer nos sonhos - ou seja, um processo primário.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

A compulsão histérica é ininteligível, incapaz de resolver-se pela atividade do pensamento e, incongruente em sua estrutura.

A análise de Freud permitiu concluir que para cada compulsão existe um recalque correspondente e, para cada intrusão excessiva na consciência, existe uma amnésia correspondente;

Notamos que a compulsão histérica envolve Monstros e Escravos, já que é ininteligível, incongruente e incapaz de resolver-se pelo pensamento.

 

MATTANÓ

(03/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que a compulsão histérica é ininteligível, incapaz de resolver-se pela atividade do pensamento e, incongruente em sua estrutura.

A análise de Freud permitiu concluir que para cada compulsão existe um recalque correspondente e, para cada intrusão excessiva na consciência, existe uma amnésia correspondente.

Da mesma forma a cegueira é incapaz de se resolver sem a compaixão de Jesus, como a dos cegos de Jericó. Na Psicanálise do Amor a cegueira ultrapassa a visão, encontra no coração, no ouvir, no entender, no falar, no pensar, no trabalhar, no educar, no estudar, no julgar, no amar e no perdoar, no acolher e no viver para Cristo a sua voz para Jesus Cristo ouvir-te e curar-te, e te envolver em sua manjedoura de Amor.

 

MATTANÓ

(07/01/2019)

 

 

 

 

 

 

[2] A GÊNESE DA COMPULSÃO HISTÉRICA

 

Surgem agora várias perguntas importantes. Em que condições ocorrem semelhante formação simbólica patológica [e] (por outro lado) semelhante recalcamento? Qual a força ativa que intervém? Em que estado se encontram os neurônios da idéia excessivamente intensa e os da idéia recalcada?

Nada se poderia depreender disso e nada mais se poderia construir, se a experiência clínica não nos ensinasse dois fatos. Primeiro, que o recalcamento é invariavelmente aplicado a idéias que despertam no ego um afeto penoso (de desprazer) e segundo, a idéia[s] provenientes da vida sexual.

Já se pode suspeitar que é esse afeto desprazeroso que aciona o recalcamento. De fato, já presumimos a existência de uma defesa primária que consiste na inversão da corrente de pensamento assim que ele se depara com um neurônio cuja catexização libera desprazer. [Cf. em [1] e [2]-[3].] A justificação dessa [hipótese] surgiu de duas experiências: (1) que a catexia desse neurônio certamente não era a que estava sendo procurada quando o processo de pensamento visava, originalmente, estabelecer uma situação de satisfação de y; (2) que, quando uma experiência de dor é terminada por um reflexo, a percepção hostil é substituída por outra [em [1]].

Podemos, porém, convencer-nos de modo mais direto quanto ao papel desempenhado pelo afeto defensivo. Se investigarmos o estado da [idéia] recalcada B, comprovaremos que é fácil encontrá-la e levá-la à consciência. Isso constitui uma surpresa, pois seria perfeitamente possível supor que B estivesse realmente esquecida, que não houvesse restado em y nenhum traço mnêmico de B. Mas não, B é uma imagem mnêmica como outra qualquer; não se extingue. Mas se, como de costume, B for um complexo de catexias, surgirá então uma resistência, extraordinariamente forte e difícil de vencer, contra a atividade de pensamento com B. Podemos imediatamente reconhecer nessa resistência a B a medida de compulsão exercida por A e concluir que a força que recalcou B no passado pode ser aqui vista em ação mais uma vez. Ao mesmo tempo, aprendemos algo mais. Até agora sabia-se apenas que B não podia se tornar consciente; ignorava-se tudo a respeito da relação de B com a catexia de pensamento. Agora aprendemos que a resistência é dirigida contra qualquer pensamento que tenha qualquer relação com B, mesmo que esta [B] já se tenha tornado parcialmente consciente. Assim, em vez de excluída da consciência, pode-se dizer excluída do processo de pensamento.

Existe, portanto, um processo defensivo oriundo do ego catexizado que resulta no recalcamento histérico e, concomitantemente, na compulsão histérica. Nesse sentido, o processo parece diferenciar-se dos processos y primários.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

A gênese da compulsão histérica pode ser explicada pelo recalcamento que é invariavelmente aplicado a ideias, que despertam no ego desprazer, e pelas ideias provenientes da vida sexual, inclusive da vida de comunhão e da vida do exercício da força.

 

MATTANÓ

(03/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que e gênese da compulsão pode ser explicada pelo recalcamento, que é aplicado a ideias e ao desprazer, da mesma forma o profeta fala: Dizei a filha de Sião: Eis! O teu reino vem ti cheio de mansidão, montado num jumentinho, filho de jumenta. Ou seja, as ideias de Jesus foram ensinadas pela Palavra, antes, durante e depois de sua ressurreição, pois é a Palavra o maior meio de comunicação e de se comunicar do ser humano, o de maior influência e de maior abrangência, pois é acessível a todos e em qualquer lugar, condição ou nação.

 

MATTANÓ

(10/01/2019)

 

 

 

 

 

[3] A DEFESA PATOLÓGICA

 

Não obstante, ainda estamos longe de uma solução. Como se sabe, o resultado do recalcamento histérico se distingue profundamente do da defesa normal, que se conhece com exatidão. É um dado de observação geral que evitamos pensar em coisas que despertam unicamente desprazer, e o fazemos desviando o pensamento para outras coisas. Se conseguirmos, porém, consoantemente, fazer com que a [idéia] B incompatível surja raramente em nossa consciência, por tê-la mantido tão isolada quanto possível, ainda assim jamais conseguiremos esquecer B a ponto de nenhuma percepção nova reavivar sua lembrança. Ora, tampouco na histeria é possível evitar semelhante reativação; a única diferença consiste no fato de que então, em vez de B, A sempre se torna consciente - isto é, catexizada. É, portanto, a formação simbólica desse tipo estável que constitui a função que ultrapassa a defesa normal.

A explicação mais óbvia para essa função aumentada seria a de atribuí-la à maior intensidade do afeto defensivo. A experiência demonstra, porém, que as lembranças mais penosas, que deveriam necessariamente despertar o maior desprazer (a lembrança do remorso pelas más ações), não podem ser recalcadas e substituídas por símbolos. A existência de uma segunda precondição da defesa patológica [Cf. em [1]] - a sexualidade - também sugere que a explicação deve ser buscada em outra parte. É impossível supor que os afetos sexuais penosos superem tanto em intensidade a todos os demais afetos desprazerosos. Deve haver alguma outra característica das idéias sexuais capaz de explicar como é que só elas ficam sujeitas ao recalcamento.

Cumpre acrescentar aqui ainda outra observação. É evidente que o recalcamento histérico ocorre mediante o auxílio da formação de símbolos, do deslocamento para outros neurônios. Poder-se-ia supor, então, que o enigma reside apenas no mecanismo desse deslocamento e que não há nada a explicar sobre o próprio recalcamento. No entanto, quando chegarmos à análise da neurose obsessiva, por exemplo, veremos que nela existe um recalcamento sem formação de símbolos e, de fato, que o recalque e a substituição estão separados cronologicamente. Por conseguinte, o processo de recalcamento continua sendo o cerne do enigma.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

As lembranças mais penosas não podem ser recalcadas e nem substituídas por símbolos. Deste modo estas lembranças não se chamam Monstros ou Escravos mas ¨lembranças¨ pois não podem ser recalcadas e nem substituídas por símbolos que denominamos Monstros e Escravos.

 

MATTANÓ

(03/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que as lembranças mais penosas não podem ser recalcadas e nem substituídas por símbolos, sendo denominadas ¨lembranças¨, e as outras lembranças são Monstros e Escravos, da mesma forma Jesus disse ¨Está escrito: A minha casa é casa de oração, e vós fazeis dela um covil de ladrões¨, ou seja, ¨a minha casa, a casa do Amor de Deus e de Maria é uma casa de oração, e vós fazeis dela um covil de ladrões!¨ As lembranças mais penosas de tortura, violência, homicídio, pedofilia, abuso e exploração sexual, estupro, vantagens ilícitas, corrupção que as crianças da família do Amor de Deus e de Maria não podem ser recalcadas e nem substituídas por símbolos, tornam-se ¨lembranças¨, e a outras lembranças tornam-se Monstros  e Escravos como as expressões de dor e de medo, de vergonha, de pânico, de humilhação e de vergonha, de pessoas sendo estupradas diante umas das outras, de pessoas sendo abusadas e violentadas sexualmente diante umas das outras, de pessoas sendo roubadas e ameaçadas covardemente diante umas das outras, etc..

 

MATTANÓ

(10/01/2019)

 

 

 

 

 

 

[4] A PROTON PSEUDOS [PRIMEIRA MENTIRA] HISTÉRICA

 

Vimos que a compulsão histérica se origina de um tipo peculiar de movimento da Q (formação simbólica), que é provavelmente um processo primário, uma vez que pode ser facilmente demonstrado nos sonhos; [e vimos] que a força ativadora desse processo é a defesa por parte do ego, a qual, no entanto, desempenha aqui mais do que a sua função normal [em [1]]. Precisamos de uma explicação para o fato de que um processo-do-ego possa acarretar conseqüências que estamos acostumados a encontrar somente nos processos primários. Devemos esperar aqui a intervenção de determinantes psíquicos muito especiais. Sabemos da observação clínica que tudo isso ocorre apenas na esfera sexual; de modo que talvez tenhamos que explicar o determinante psíquico especial a partir das características naturais da sexualidade.

Ora, acontece que existe na esfera sexual uma constelação psíquica toda especial que bem poderia ser útil para nossos fins. Vou ilustrá-la (já o conhecemos empiricamente) com um exemplo.

Emma acha-se dominada, atualmente, pela compulsão de não poder entrar nas lojas sozinha. Como motivo para isso, [apresentou] uma lembrança da época em que tinha doze anos (pouco depois da puberdade). Ela entrou numa loja para comprar algo, viu dois vendedores (de um dos quais ainda se lembra) rindo juntos, e saiu correndo, tomada de uma espécie de afeto de susto. Em relação a isso, terminou recordando que os dois estavam rindo das roupas dela e que um deles a havia agradado sexualmente.

Tanto a relação desses fragmentos [entre si] como o efeito da experiência são ininteligíveis. Se ela se sentiu mal porque suas roupas eram alvo de riso, isso terá sido remediado há muito tempo, desde que passou a se vestir como uma moça [crescida]. Além disso, entrar sozinha ou acompanhada numa loja nada tem a ver com as roupas que ela usa. Que ela não precisa simplesmente de proteção é algo que fica comprovado pelo fato de que, como acontece nos casos de agorafobia, até a companhia de uma criança pequena é suficiente para dar-lhe segurança. Existe ainda o fato, totalmente incongruente, de um dos vendedores tê-la agradado; para isso também não faria diferença estar acompanhada ou não. Por conseguinte, as lembranças despertadas não explicam nem a compulsão nem a determinação do sintoma.

As novas investigações revelaram uma segunda lembrança, que ela nega ter tido em mente na ocasião da Cena I. Também não há nada que a comprove. Aos oito anos de idade, ela esteve numa confeitaria em duas ocasiões para comprar doces, e na primeira o proprietário agarrou-lhe as partes genitais por cima da roupa. Apesar da primeira experiência, ela voltou lá uma segunda vez; depois, parou de ir. Agora, recrimina-se por ter ido a segunda vez, como se com isso tivesse querido provocar a investida. De fato, seu estado de “consciência pesada e opressiva” remonta a essa experiência.

Agora compreendemos a Cena I (vendedores), combinando-a com a Cena II (proprietário da confeitaria). Basta estabelecer um vínculo associativo entre ambas. Ela própria indicou que ele é fornecido pelo riso: o riso dos vendedores a fez lembrar-se do sorriso com que o proprietário da confeitaria acompanhou sua investida. A marcha dos acontecimentos pode ser reconstituída. Na loja, os dois vendedores estavam rindo; esse riso evocou (inconscientemente) a lembrança do proprietário. De fato, a segunda situação tinha ainda outra semelhança [com a primeira]: ela mais uma vez estava sozinha na loja. Juntamente com o dono da confeitaria, lembrou-se de que ele a agarrara por cima da roupa; de que desde então ela alcançara a puberdade. A lembrança despertou o que ela certamente não era capaz na ocasião, uma liberação sexual, que se transformou em angústia. Devido a essa angústia, ela temeu que os vendedores da loja pudessem repetir o atentado e saiu correndo.

Não resta dúvida de que estão aqui misturadas duas espécies de processos e de que a lembrança da Cena II (proprietário da confeitaria) ocorreu num estado muito diferente do da primeira. O que se passou pode ser representado da seguinte maneira [Fig. 16].

 

Fig. 16

 

 No desenho as idéias em escuro correspondem às percepções que foram lembradas. O fato de que liberação sexual também penetrou na consciência fica comprovado pela idéia, de outro modo incompreensível, da atração que ela sentiu pelo vendedor que ria. O resultado - não permanecer sozinha na loja, devido ao risco de atentado - é construído de maneira perfeitamente racional, levando em conta todos os elementos do processo associativo. No entanto, nada do processo (representado embaixo) penetrou na consciência, a não ser o elemento “roupas”; e o pensamento conscientemente operante estabeleceu duas conexões falsas no material à sua disposição (vendedores, riso, roupas, sensação sexual): primeiro, que riam dela por causa da roupa e, segundo, que ela havia ficado sexualmente excitada por um dos vendedores.

Todo o complexo ([círculos] não escurecidos) estava representado na consciência de “roupas”, evidentemente a mais inocente. Aqui houve um recalcamento acompanhado pela formação de símbolos. O fato de o efeito - o sintoma - ser então construído de modo perfeitamente racional [ver acima], sem que o símbolo desempenhasse qualquer papel nele, é, na realidade, uma peculiaridade desse caso.

Poder-se-ia dizer que é muito comum uma associação passar por uma série de vínculos intermediários inconscientes antes de chegar a um que seja consciente, como acontece aqui. Nesse caso, o elemento que penetra na consciência é, provavelmente, o que desperta interesse especial. No nosso exemplo, porém, o que chama atenção é justamente que o elemento que penetra na consciência não é o que desperta interesse (o atentado), mas outro, na qualidade de símbolo (as roupas). Se nos perguntarmos qual seria a causa desse processo patológico interpolado, só poderemos indicar uma - a liberação sexual, da qual também há provas na consciência. Isso está vinculado à lembrança do atentado; mas é altamente digno de nota o fato de ela [a liberação sexual] não se vinculou ao atentado quando esse foi cometido. Temos aqui um caso em que uma lembrança desperta um afeto que não pôde suscitar quando ocorreu como experiência, porque, nesse entretempo, as mudanças [trazidas] pela puberdade tornaram possível uma compreensão diferente do que era lembrado.

Ora, esse caso é típico do recalcamento na histeria. Constatamos invariavelmente que se recalcam lembranças que só se tornaram traumáticas por ação retardada. A causa desse estado de coisas é o retardamento da puberdade em comparação com o resto do desenvolvimento do indivíduo.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

A compulsão histérica se origina da função simbólica, num processo primário, demonstrado nos sonhos, a força ativadora desse processo é a defesa por parte do ego, uma função normal.

O recalcamento na histeria refere-se invariavelmente a lembranças que só se tornam traumáticas por ação retardada. A causa desse estado de coisas é o retardamento da puberdade em comparação com o resto do desenvolvimento do indivíduo.

Podemos especular haver uma compulsão telepática com um processo primário, demonstrada nos sonhos e na própria telepatia como na lavagem cerebral, donde a força ativadora é a defesa por parte do ego, um esforço pela normalidade.

 

MATTANÓ

(03/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que a compulsão histérica se origina da função simbólica, num processo primário, demonstrado nos sonhos, a força ativadora desse processo é a defesa por parte do ego, uma função normal.

O recalcamento na histeria refere-se invariavelmente a lembranças que só se tornam traumáticas por ação retardada. A causa desse estado de coisas é o retardamento da puberdade em comparação com o resto do desenvolvimento do indivíduo.

Da mesma forma Jesus disse para os seus discípulos: ¨Na verdade, vos digo: Se tiverdes fé e não duvidardes, não fareis o que me vistes fazer contra a figueira, mas, se dissestes a esse monte:  Sai daí, e lança-te ao mar! Assim acontecerá. E tudo o que, rezando, pedirdes com fé, o conseguireis¨. E assim com ajuda da fé e da oração, a compulsão histérica se origina da função simbólica, é a defesa por parte do ego, uma função normal. E na histeria o recalcamento ocorre por ação retardada da puberdade em comparação com o resto do desenvolvimento do indivíduo.

 

MATTANÓ

(17/01/2019)

  

 

 

[5] DETERMINANTES DA PRWTON YEVDOV UST [ERCIN]

 

Embora, em geral, não se dê na vida psíquica a situação de uma lembrança despertar um afeto que não existiu por ocasião da experiência, tal é, no entanto, uma ocorrência muito comum no caso das idéias sexuais, precisamente porque o retardamento da puberdade constitui uma característica geral da organização. Cada indivíduo adolescente porta traços de memória que só podem ser compreendidos com a manifestação de suas próprias sensações sexuais; todo adolescente, portanto, traz dentro de si o germe da histeria. É evidente que terá de haver também outros fatores concomitantes, já que essa tendência universal fica limitada ao pequeno número de pessoas que realmente se tornam histéricas. Ora, a análise indica que o que há de perturbador num trauma sexual é, sem dúvida, a liberação do afeto; e a experiência nos ensina que os histéricos são pessoas das quais se sabe que, em parte, tornaram-se prematuramente excitáveis em sua sexualidade devido à estimulação mecânica e emocional (masturbação), e das quais, em parte, podemos supor que uma liberação sexual prematura está presente na sua disposição inata. Mas o início prematuro da liberação sexual ou a insatisfação prematura da liberação sexual evidentemente se equivalem, de modo que essa condição fica reduzida a um fator quantitativo.

Em que consiste, porém, o significado dessa prematuridade da liberação sexual? Aqui, todo o peso recai sobre a prematuridade, pois não se pode afirmar que a liberação sexual em geral origine o recalcamento; isso converteria o recalque, mais uma vez, num processo de freqüência normal.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

Na vida psíquica não se dá a situação de uma lembrança o despertar de um afeto que não existiu por ocasião da experiência, assim, também, no caso das ideias sexuais, da comunhão e do exercício da força.

Não se pode afirmar que a liberação sexual em geral origine o recalcamento, isso converteria o recalque num processo de frequência normal.

O que há de perturbador num trauma sexual é, sem dúvida, a liberação do afeto. Assim também com os traumas da comunhão e do exercício da força.

 

MATTANÓ

(03/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que não há na vida psíquica afeto despertado por lembrança que jamais tenha ocorrido na experiência ou no mundo das ideias do indivíduo. Assim o é com a libido, o matrimônio, a comunhão e a segurança. Da mesma forma assim o é também com a autoridade de Jesus, Ele nos dirá sobre ela conforme nossas obras.

 

MATTANÓ

(17/01/2019)

 

 

 

 

[6] PERTURBAÇÃO DO PENSAMENTO PELO AFETO

 

Não podemos refutar [o fato] de que a perturbação do processo psíquico normal teria dois determinantes: (1) que a liberação sexual estaria ligada a uma lembrança, e não a uma experiência, (2) que a liberação sexual ocorreria prematuramente. Essas duas ocorrências produziriam uma perturbação que ultrapassa o normal, mas que também está potencialmente presente no normal.

A experiência cotidiana ensina que a geração de afeto inibe de várias maneiras o curso normal do pensamento. Em primeiro lugar, isso se dá no sentido de serem esquecidas muitas vias de pensamento que seriam normalmente levadas em conta - isto é, à semelhança do que ocorre nos sonhos [Ver em [1]]. Assim, por exemplo, ocorreu-me, durante a agitação causada por uma grande angústia, esquecer de fazer uso do telefone que acabara de ser instalado em minha casa. A via recém-estabelecida sucumbia ao estado afetivo: a facilitação - ou seja, o que estava estabelecido desde longa data - levou a melhor. Esse esquecimento envolve o desaparecimento da [capacidade de] seleção, da eficiência e da lógica no decurso [do pensamento], tal como acontece nos sonhos. Em segundo lugar, [o afeto inibe o pensamento] no sentido de que, sem que haja nenhum esquecimento, adotam-se vias que são geralmente evitadas: sobretudo, vias que conduzem à descarga, [tais como] ações [efetuadas] sob a influência do afeto. Em suma, pois, o processo afetivo se aproxima do processo primário não inibido.

Disso se devem extrair várias inferências. Primeiro, que na liberação afetiva se intensifica a própria idéia liberadora; segundo, que a função principal do ego catexizado consiste em evitar novos processos afetivos e em reduzir as antigas facilitações afetivas. Essa posição só pode ser descrita da seguinte maneira. Originalmente, uma catexia perceptual, em sua qualidade de herdeira de uma experiência dolorosa, gerou desprazer; ela [a catexia] foi intensificada pela Q liberada, prosseguindo então até a descarga por vias de passagem que já se encontravam parcialmente pré-facilitadas. Uma vez formado o ego catexizado, a “atenção” para as novas catexias perceptuais desenvolveu-se da forma que conhecemos [em. [1] e [2]] e ela [a atenção] seguiu, com as catexias colaterais, o curso [da quantidade] proveniente da percepção. Desse modo, a liberação de desprazer ficou quantitativamente restrita e seu início serviu, precisamente, de sinal para o ego pôr em ação a defesa normal [em [1]]; assim se evitou o desenvolvimento muito fácil de novas experiências de dor, com todas as suas facilitações. Todavia, quanto mais intensa é a liberação de desprazer, tanto mais penosa é a tarefa para o ego, que, com suas catexias colaterais, afinal só consegue contrabalançar as Qs até determinado limite, estando portanto fadado a permitir a ocorrência de uma passagem primária [de quantidade].

Além disso, quanto maior é a quantidade que se esforça por passar, tanto mais difícil é para o ego a atividade de pensamento, que, segundo tudo indica, consiste no deslocamento experimental de pequenas Qs, [em [1] e [2]]. A “reflexão” é uma atividade do ego que exige tempo e que se torna impossível quando existem grandes Qs no nível do afeto. Eis por que há uma precipitação quando existe afeto, assim como uma seleção de vias semelhantes à que se adota no processo primário.

 

Por conseguinte, cabe ao ego não permitir nenhuma liberação de afeto, pois este, ao mesmo tempo, permite um processo primário. Seu melhor instrumento para esse fim é o mecanismo da atenção. Se uma catexia liberadora de desprazer conseguisse escapar à atenção, o ego chegaria tarde demais para neutralizá-la. Ora, isso é justamente o que acontece no caso da proton pseudos [primeira mentira] histérica. A atenção está [normalmente] concentrada nas percepções, onde geralmente se originam as liberações de desprazer. Aqui, [porém, o que aparece] não é uma percepção, mas uma lembrança, que inesperadamente libera desprazer, e o ego só descobre isso tarde demais. Ele permitiu que houvesse um processo primário porque não esperava que tal acontecesse.

Existem, também, outras ocasiões em que as lembranças liberam desprazer, o que é, sem dúvida, perfeitamente normal no caso das lembranças mais recentes. Quando o trauma (a experiência da dor) ocorre - os primeiros [traumas] escapam totalmente o ego - num momento em que já existe um ego, produz-se de início uma liberação de desprazer, mas o ego também atua simultaneamente, criando catexias colaterais. Quando a catexia se repete, e o desprazer também se repete, mas as facilitações-do-ego igualmente já se acham presentes: a experiência demonstra que a liberação [de desprazer] diminui de intensidade na segunda vez, até que, depois de várias repetições, ela se reduz à intensidade de um sinal aceitável para ao ego. [Cf. em [1], atrás.] Assim, pois, o essencial é que, por ocasião da primeira liberação de desprazer, não ocorra como experiência afetiva primária póstuma; essa [condição] é precisamente o que ocorre quando a lembrança é a primeira a motivar a liberação de desprazer, como no caso da proton pseudos histérica.

Com isso, parece confirmada a importância de um dos determinantes que apresentamos [em [1]] e que foi fornecido pela experiência clínica: o retardamento da puberdade possibilita os processos primários póstumos.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

A perturbação do processo psíquico normal deve-se a liberação sexual que esta ligada a uma lembrança, e não a uma experiência, e a essa liberação sexual que ocorreria prematuramente.

Em outras ocasiões lembranças liberam desprazer, como no caso de lembranças mais recentes.

 

MATTANÓ

(03/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que a perturbação do processo psíquico normal deve-se a liberação da energia da libido, do matrimônio, da comunhão ou da segurança que está ligada a uma lembrança, e essa liberação ocorre prematuramente. No caso de lembranças mais recentes essas lembranças liberam desprazer. Da mesma forma ocorre uma perturbação no processo psíquico normal quando Jesus faz lembrar dos publicanos e das meretrizes em relação àqueles que ainda não se arrependeram para crerem nele, advertido que os primeiros serão salvos e os que não se arrependeram não entrarão no Reino dos Céus.

 

MATTANÓ

(17/01/2019)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PARTE III

TENTATIVA DE REPRESENTAR OS PROCESSOS  NORMAIS

 

 

5 out. 95.

 

[1]

Deve ser possível explicar em termos mecânicos [em [1]] o que denominei processos secundários, através do efeito produzido por uma massa de neurônios (o ego) constantemente catexizados sobre outros com catexias variáveis. Começarei por uma tentativa de representação psicológica dos processos dessa espécie.

Se de um lado tenho o ego e, de outro, as percepções - isto é, catexias em  provenientes de  (do mundo externo) -, então terei de encontrar um mecanismo que induza o ego a seguir as percepções e a influir sobre elas. Encontro-o [esse mecanismo] no fato de que, segundo meus pressupostos, toda percepção invariavelmente excita , dando assim origem a indicações de qualidade. Ou, para ser mais exato, excita a consciência (a consciência de uma qualidade) em , e a descarga da excitação de  fornecerá, [como] toda descarga, informações a , o que constitui de fato a indicação de qualidade. Por conseguinte, proponho a sugestão de que seriam essas indicações de qualidade as que interessam a  na percepção. [Cf. em [1].]

Tal seria o mecanismo da atenção psíquica. Acho difícil dar uma explicação mecânica (automática) para a sua origem. Por esse motivo, creioque ela é biologicamente determinada - isto é, que se conservou no curso da evolução psíquica, pois qualquer outro comportamento de y ficou excluído por ser gerador de desprazer. O efeito da atenção psíquica é a catexia dos mesmos neurônios que são os portadores da catexia perceptual. Esse estado tem um protótipo na experiência de satisfação [em [1]], que é tão importante para todo o curso de desenvolvimento, e em suas repetições: estados de anseio que evoluem para estados de desejo e estados de expectativa. Já demonstrei [Parte I, Seções 16-8] que esses estados contêm a justificativa biológica de todo o pensamento. A situação psíquica neles é a seguinte. O anseio implica um estado de tensão no ego e, em conseqüência disso, a representação do objeto amado (a idéia de desejo) é catexizada. A experiência biológica nos ensina que essa idéia não deve ser tão intensamente catexizada a ponto de se confundir com uma percepção, e que sua descarga deve ser adiada até que da idéia partam indicações de qualidade que comprovem que a idéia agora é real, que é uma catexia perceptiva. Quando surge uma percepção idêntica ou semelhante à idéia, ela encontra seus neurônios pré-catexizados pelo desejo - quer dizer, todos ou parte deles já catexizados - na medida em que ambas coincidam. A diferença entre a idéia e a percepção recém-chegada dá origem, então, ao processo de pensamento, que chegará a seu fim quando se tiver encontrado uma via pela qual as catexias perceptuais supérfluas [isto é, indesejadas] se houverem convertido em catexias ideativas. Com isso se terá obtido a identidade. [Cf. em [1]]

A atenção consiste, pois, em estabelecer o estado psíquico de expectativa, inclusive para aquelas percepções que não coincidem, em parte, com as catexias de desejo. Acontece, simplesmente, que se tornou importante mandar catexias ao encontro de todas as percepções, uma vez entre elas podem estar as desejadas. A atenção é biologicamente justificada; basta apenas orientar o ego quanto a qual catexia expectante ele deve estabelecer, e é para esse fim que servem as indicações de qualidade.

 

Talvez seja possível examinar com maior exatidão o processo de adoção de uma atitude psíquica. Suponhamos que, de início, o ego não esteja previamente preparado; e surja uma catexia perceptual, seguida por sua indicação de qualidade. A íntima facilitação entre os dois elementos de informação intensificará a catexia perceptual e produzirá então a catexia dos neurônios perceptuais com atenção. A próxima percepção do mesmo objeto conduzirá (de acordo com a segunda lei de associação) a uma catexia mais plena da mesma percepção, e apenas esta será a percepção que é psiquicamente utilizável.

(Já esta primeira parte da descrição fornece uma tese de suma importância. A catexia perceptual, quando ocorre pela primeira vez, tem pouca intensidade, com escassa Q; na segunda vez, quando existe uma pré-catexia y, ela é quantitativamente maior. Ora, em princípio, o juízo sobre as características quantitativas do objeto não é modificado pela atenção. Conseqüentemente, a Q externa dos objetos não pode ser expressa em y pela Q psíquica. A Q psíquica significa algo bem diferente, que não está representando na realidade, e, efetivamente, a Q externa está expressa em por algo diferente - pela complexidade das catexias [em [1]]. Mas é por esse meio que a Q externa se mantém afastada de y.)

A próxima descrição é ainda mais satisfatória. Como resultado da experiência biológica, a atenção y está constantemente voltada para as indicações de qualidade. Essas ocorrem, pois, em neurônios pré-catexizados e com quantidade suficientemente grande. As informações da qualidade, assim intensificadas, intensificam por sua vez, graças à sua facilitação, as catexias perceptivas; e o ego aprende a fazer com que suas catexias de atenção sigam o curso desse movimento associativo ao passarem da indicação de qualidade para a percepção. Com isso ele [o ego] é levado a catexizar precisamente as percepções corretas ou a seu meio. Com efeito, se admitirmos que é a mesma Q procedente do ego que percorre a facilitação entre a indicação de qualidade e a percepção, teremos realmente encontrado uma explicação mecânica (automática) para a catexia da atenção [em [1]]. Desse modo, a atenção abandona as indicações de qualidade para dirigir-se aos neurônios perceptivos, agora hipercatexizados [em [1]].

Suponhamos que, por um motivo qualquer, o mecanismo da atenção falhe; nesse caso, não se produzirá a catexia y dos neurônios perceptivos, ea Q que os atingiu se transmitirá (de maneira puramente associativa) na direção das melhores facilitações, na medida em que o permitam as relações entre as resistências e a quantidade da catexia perceptiva. [Cf. em [1].] Provavelmente, essa passagem [de quantidade] não tardaria a chegar a seu fim, já que Q se divide e logo se reduz, em algum neurônio mais próximo, a um nível demasiadamente baixo para seguir adiante. A passagem da quantidade perceptiva, em certas circunstâncias, subseqüentemente pode excitar a atenção, ou de novo, não pode. Nesse caso ele termina não absorvido na catexia de algum neurônio vizinho, de cujo destino nada sabemos. Tal é a passagem da percepção sem atenção, como deve acontecer inúmeras vezes por dia. Como demonstrará a análise do processo da atenção, a passagem não pode ir muito longe, de onde se deduz que a quantidade perceptiva é pequena.

Em compensação, se um [neurônio] perceptivo recebeu sua catexia da atenção, pode acontecer uma série de coisas, entre as quais se devem ressaltar duas situações - a do pensamento comum e a do pensamento meramente observador. Este último caso parece o mais simples; corresponde mais ou menos ao estado do investigador que fez uma percepção e pergunta a si mesmo: o que significa isso? aonde leva? Então procede da seguinte forma. (Para maior simplicidade, porém, agora terei que substituir a catexia da percepção complexa pela de um único neurônio.) O neurônio perceptivo está hipercatexizado; a quantidade composta de Q e Q flui na direção das melhores facilitações e, de acordo com a resistência e a quantidade, transporá algumas barreiras e catexizará novos neurônios associados; outras barreiras serão superadas, porque a fração [de quantidade] que incide sobre eles é inferior ao limiar. Seguramente, agora serão catexizados neurônios mais numerosos e mais remotos do que no caso de um mero processo associativo destituído de atenção. Também aqui, a corrente acabará desembocando em determinadas catexiastermi nais ou numa só. O resultado da atenção será que, em vez de percepção, aparecerão uma ou várias catexias mnêmicas (ligadas por associação ao neurônio inicial).

Para maior simplicidade, suponhamos que se trate de uma única imagem mnêmica. Se esta pudesse ser novamente catexizada (com atenção) a partir de y, o jogo se repetiria: a Q tornaria a fluir mais uma vez e catexizaria (despertaria) uma nova imagem mnêmica, recorrendo para isso à via de melhor facilitação. Ora, o propósito do pensamento observador é, evidentemente, o de se familiarizar ao máximo com as vias que partem da percepção; pois, desse modo, ele poderá realmente esgotar o conhecimento do objeto perceptivo. Note-se que a forma de pensamento aqui descrita leva à cognição. Por esse motivo, precisa-se, mais uma vez, não só de uma catexia y para as imagens mnêmicas já alcançadas, como também de um mecanismo que leve essa catexia aos lugares certos. De que outra maneira os neurônios y do ego poderiam saber para onde a catexia deve ser dirigida? Um mecanismo de atenção como o que acabamos de descrever mais acima, porém, torna a pressupor indicações de qualidade. Será que elas surgem durante a passagem associativa [de quantidade]? Segundo os nossos pressupostos, normalmente, não como regra. Mas podem ser obtidas por meio de um novo dispositivo que passaremos a descrever. Em geral, as indicações de qualidade emanam apenas da percepção; portanto, trata-se de obter uma percepção da passagem de Q. Se à passagem de Q estivesse vinculada uma descarga (além da [mera] circulação), ela [a descarga] forneceria, como qualquer movimento, uma informação sobre o movimento [em [1]]. Afinal de contas, as próprias indicações de qualidades são apenas informações da descarga [em [1]] (talvez mais adiante [possamos saber] de que tipo). Agora, pode acontecer que, durante a passagem de Q também fique catexizado um neurônio motor, que então descarregará Q, fornecendo uma indicação de qualidade. O problema, porém, é receber descargas desse gênero de todas as catexias. Nem todas são motoras, de modo que deverão, para esse fim, ser colocadas numa facilitação segura com os neurônios motores.

Essa finalidade é preenchida pelas associações da fala, que consistem na vinculação de neurônios y com neurônios utilizados nas representações sonoras, que, por sua vez, se encontram intimamente associadas com as imagens verbais motoras. Essas associações têm sobre as demais a vantagem de possuir outras duas características: são limitadas (escassas em número) e exclusivas. Em todo caso, a excitação passa da imagem-sonora para a imagem-verbal e desta para a descarga. Por conseguinte, quando as imagens mnêmicas são de tal natureza que uma corrente parcial pode partir delas para imagens-sonoras e para as imagens-verbais, a catexia das imagens mnêmicas é acompanhada por informações de descarga, o que constitui uma indicação de qualidade e também, conseqüentemente, indicação de que a lembrança é consciente. Ora, quando o ego pré-catexiza essas imagens-verbais, como antes pré-catexizou as imagens da descarga de  [Ver em [1]], com isso terá criado para si mesmo o mecanismo que lhe permite dirigir a catexia de y para as lembranças que emergem durante a passagem da Q. Eis aqui o pensamento consciente, observador. [1]

Além de possibilitar o conhecimento, as associações da fala efetuam ainda outra coisa de suma importância. As facilitações entre os neurônios y constituem, como sabemos, a memória, ou seja, a representação de todas as influências que y vivenciou a partir do mundo externo. Agora observamos que o próprio ego também catexiza os neurônios y e aciona passagems [de quantidade] que certamente devem deixar traços na forma de facilitações. Mas y não dispõe de nenhum meio para discernir entre esses resultados dos processos de pensamento e os resultados dos processos perceptivos. Talvez seja possível conhecer e reproduzir os processos perceptivos pela sua associação com as descargas de ; mas das facilitações estabelecidas pelo pensamento resta apenas o seu efeito, e não uma lembrança. Uma mesma facilitação de pensamento pode ter sido gerada por um único processo intenso ou por dez processos de menor força. As indicações de descarga verbal são, porém, as que vêm agora compensar essa lacuna; pois equiparam os processos de pensamento com os processos perceptivos, conferindo-lhe realidade e possibilitando a sua lembrança. [Cf. em [1], mas também em [1], adiante.]

Também merece ser considerado o desenvolvimento biológico dessa [espécie de] associação extremamente importante. A inervação da fala é, a princípio, uma via de descarga para y, que atua como válvula de segurança, servindo para regular as oscilações de Q; é uma parte da via que conduz à mudança interna, que representa a única descarga enquanto não se redescobre a ação específica. [Para tudo isso, cf. em [1]-[2].] Essa via adquire uma função secundária ao atrair a atenção da pessoa que auxilia (geralmente o próprio objeto de desejo) para o estado de anseio e aflição da criança; e, desde então, passa a servir ao propósito da comunicação, ficando assim incluída na ação específica. No início da função judicativa, quando as percepções despertam interesse devido a sua possível conexão com o objeto desejado, e seus complexos (como já foi demonstrado [em [1] e [2]] são decompostos num componente não assimilável (a coisa) e num componente conhecido do ego através de sua própria experiência (atributos, atividade) - o que chamamos de compreensão -, dois vínculos emergem [nesse ponto] em relação com o enunciado da fala. Em primeiro lugar, existem objetos - percepções - que nos fazem gritar, porque provocam dor; é imensamente importante que essa associação de um som (que também desperta imagens motoras da própria pessoa) com uma [imagem] perceptiva, que em si já é complexa, ressalta o caráter hostil daquele objeto e serve para dirigir a atenção para a [imagem] perceptiva. Numa situação em que a dor impede o recebimento de boas indicações da qualidade do objeto, a informação sobre o grito do próprio sujeito serve para caracterizar as lembranças que provocam desprazer e para convertê-las em objetos da atenção: está criadaa primeira categoria de lembranças conscientes. Pouco falta agora para inventar a fala. Existem outros objetos que emitem constantemente certos sons - isto é, em cujo complexo perceptivo o som desempenha um papel. Em virtude da tendência à imitação, que surge durante o processo judicativo [ver [1]], é possível encontrar informações de movimento que correspondam a essa imagem sonora. Também essa espécie de lembranças pode agora tornar-se consciente. Só falta associar os sons intencionais com as percepções; feito isso, as lembranças de quando se observam indicações de descarga sonora tornam-se conscientes se como as percepções e podem ser catexizadas a partir de y.

Assim, verificamos ser característico do processo de pensamento cognitivo que, durante sua ocorrência, a atenção seja desde o início dirigida para as indicações de descarga de pensamento, para as indicações da fala. Efetivamente, como se sabe, o chamado pensamento consciente se efetua com o acompanhamento de um leve dispêndio motor.

O processo de seguir a passagem de Q através de uma associação pode, pois, ser continuado indefinidamente, em geral até chegar a elementos associativos terminais “completamente conhecidos”. A determinação dessa via e de seus pontos terminais abarca, então, a “cognição” do que talvez seja uma nova percepção.

Gostaríamos, porém, de ter alguma informação quantitativa sobre esse processo de pensamento cognitivo. Aqui, efetivamente, a percepção está hipercatexizada, em comparação com o processo associativo simples. O próprio processo consiste num deslocamento de Q regulado pela associação com as indicações de qualidade; em cada ponto de parada, a catexia y se renova e, finalmente, há uma descarga a partir dos neurônios motores da via da fala. Agora caber perguntar se esse processo significa uma perda considerável de Q para o ego ou se o dispêndio de pensamento é relativamente pequeno. A resposta a essa pergunta nos é sugerida pelo fato de que a corrente de inervações da fala durante o pensamento é evidentemente mínima. Nós não falamos realmente, nem tampouco nos movemos realmente, quando imaginamos uma imagem motora em movimento. Mas a diferença entre a idéia e o movimento é apenas quantitativa, como nos ensinaram as experiências de leitura do pensamento. Quando pensamos com intensidade, não há dúvida de que chegamos a falar em voz alta. Mas, como é possível promover descargas tão pequenas, se, afinal de contas, as Qs pequenas não conseguem fluir e as grandes se estabilizam en masse através dos neurônios motores? [1]

 

É provável que as quantidades afetadas pelo deslocamento no processo de pensamento também não sejam grandes. Em primeiro lugar, o gasto de grandes Qs significa uma perda para o ego, que deve ser limitada na medida do possível, pois as Qs estão destinadas à exigente ação específica [Cf. [1] e [2]]. Em segundo lugar, uma Q grande percorreria simultaneamente várias vias associativas e não deixaria tempo para a catexização do pensamento, além de causar grande dispêndio. Não resta dúvida, pois, de que a corrente de Q durante o processo de pensamento deve ser pequena. Apesar disso, segundo nossa hipótese, a percepção e a memória durante o processo de pensamento devem estar mais intensamente hipercatexizadas do que durante a percepção simples. Ademais, existem, naturalmente, diferentes graus de intensidade da atenção que só podemos interpretar como diferentes aumentos das Qs catexizantes. Nesse caso, o processo da vigilância observadora [das associações] seria precisamente tanto mais difícil quanto mais intensa fosse a atenção - o que seria tão impraticável que nem sequer podemos admiti-lo.

Temos aqui dois requisitos aparentemente contraditórios: catexia forte e deslocamento fraco. Se quisermos conciliá-los, chegaremos à hipótese do que é, por assim dizer, um estado ligado do neurônio, que, embora na presença de uma catexia elevada, permite apenas uma corrente pequena. Essa hipótese se torna mais plausível ao considerarmos que a corrente de um neurônio é obviamente influenciada pelas catexias que o rodeiam. Ora, o próprio ego é uma massa de neurônios dessa espécie, que se agarram a suas catexias - isto é, que estão em estado ligado, e isso, com toda a certeza, só pode suceder como resultado de seus efeitos mútuos. Podemos, portanto, imaginar que um [neurônio] perceptivo, catexizado com atenção, seja, por assim dizer, [absorvido] temporariamente pelo ego e fique então sujeito à mesma ligação de sua Q, tal como todos os neurônios do ego. Se for mais intensamente catexizado, a quantidade de corrente pode em conseqüência ser diminuída, e não necessariamente aumentada. Talvez possamos supor que, graças a essa ligação, precisamente a Q externa permaneça livre para fluir, enquanto a catexia da atenção permanece ligada; relação essa que não precisa, naturalmente, ser invariável.

Assim, os processos de pensamento seriam mecanicamente caracterizados por esse estado de ligação, que combina uma catexia elevada com uma corrente pequena. É possível conceber outros processos em que a corrente seja proporcional à catexia - os processos com descarga desinibida.

Espero que a hipótese de um estado ligado dessa espécie demonstre ser mecanicamente sustentável. Gostaria de ilustrar um pouco as conseqüências psicológicas dessa hipótese. A princípio, a hipótese parece exposta a uma contradição interna. Se o estado [de ligação] consiste em que, na presença de uma catexia dessa espécie, só restem pequenas Qs para efetuar os deslocamentos, como pode ele [esse estado de ligação] atrair novos neurônios - isto é, fazer com que grandes Qs cheguem até eles? E, reduzindo as mesmas dificuldades a termos mais simples, como pode um ego assim constituído ser capaz de se desenvolver de todo?

Assim, vemo-nos inesperadamente diante do mais obscuro problema: a origem do “ego” - ou seja, de um complexo de neurônios que se mantêm presos a suas catexias, um complexo, por conseguinte, que permanece por breves períodos em nível constante [Ver em [1]]. O exame genético será muito elucidativo. O ego consiste, originariamente, de neurônios nucleares, que recebem Q endógena pelas vias de condução [em [1]] e a descarregam ao longo do curso da alteração interna [em [1]]. A experiência da satisfação produz uma associação entre esse núcleo e uma imagem perceptiva (a imagem de desejo) e a informação de um movimento ([informação da] porção reflexa da ação específica) [em [1]]. A educação e o desenvolvimento desse ego primitivo se efetuam num estado repetitivo de desejo, ou seja, em estados de expectativa [em [1]]. Ele [o ego] primeiro aprende que não deve catexizar as imagens motoras, de modo que resulte a descarga, enquanto não se cumprirem determinadas condições advindas da percepção. Aprende, ademais, que não deve catexizar a idéia desejante acima de certa medida, caso contrário estaria enganando a si mesmo de maneira alucinatória [em [1]]. Se, porém, respeita essas duas restrições e orienta sua atenção para as novas percepções, apresenta uma perspectiva de obter a satisfação que procura. É evidente, portanto, que as barreiras que impedem o ego decatexizar a imagem desejante e a imagem motora acima de certa medida são a causa de uma acumulação de Q no ego e o impelem, talvez, a transferir a sua Q, dentro de certos limites, para os neurônios que se encontram a seu alcance.

Os neurônios nucleares hipercatexizados incidem, em última instância, sobre as vias de condução provenientes do interior [do corpo] que se tornaram permeáveis em virtude de sua contínua relação com Q [em [1]]; e, sendo uma continuação dessas [vias de condução], [os neurônios nucleares] também devem ficar repletos de Q. A Q que neles exista escoará por uma distância proporcional às resistências que se oponham a seu curso, até que as resistências seguintes sejam maiores do que a fração de Q disponível para a corrente. A partir daí, a totalidade da massa catexizada está em equilíbrio, mantida, de um lado, pelas duas barreiras contra a motilidade e o desejo, de outro, pelas resistências dos neurônios mais distantes e, na direção interna, pela pressão constante das vias de condução. No interior dessa estrutura do ego, a catexia não será, de modo algum, igual em todos os pontos; precisa apenas ser proporcionalmente igual - isto é, em relação às facilitações. [Cf. em [1].]

Quando o nível de catexia aumenta no núcleo do ego, a amplitude deste último pode expandir seu âmbito; quando [o nível] diminui, o ego se constrange concentricamente. Em um nível determinado e em determinada amplitude do ego, não há nada a impedir a possibilidade de deslocamento [da catexia] dentro da área catexizada.

Resta apenas averiguar a origem das duas barreiras que garantem o nível constante do ego e, sobretudo, a da barreira contra as imagens motoras, que impede a descarga. Aqui nos deparamos com um ponto decisivo para a nossa concepção de toda a organização. A única coisa que se pode dizer é que quando ainda não existia essa barreira e quando, junto com desejo, ocorria também a descarga motora, o prazer esperado nunca aparecia e a liberação contínua de estímulos endógenos terminava por causar desprazer. Só essa ameaça de desprazer, que ficou vinculada à descarga prematura, pode representar a barreira em questão. No curso posterior do desenvolvimento, a facilitação assumiu uma parte dessa tarefa. Mas ainda persiste o fato de que a Q no ego não catexiza as imagens motoras imediatamente, porque a conseqüência seria uma liberação de desprazer.

Tudo o que chamo de aquisição biológica do sistema nervoso é, na minha opinião, representado por uma ameaça de desprazer dessa espécie, cujo efeito consiste no fato de não serem catexizados os neurônios que levam à liberação do desprazer. Isso constitui a defesa primária [em [1]], conseqüência compreensível da tendência básica do sistema nervoso [em [1]]. O desprazer permanece como o único meio de educação. Confesso, porém, que não sei explicar como a defesa primária, a não-catexização devido a uma ameaça de desprazer, pode ser representada mecanicamente.

Daqui por diante me arriscarei a deixar sem resposta a questão de descobrir uma mecânica para tais regras biológicas; ficarei contente se conseguir permanecer fiel a uma descrição claramente comprovável do curso do desenvolvimento. Uma segunda regra biológica, abstraída do processo de expectativa [Ver em [1]], deve indubitavelmente ser a de que a atenção precisa ser dirigida para indicações de qualidade, porque estas pertencem a percepções que podem levar à satisfação, e de que a pessoa então se deixe guiar pela indicação de qualidade até a percepção recém-surgida. Em suma, o mecanismo da atenção deve sua origem, com certeza, a uma regra biológica dessa natureza; ele [esse mecanismo] regulará o deslocamento das catexias do ego.

Agora se poderia objetar que tal mecanismo, atuando com o auxílio das indicações de qualidade, é rudimentar. O ego poderia ter aprendido biologicamente a catexizar por si só a esfera perceptiva nos estados de expectativa, em vez de apenas esperar que as indicações de qualidade o induzam a essa catexização. Há, porém, dois pontos a ressaltar em justificativa do mecanismo da atenção. (1) O setor das indicações de descarga proveniente de  é evidentemente menor e compreende menos neurônios do que o setor das percepções - quer dizer, de todo o pallium de  que se relacione com os órgãos sensoriais [Cf. em [1]]; o ego, portanto, poupa um gasto extraordinariamente grande ao manter catexizadas as indicações de descarga em lugar das percepções. E (2) as indicações de descarga ou as indicações da realidade, destinadas a servir precisamente à distinção entre as catexias de percepções reais e as catexias de desejo. Vemos, pois, que sempre consiste na catexização que o ego faz dos neurônios em que já apareceu uma catexia.

Para o ego, portanto, a regra biológica da atenção é a seguinte: Quando aparece uma indicação da realidade, aí então a catexia perceptiva que existe simultaneamente deve ser hipercatexizada.

Essa é a segunda regra biológica. A primeira foi a da defesa primária.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

O anseio explica um estado de tensão no ego e, a representação do objeto amado (a ideia de desejo) é catexizada. Essa ideia não deve ser tão intensamente catexizada a ponto de se confundir com a percepção, e sua descarga deve ser adiada até que se comprove que a ideia é real.

O ego consiste no resultado do que se produz com a experiência da satisfação, uma imagem perceptiva e a informação de um movimento. A educação e o desenvolvimento desse ego primitivo se efetuam num estado repetitivo de desejo, em estados de expectativa. O ego aprende primeiro que não deve catexizar as imagens motoras, de modo que resulte a descarga, enquanto que não se cumprem as condições da percepção. Aprende que não deve catexizar a ideia desejante, para não se enganar com alucinações. E se respeita estas restrições orienta sua atenção para novas percepções.

O desprazer permanece como o único meio de educação.

Para o ego a regra biológica da atenção é que quando aparece uma indicação da realidade, a catexia que existe deve ser hipercatexizada.

O indivíduo só toma consciência da sua cidadania e da do outro com o Curso Superior Completo, é na Educação que domesticamos nosso desprazer, onde aprendemos a lidar com nossos significados, sentidos, conceitos, contextos, funcionalidades e comportamentos.

O trabalho como meio de apropriação do mundo e da subjetividade, do inconsciente e da consciência, mesmo que plenamente vigiado pode ser auto-atualizador ou atuo-realizador, para isto ele deve ser motivo de significados, sentidos, conceitos, contextos, funcionalidades e comportamentos.

O desprazer é também o meio responsável para a criação das leis e códigos de normas para a cidadania e para o trabalho, por exemplo, as leis tem sua origem no que o homem faz com ele mesmo e com o mundo, rouba e mata, sua imoralidade, sua Pulsão de Morte, e em todas as suas difusões fundamentadas basicamente no roubo e na morte.

 

MATTANÓ

(04/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que o anseio explica um estado de tensão no ego e, a representação do objeto amado (a ideia de desejo) é catexizada. A educação e o desenvolvimento desse ego primitivo se efetuam num estado repetitivo de desejo, em estados de expectativa. O desprazer permanece como o único meio de educação.

Para o ego a regra biológica da atenção é que quando aparece uma indicação da realidade, a catexia que existe deve ser hipercatexizada.

O desprazer é também o meio responsável para a criação das leis e códigos de normas para a cidadania e para o trabalho, por exemplo, as leis tem sua origem no que o homem faz com ele mesmo e com o mundo, rouba e mata, sua imoralidade, sua Pulsão de Morte, e em todas as suas difusões fundamentadas basicamente no roubo e na morte.

Da mesma forma Jesus usa o estado de tensão e de desprazer para converter o povo, os grandes sacerdotes e os fariseus que depois de ouvirem suas parábolas, compreenderam que deles é que Jesus falava. Então procuravam prendê-lo, mas temiam o povo, porque este o considerava profeta.

 

MATTANÓ

(17/01/2019)

 

 

 

 

[2]

Do ponto a que chegamos até aqui, podemos também deduzir algumas sugestões gerais para a explicação mecânica [dos processos psíquicos] - como, por exemplo, a primeira que mencionamos, no sentido de que a quantidade externa não pode ser representada por Q, isto é, pela quantidade psíquica [em [1]]. Pela descrição do ego e de suas oscilações [em [1]], conclui-se que tampouco o nível [de sua catexia] tem relação com o mundo externo, ou seja, que sua redução ou elevação gerais não modificam (normalmente) a imagem do mundo. Uma vez que essa imagem do mundo externo se baseia em facilitações, isso significa que as oscilações gerais do nível não alteram essas facilitações. Já mencionamos também um segundo princípio: a saber, o de que as quantidades pequenas podem ser deslocadas com mais facilidade quando o nível [de catexia] está alto do que quando está baixo [Ver em [1]]. Eis aí alguns pontos que devem ser levados em consideração ao se buscarem as características do movimento neuronal, que ainda nos é amplamente desconhecido. [1]

Voltemos agora à descrição do processo de pensamento observador ou cognitivo [em [1]], que é distinto do processo de expectativa pelo fato de que [a princípio] as percepções não incidem sobre as catexias de desejo. Nesse caso, são as primeiras indicações da realidade que dirigem a atenção do ego para a região perceptiva que terá de ser catexizada. A passagem da associação de Q que [as percepções] trazem consigo ocorre por neurônios pré-catexizados, e a Q, que está em deslocamento, pode tornar de novo a fluir a cada vez. Durante essa passagem [da associação] geram-se as indicações de qualidade [da fala], em conseqüência das quais a passagem da associação se torna consciente e passível de ser reproduzida.

Aqui se poderia questionar, mais uma vez, a utilidade das indicações de qualidade, [argumentando que] a única coisa que elas fazem é induzir o ego a enviar uma catexia para o ponto em que ela surge na passagem [da associação]. Elas [as indicações de qualidade] não fornecem, porém, essa Q catexizante - no máximo, apenas contribuem para tanto. Mas, sendo assim, o próprio ego pode, sem essa ajuda, fazer com que a sua catexia percorra a passagem da Q.

Não resta dúvida de que assim é, mas nem por isso a consideração das indicações de qualidade se torna redundante. Pois cabe frisar que a regra biológica da atenção enunciada acima é abstraída da percepção [Ver em [1]] e que, a princípio, só se aplica às indicações de qualidade. Também as indicações de descarga por meio da fala são, de certo modo, indicações da realidade - mas da realidade do pensamento, e não da realidade externa, e de modo algum se pôde impor para essas indicações da realidade do pensamento uma regra biológica como a que estamos considerando, já que sua violação não acarretaria nenhuma ameaça constante de desprazer. O desprazer produzido ao se negligenciar a cognição não é tão flagrante como o que advém de ignorar o mundo externo, embora, no fundo, eles sejam o mesmo. Assim, existe realmente também um processo de pensamento observador em que as indicações de qualidade nunca são evocadas, ou o são apenas esporadicamente, e que se torna possível pelo fato de que o ego segue a passagem [da associação] automaticamente com suas catexias. Esse processo de pensamento é, aliás, sem dúvida o mais freqüente, sem ser anormal; é o nosso pensamento do tipo comum, inconsciente, com intrusões ocasionais na consciência - o que é conhecido pelo nome de pensamento consciente com vínculos intermediários inconscientes, que podem, porém, ser conscientizados. [Cf. em [1].]

 

Apesar disso, o valor das indicações de qualidade para o pensamento é indiscutível. Em primeiro lugar, efetivamente, as indicações de qualidade despertadas intensificam as catexias na passagem [da associação] e asseguram a atenção automática que - embora não saibamos como - está evidentemente vinculada à emergência das catexias. Ademais (o que parece ser mais importante), a atenção dirigida para as indicações de qualidade assegura a imparcialidade da passagem [da associação]. Pois é muito difícil para o ego colocar-se na situação de mera “investigação”. O ego quase sempre tem catexias intencionais ou de desejo, cuja presença durante a investigação, como veremos [em [1]], influencia a passagem da associação, produzindo assim um falso conhecimento das percepções. Ora, não existe melhor proteção contra essa falsificação do pensamento do que a de uma Q normalmente deslocável que seja dirigida para o [? pelo] ego até uma região incapaz de manifestar um desvio semelhante na passagem [da associação]. Só existe um expediente dessa espécie - se, a saber, a atenção se dirige para as indicações de qualidade, que não se equivalem a idéias intencionais, cuja catexia, pelo contrário, acentua ainda mais a passagem da associação, ao fazer novas contribuições para a quantidade da catexia.

Portanto, o pensamento que é acompanhado pela catexia das indicações de realidade do pensamento ou das indicações da fala representa a forma mais elevada e segura do processo de pensamento cognitivo.

Em vista da indubitável utilidade do aparecimento de indicações de pensamento, podemos presumir a existência de dispositivos destinados a assegurá-la. Com efeito, as indicações de pensamento não são geradas espontaneamente, sem a participação de , como indicações da realidade. Aqui a observação demonstra que esses dispositivos não se aplicam a todos os processos de pensamento da mesma forma que ao pensamento investigativo. A condição necessária para despertar de todo as indicações de pensamento é, naturalmente, que elas sejam catexizadas pela atenção; essas indicações surgem, nesse caso, em virtude da lei segundo a qual a condução é favorecida entre dois neurônios ligados e simultaneamente catexizados [em [1]]. No entanto, a atração produzida pela pré-catexia das indicaçõesde pensamento só tem até certo ponto força suficiente para lutar contra outras influências. Assim, por exemplo, cada outra catexia perto da passagem [da associação] (catexias intencionais, catexias afetivas) competirão com ela, tornando inconsciente a passagem [da associação]. Um efeito semelhante (como confirma a experiência) será produzido quando as Qs em trânsito são de magnitude considerável, pois elas aumentam a corrente, acelerando com isso toda a passagem [de associação]. A afirmação comum de que “a coisa se passou tão depressa que nem deu tempo de perceber” é indubitavelmente certa. E é universalmente sabido que os afetos podem interferir no surgimento das indicações de pensamento.

Com isso chegamos a uma nova tese sobre a representação mecânica dos processos psíquicos: a saber, de que a passagem [da associação], que não é alterada pelo nível [da catexia] pode ser influenciada pela própria magnitude da Q fluente. De modo geral, uma Q grande segue, na rede de facilitações, vias diferentes das tomadas por uma [Q] pequena. Acho que não será difícil ilustrar essa circunstância:

Para cada barreira há um valor-limiar abaixo do qual nenhuma Q será levada em conta - muito menos, portanto, uma fração dela. Uma Q tão mínima assim ainda se dividirá [em [1]] por outras duas vias para cuja facilitação Q seja suficiente. Se a Q aumentar nesse momento, a primeira via será levada em conta, facilitando a passagem das frações correspondentes; e, então, talvez as catexias do lado oposto ao que é agora uma barreira transponível também consigam se fazer sentir. Ainda existe outro fator capaz de adquirir importância. Talvez possamos presumir que nem todas as vias de um neurônio são igualmente receptivas a Q, e podemos descrever essa diferença como a largura da via. A largura da via é em si mesma independente da resistência, que pode, efetivamente, ser alterada pelas Qs em curso, enquanto a largura da via permanece constante. Se supusermos que, ao aumentar a Q, abre-se uma via capaz de fazer valer sua largura, perceberemos a possibilidade de que a passagem de Q seja fundamentalmente alterada por um aumento da Q em fluxo. A experiência cotidiana parece corroborar expressamente essa conclusão.

Assim, o aparecimento das indicações de pensamento parece estar subordinado à passagem de pequenas Qs. Com isso não pretendo afirmar que qualquer outro tipo de passagem [de Q] deva ficar inconsciente, pois o aparecimento das indicações da fala não é o único método para despertar a consciência.

Como podemos, então, dar uma idéia clara do tipo de pensamento que se torna intermitentemente consciente, com súbitas intrusões na consciência [em [1]]. Afinal de contas, nosso pensamento erradio [não-intencional] comum, embora acompanhado de pré-catexia e de atenção automática, não dá maior importância às indicações de pensamento. Não ficou biologicamente demonstrado que elas sejam imprescindíveis para o processo. Apesar disso, costumam manifestar-se (1) quando a passagem regular [de quantidade] chega a um término ou depara com um obstáculo, e (2) quando [a passagem] suscita uma idéia que, em virtude de outros motivos, evoca indicações de qualidade - isto é, a consciência. A essa altura já se pode interromper a nossa exposição.

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

É o nosso pensamento do tipo comum, inconsciente, com intrusões ocasionais na consciência – o que é conhecido pelo nome de pensamento consciente com vínculos intermediários inconscientes, que podem, porém, ser conscientizados.

O pensamento que é acompanhado pela catexia das indicações de realidade do pensamento ou das indicações da fala representa a forma mais elevada e segura do processo do pensamento cognitivo.

O pensamento é um mundo encoberto onde seu processo cognitivo leva-nos ao comportamento verbal. Este é tanto do falante quanto do ouvinte e dependem das leis do comportamento verbal para serem explicados.

A telepatia e a lavagem cerebral tem suas próprias leis de comportamento verbal como a autoclítica que altera a resposta ou o comportamento, ou seja, a psique, o seu funcionamento, pois interferem no encadeamento comportamental encoberto ou autoclítico, gerando sofrimento bio-psico-social, alterando, portanto, histórias de vidas, decisões, destinos e Trajetórias da Vida.

A telepatia e a lavagem cerebral tem o poder de inserir histórias, comportamentos, regras, decisões auto-destrutivas e destrutivas, até mesmo regras de pedófilos em indivíduos que não eram e não são pedófilos, através da contaminação que é feita violentamente e ilicitamente, passivamente, sem intenção, sem ação da vontade e sem ação do desejo, mas pela dor, violência e terror, como que pelo estupro virtual. Podemos sacrificar a humanidade impondo a ela a violência e a pedofilia, ou a guerra, por exemplo?

Devemos valorizar a telepatia? Ou somos todos iguais?!

 

MATTANÓ

(04/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que é o nosso pensamento do tipo comum, inconsciente, com intrusões ocasionais na consciência – o que é conhecido pelo nome de pensamento consciente com vínculos intermediários inconscientes, que podem, porém, ser conscientizados.

O pensamento que é acompanhado pela catexia das indicações de realidade do pensamento ou das indicações da fala representa a forma mais elevada e segura do processo do pensamento cognitivo.

Da mesma forma muitos de fato são chamados, poucos, porém os escolhidos. Ou seja, muitos são os pensamentos inconscientes e poucos os conscientizados.

 

MATTANÓ

(17/01/2019)

 

 

 

[3]

Existem, evidentemente, outras formas do processo de pensamento que não visam ao fim desinteressado da cognição, mas a outro, de utilidade prática. O estado de expectativa, que foi o ponto de partida de todo o pensamento [Ver em [1]], é um exemplo desse segundo tipo de pensamento. Nele se retém firmemente uma catexia de desejo, enquanto uma segunda catexia, perceptual, se manifesta e é acompanhada pela atenção. Nesse caso, porém, a intenção não consiste em descobrir aonde conduzirá em geral [essa catexia perceptual], e sim em averiguar por que vias ela conduzirá à ativação da catexia de desejo que ficou, nesse meio tempo, firmemente retida. Esse tipo de pensamento - biologicamente, o primeiro - pode ser facilmente representado segundo nossas premissas.

Digamos que V + seja a representação de desejo que se mantém especialmente catexizada, e W, a percepção que terá de ser seguida. O resultado, então, da catexia W com atenção consistirá, antes de mais nada, em que a Q [quantidade pertencente ao sistema de neurônios  (em [1])] flua na direção do neurônio a, o mais facilitado; a partir dali ela prosseguirá, mais uma vez, em direção à melhor facilitação, e assim por diante. Essa tendência, porém, será interrompida pela presença de catexias colaterais. Supondo que, se de a partirem três vias para b, c e d (na ordem respectiva de [qualidade de] facilitação) e se d estiver situado na proximidade da catexia de desejo + V, o resultado bem pode ser que a Q, apesar das facilitações, não flua para c e b, mas sim para d e, dele, para + V; revelando-se assim que a via procurada é W-a -d-+V. Vemos aqui em ação o princípio, que já reconhecemos há muito tempo [em [1]], de que a catexia pode desviar a facilitação e assim agir contra ela e que, conseqüentemente, uma catexia colateral modifica a passagem da Q. Já que as catexias são modificáveis, fica a critério do ego alterar a passagem [da associação] a partir de W na direção de qualquer catexia intencional.

Por “catexia intencional” deve-se entender aqui não uma catexia uniforme, como a que afeta todo um setor no caso da atenção, mas uma catexia que se destaque, que sobressaia ao nível do ego. Provavelmente devamos supor que, nesse tipo de pensamento com catexias intencionais, a Q também flui simultaneamente a partir de + V, de modo que a passagem [da associação] a partir de W pode ser influenciada não só por + V, como também por seus outros pontos de parada. Nessa situação, porém, a via que parte de + V… é conhecida e fixa, mas a via que parte de W… a… precisa ser descoberta. Já que, na realidade, nosso ego sempre alimenta catexias intencionais - amiúde muitas delas ao mesmo tempo - podemos agora compreender a dificuldade do pensamento puramente cognitivo e também a possibilidade, no caso do pensamento prático, de serem alcançadas as mais variadas vias, em momentos diversos, mediante circunstâncias diferentes, por várias pessoas.

No caso do pensamento prático também chegamos a uma apreciação das dificuldades do pensamento, que, sem dúvida, já conhecemos por experiência própria. Voltemos ao nosso exemplo anterior, no qual a corrente de Q fluiria, segundo as facilitações, até b e c, enquanto d estaria marcado por uma ligação estreita com a catexia intencional ou com uma idéia derivada dela. É possível, então, que a influência da facilitação a favor de bc seja tão grande que supere amplamente a atração por d…+V. Apesar disso, a fim de que a passagem [da associação] se dirigisse até +V, seria necessário que a catexia de + V e de suas idéias derivadas fosse também ainda mais intensificada, talvez, para que a atenção voltada para W [a percepção] se modificasse no sentido de alcançar um maior ou menor grau de ligação e um nível de corrente mais favorável à via d…+ V. Um dispêndio dessa natureza, requerido para superar as facilitações boas, com o objetivo de atrair a Q para vias menos facilitadas, porém mais próximas da catexia intencional, corresponde à dificuldade do pensamento.

O papel desempenhado pelas indicações de qualidade do pensamento prático pouco difere do desempenhado por elas no pensamento cognitivo. As indicações de qualidade asseguram e fixam a passagem [da associação], mas não são absolutamente indispensáveis para ela. Se substituirmos os neurônios e as idéias, respectivamente, por complexos de neurônios e de idéias, estaremos diante de uma complicação do pensamento prático que não será possível descrever e perceberemos que, a essa altura, seria desejável [poder] esclarecer as coisas prontamente. [Cf. em [1], adiante.] Durante essa [passagem de associação], porém, as indicações de qualidade, na maioria, não são completamente despertadas, e é precisamente a geração delas que serve para retardar e complicar a passagem [da associação]. Depois que a passagem de determinada percepção para certas catexias intencionais específicas é repetidamente seguida e se encontra estereotipada por facilitações mnêmicas, em geral não há mais motivo para que sejam despertadas as indicações de qualidade.

O objetivo do pensamento prático é a identidade [Cf.em [1]], o desembocar da catexia Q, deslocada na catexia de desejo, que, nesse meio tempo, ficou firmemente retida. Devemos encarar de um ângulo puramente biológico o fato de que, com isso, cessa toda a necessidade de pensar e se possibilita, em vez dela, a inversão total das imagens motoras que foram tocadas durante a passagem [da quantidade], imagens que, em tais circunstâncias, representam um elemento auxiliar justificável da ação específica [em [1]]. Uma vez que, durante a passagem [da associação], a catexia dessas imagens motoras só se deu por ligação, e uma vez que o processo de pensamento partiu de uma imagem perceptual unicamente seguida na qualidade de imagem mnêmica, todo o processo de pensamento pode tornar-se independente tanto do processo de expectativa como da realidade, progredindo até a identidade sem sofrer a menor modificação. Assim, ele [o processo de pensamento] parte de uma simples idéia e, mesmo depois de completado, não leva à ação; mas terá produzido um conhecimento prático, que poderá ser utilizado numa oportunidade real posterior. Com efeito, é conveniente preparar o processo de pensamento prático antecipadamente para enfrentar as condições da realidade, e não ter que improvisá-lo quando ele se faz necessário.

Agora é chegado o momento de fazer uma ressalva a uma hipótese anteriormente formulada [em [1]], a de que a lembrança dos processos de pensamento só é possível graças às indicações de qualidade, já que de outro modo não se poderiam diferenciar seus vestígios dos que são deixados pelas facilitações perceptivas. Ainda continua válida a afirmação de que uma lembrança real não é propriamente modificável por nenhuma quantidade de pensamento a ela dedicada. Por outro lado, é inegável que pensar sobre um tema deixa traços extraordinariamente importantes para qualquer repensar posterior a respeito dele [cf. em [1] a [1]]; e é muito duvidoso que esse resultado provenha exclusivamente de um pensamento acompanhado por indicações de qualidade e consciência. Devem existir, portanto, facilitações de pensamento, mas sem que se obliterem as vias de associação originais. Mas, como só pode haver facilitações de uma espécie, poder-se-ia pensar que essas duas conclusões são incompatíveis. No entanto, deve ser possível encontrar um modo de conciliá-las e explicá-las no fato de que todas as facilitações de pensamento apenas se originaram depois de alcançado um alto nível [de catexia] e que, provavelmente, também só entram em ação na presença de um nível alto, ao passo que as facilitações associativas, originadas durante as passagens [de quantidade] totais ou primárias, tornam a aparecer quando se estabelecerem condições para uma passagem livre [dequantidade]. Por conseguinte, não se pode negar algum possível efeito das facilitações de pensamento sobre as facilitações associativas.

Assim, chegamos à seguinte caracterização suplementar do movimento neuronal desconhecido:

A memória consiste em facilitações [Ver em [1]]. As facilitações não são modificadas por um aumento do nível [da catexia]; mas existem facilitações que só vigoram em determinado nível. A direção tomada pela passagem [de quantidade] não é alterada, a princípio, pela mudança de nível, embora sem dúvida o seja pela quantidade da corrente [em [1]] e pelas catexias colaterais [em [1]]. Quando o nível é alto, as Qs pequenas são as que se deslocam com mais facilidade [em [1]].

Ao lado do pensamento cognitivo e do pensamento prático, devemos distinguir o pensamento reprodutivo, pensamento rememorativo, que em parte coincide com o prático, sem abrangê-lo por completo.

Esse rememorar é a condição prévia de qualquer exame efetuado pelo pensamento crítico: ele acompanha um dado processo de pensamento em sentido reversivo, retrocedendo, possivelmente, até uma percepção - mais uma vez, em contraste com o pensamento prático, sem objetivo determinado - e, ao assim proceder, recorre em grande escala às indicações de qualidade. Nesse curso recessivo, o processo depara com vínculos intermediários até então inconscientes, que não deixaram atrás de si nenhuma indicação de qualidade, mas cujas indicações de qualidade aparecem posteriormente. Isso implica que a própria passagem do pensamento, sem nenhuma indicação de qualidade, deixa vestígios. De fato, alguns casos dão a impressão de que certos trechos da via só podem ser conjeturados, porque seus pontos inicial e terminal são dados por indicações de qualidade.

De qualquer forma, a reprodutibilidade dos processos de pensamento ultrapassa amplamente as indicações de qualidade; eles podem tornar-se conscientes a posteriori, embora o resultado de uma passagem de pensamento talvez deixe rastros com maior freqüência do que as suas etapas intermediárias. [1]

Durante uma passagem de pensamento, seja ele cognitivo, crítico ou prático, podem ocorrer acontecimentos de toda sorte, que merecem uma descrição. O pensamento pode levar ao desprazer ou à contradição. Examinemos o caso em que o pensamento prático, acompanhado de catexias intencionais, leva à liberação de desprazer. [Cf. atrás, ver em [1]]

A experiência mais corriqueira mostra que esse acontecimento resulta num obstáculo ao processo de pensamento. Como é possível, então, que sequer ocorra? Quando uma lembrança, ao ser catexizada, causa desprazer, isso em geral se deve ao fato de que, no momento em que ocorreu a percepção correspondente, esta causou desprazer - isto é, fez parte de uma experiência de dor [em [1]]. A experiência demonstra também que as percepções dessa espécie atraem um alto grau de atenção, mas que não suscitam tanto suas próprias indicações de qualidade quanto as da reação que [as percepções] desencadeiam: estão associadas com suas próprias manifestações de afeto e de defesa [em [1]]. Se seguirmos as vicissitudes dessas percepções depois [de elas se terem transformado] em imagens mnêmicas, constataremos que suas primeiras repetições continuam a despertar afeto e também desprazer, até que, com o correr do tempo, percam essa capacidade. Simultaneamente, elas passam por outra mudança. A princípio, conservam o caráter das qualidades sensoriais; quando não são mais capazes de afeto, perdem também essas [qualidades sensoriais] e se assemelham progressivamente a outras imagens mnêmicas. Quando uma passagem de pensamento esbarra nesse tipo de imagem mnêmica ainda indomada, geram-se as indicações de qualidade correspondentes - muitas vezes de caráter sensorial - com uma sensação de desprazer e uma tendência à descarga cuja combinação caracteriza determinado afeto, interrompendo-se assim a passagem do pensamento.

Que acontece, então, com as lembranças capazes de afeto até serem dominadas? Não se pode supor que o “tempo”, a repetição enfraqueçam sua capacidade de afeto, já que, normalmente, esse fator [a repetição] até contribui para intensificar a associação. É evidente que algo deve acontecer no [curso do] “tempo”, durante as repetições, que provoque essa subjugação [das lembranças]; e esse algo só pode consistir em que alguma relação como ego ou com as catexias do ego adquire poder sobre as lembranças. Se isso é mais demorado nesses casos do que de hábito, pode-se encontrar uma região especial - na origem dessas lembranças capazes de gerar afeto. Sendo traços de experiências de dor, elas foram catexizadas (de acordo com nossa hipótese sobre a dor [em [1]]) com uma Q excessivamente intensa para a liberação de desprazer e afeto. Por conseguinte, deverão receber do ego uma ligação especialmente considerável e reiterada para contrabalançar essa facilitação para o desprazer.

O fato de que a lembrança exibe característica alucinatória durante tanto tempo também requer explicação, que é importante para nosso conceito da alucinação. Aqui é plausível supor que essa capacidade para a alucinação, além da capacidade para o afeto, sejam indicações de que a catexia do ego ainda não exerceu nenhuma influência sobre a lembrança e de que nesta predominam as linhas primárias de descarga e o processo total ou primário.

Somos obrigados a ver no [estado de] alucinação um refluxo de Q para  e também para  [em [1]]; assim, um neurônio ligado não admite semelhante refluxo. Pode-se ainda perguntar se não será a quantidade excessivamente grande da catexia da lembrança que possibilita esse refluxo. Aqui, porém, convém lembrar que essa Q considerável só está presente na primeira vez, na própria experiência da dor. Ao se produzirem as repetições, estamos lidando apenas com uma catexia de força comum, que apesar disso provoca alucinação e desprazer - só podemos supor que graças a uma facilitação extraordinariamente intensa. Daí se conclui que uma quantidade  de magnitude comum é sem dúvida suficiente para produzir o refluxo e excitar a descarga, com o que adquire maior importância o efeito inibidor da ligação promovida pelo ego.

Ao final, portanto, torna-se possível catexizar a lembrança da dor de tal maneira que ela não possa exibir nenhum refluxo e só possa liberar um desprazer mínimo. Estará, então, domada - e por uma facilitação de pensamento suficientemente forte para exercer um efeito permanente e voltar a produzir uma ação inibidora a cada repetição posterior dessa lembrança. A via que conduz à liberação de desprazer aumentará gradativamente suaresistência, graças à falta de uso, pois as facilitações estão sujeitas a uma decadência gradativa (esquecimento). Somente depois disso é que [a] lembrança será tão domada como outra qualquer.

Parece, no entanto, que esse processo de sujeição da lembrança deixa um efeito permanente na passagem do pensamento. Já que antes ela [a passagem de pensamento] era perturbada a cada vez que se ativava a memória e se suscitava o desprazer, há uma tendência ainda hoje a inibir o curso do pensamento assim que a lembrança subjugada gere seu rastro de desprazer. Essa tendência é muito conveniente para o pensamento prático, pois um vínculo intermediário que leve ao desprazer não pode, de modo algum, achar-se na via procurada até a identidade com a catexia de desejo [em [1]]. Assim, surge uma defesa de pensamento primária, que, no pensamento prático, interpreta a liberação de desprazer como um sinal [em [1]] para abandonar uma determinada via - isto é, para dirigir a catexia da atenção para outro lugar. Aqui, mais uma vez, é o desprazer que dirige a corrente de WW, tal como ocorre na primeira regra biológica [em [1]]. Deve-se perguntar por que essa defesa de pensamento não se dirigiu contra a lembrança quando ainda era capaz de gerar afeto. Cabe presumir, porém, que àquela altura uma objeção foi levantada pela segunda regra biológica, que postula a necessidade de atenção sempre que há uma indicação da realidade [Cf. em [1]], e a memória domada ainda era capaz de impor indicações de qualidade reais. Como vemos, as duas regras se harmonizam para atender a uma finalidade prática.

É interessante notar como o pensamento prático se deixa guiar pela regra biológica da defesa. No [pensamento] teórico (cognitivo e verificador), essa regra já não é observada. Isso é compreensível, pois, no pensamento intencional, trata-se de encontrar alguma via ou outra, e, por conseguinte, as que estão ligadas ao desprazer podem ser excluídas, ao passo que, no [pensamento] teórico, cada via deve ser reconhecida.

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

O objetivo do pensamento prático é a identidade, o desembocar da catexia.

O processo de pensamento parte de uma simples ideia e, mesmo depois de completado, não leva à ação, mas terá produzido um conhecimento prático para enfrentar as condições da realidade, e não ter que improvizá-lo quando ele se faz necessário.

Ao lado do pensamento cognitivo e do pensamento prático, devemos distinguir o pensamento reprodutivo, o pensamento rememorativo, que em parte coincide com o pensamento prático, sem abrangê-lo por completo.

Esse rememorar é a condição prévia de qualquer exame efetuado pelo pensamento crítico.

O pensamento pode levar ao desprazer ou à contradição, depende da lembrança, por isso a telepatia e a lavagem cerebral são fenômenos extremamente violentos e perigosos, ruinosos, destrutivos, ameaças reais a humanidade.

O processo de sujeição da lembrança deixa um efeito permanente na passagem do pensamento.

O pensamento prático se deixa guiar pela regra biológica da defesa. No pensamento teórico (cognitivo e verificador), essa regra não existe.

O pensamento, verificamos, aqui demonstra-se muito complexo e rico, com muitos caminhos ou formas de produzir conhecimento e com esse conhecimento alegamos que a telepatia e a lavagem cerebral são crimes que devem ser combatidos, mesmo se produzirem conhecimento entre os seus delinquentes e não entre suas vítimas!

 

MATTANÓ

(05/04/2018)

 

 

Mattanó aponta que o objetivo do pensamento é a identidade e o conhecimento, o pensamento pode ser reprodutivo, rememorativo, crítico, o pensamento pode levar ao desprazer ou à contradição, pois gera conhecimento. Da mesma forma Jesus ensina ¨Pois daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus¨ formando conhecimento e pensamento crítico em seus discípulos.

 

MATTANÓ

(17/01/2019)

 

 

 

 

[4]

Surge aqui nova pergunta de como pode ocorrer um erro no curso do pensamento. Qual é o erro?

Teremos agora que examinar ainda mais minuciosamente o processo de pensamento. O pensamento prático, origem de todos os processos de pensamento, continua sendo, também, o objetivo final deles. Todas as demais formas derivaram dele. É evidentemente vantajoso que a distribuição do pensamento, que se efetua no pensamento prático, possa ocorrer de antemão, sem que seja preciso esperar pelo estado de expectativa [em [1]]: porque (1) isso poupa tempo, que poderá ser aproveitado para a elaboração da ação específica [em [1]] e (2) o estado de expectativa está longe de ser particularmente favorável à passagem do pensamento. O valor da presteza no curto intervalo que separa a percepção da ação se evidencia ao considerarmos a rapidez da mudança das percepções. Se o processo de pensamento persistir por tempo demasiadamente longo, seu produto se tornará inútil nesse ínterim. É por essa razão que “pensamos com antecipação”.

O início dos processos de pensamento derivados [do pensamento prático] é a formação de juízos. O ego que chegou devido a algo que descobre em sua própria organização - graças à mencionada [em [1] e [2]] coincidência parcial entre as catexias perceptuais e as informações provenientes do próprio corpo. Em conseqüência, os complexos perceptuais se dividem em uma parte constante e incompreendida - a coisa - e outra variável, compreensível - os atributos ou movimentos da coisa. Como o complexo-coisa continua reaparecendo em combinação com uma série de complexos-atributo, e estes, por sua vez, em combinação com uma série de complexos-coisa, surge a possibilidade de se elaborarem vias de pensamento que liguem esses dois tipos de complexos ao estado de desejo da coisa, [e de fazê-lo] de uma maneira que seja, por assim dizer, genericamente válida e independente da percepção que é real num dado momento. A atividade de pensamento realizada com juízos, e não com complexos perceptuais desordenados, significa, portanto, uma economia considerável. Devemos deixar de lado a questão de saber se a unidade psicológica assim obtida também é representada na passagem do pensamento por uma unidade neuronal e por uma unidade que não seja a de representação da palavra.

O erro já pode ser introduzido durante a criação de um juízo, pois o complexo-coisa e o complexo-movimento nunca são totalmente idênticos, e entre seus elementos divergentes pode haver alguns cuja desconsideração prejudique o resultado na realidade. Esse defeito do pensamento tem origem no empenho - que efetivamente estamos imitando aqui - em substituir o complexo por um único neurônio, empenho este que é exigido justamente pela imensa complexidade [do material]. [Cf. em [1].] Esses são os erros de juízo ou falhas nas premissas.

Outra fonte de erro pode consistir no fato de as percepções da realidade não serem completamente percebidas por se encontrarem fora do campo dos sentidos. Esses são os erros por ignorância, que nenhum ser humano é capaz de evitar. Quando esse determinante não se aplica, a pré-catexia psíquica pode estar defeituosa (pelo fato de o ego ter-se desviado das percepções), daí resultando percepções imprecisas e passagens de pensamento incompletas. Esses são os erros devidos à insuficiência de atenção.

Se agora tomarmos, como material dos processos de pensamento, complexos já julgados e ordenados, em vez de complexos não sofisticados, surgirá a oportunidade de abreviar o próprio processo de pensamento prático. Com efeito, se se demonstrou que o caminho que liga a percepção à identidade com a catexia de desejo passa por uma imagem motora M, será biologicamente garantido que, uma vez alcançada a identidade, essa M ficará completamente inervada. A simultaneidade da percepção com M cria uma intensa facilitação entre ambas, e uma imagem perceptual imediatamente subseqüente evocará M, sem necessidade de nenhuma passagem associativa. Ao fazer essa afirmação, estamos pressupondo, naturalmente, que seja possível estabelecer a qualquer momento um vínculo entre duas catexias. O que foi originariamente uma conexão de pensamento arduamente estabelecida se transforma, depois, graças a uma catexia simultânea total, em poderosa facilitação. A única pergunta que se pode formular a esse respeito é se sempre é efetuada pela via descoberta originariamente, ou se pode seguir uma outra, de conexão mais direta. Esta última alternativa parece mais provável e mais conveniente, pois evita a necessidade de fixar vias de pensamento que, na verdade, devem ficar livres para outras conexões dos mais diversos tipos. Quando a via de pensamento [originária] não é percorrida, tampouco se deve esperar alguma facilitação nela, e o resultado será mais bem fixado por meio de uma conexão mais direta. A propósito, permanece em aberto a questão de qual seria o ponto de origem dessa nova via. O problema ficaria simplificado se as duas catexias, a da percepção e a de M, tivessem associação comum com uma terceira.

O trecho da passagem do pensamento que vai da percepção até a identidade através de uma M também pode ser ressaltado, e levará a um resultado semelhante se, mais tarde, a atenção fixar a M e a colocar em associação com a percepção, que também terá sido fixada mais uma vez. Essa facilitação do pensamento também se restabelecerá quando houver uma ocorrência real.

Nessa [espécie de] atividade de pensamento a possibilidade de erros não é óbvia à primeira vista. Mas não resta dúvida de que se pode enveredar por uma via de pensamento inadequada e enfatizar um movimento antieconômico, uma vez que, afinal de contas, no pensamento prático a escolha depende exclusivamente de experiências reproduzíveis.

Com o crescente número de lembranças surgem constantemente novas vias de deslocamento. Por esse motivo considera-se vantajoso seguir as diferente percepções até o fim, para descobrir, entre todas as vias, as mais favoráveis, e isso é tarefa do pensamento cognitivo, que, indubitavelmente, aparece como uma preparação para [o pensamento] prático, embora na realidade só se tenha desenvolvido tardiamente deste último. Os resultados dessa [tarefa] são, portanto, úteis para mais de uma espécie de catexia de desejo.

Os erros do pensamento cognitivo são auto-evidentes. Constituem-se da parcialidade, quando não se evitam as catexias intencionais, e da incompletude, quando não se percorrem todas as vias possíveis. Está claro queconstitui uma enorme vantagem aqui que as indicações de qualidade sejam evocadas simultaneamente. Quando esses processos de pensamento [as indicações de qualidade] são selecionados e introduzidos no estado de expectativa, a passagem da associação, do primeiro ao último vínculo, pode dar-se pelas indicações de qualidade, em vez de atravessar toda a série de pensamentos, e nem sequer se torna necessário que a série de qualidades coincida completamente com a série de pensamentos.

O desprazer não desempenha nenhum papel no pensamento teórico, e é também possível com respeito às lembranças subjugadas.

Ainda temos de considerar outro tipo de pensamento: o crítico ou examinador. Essa forma de pensamento é motivada quando, apesar de ter obedecido a todas as regras, o processo de expectativa, seguido pela ação específica, não causa satisfação, e sim desprazer. O pensamento crítico, procedendo vagarosamente, sem nenhum objetivo prático, e recorrendo a todas as indicações de qualidade, procura repetir toda a passagem de Q a fim de detectar alguma falha no pensamento ou algum defeito psicológico. [O pensamento crítico] é um pensamento cognitivo que atua sobre um objeto particular - a saber, uma série de pensamentos. Já vimos em que podem consistir estes últimos [? defeitos psicológicos]; mas em que consistem as falhas lógicas?

Em poucas palavras, na não-observância das regras biológicas que regem a passagem de pensamento. Essas regras determinam para onde deve dirigir-se a cada vez a catexia da atenção e quando o processo de pensamento deve parar. Elas são protegidas pelas ameaças de desprazer, derivam da experiência e podem ser diretamente transpostas para as regras da lógica - o que terá de ser minuciosamente comprovado. Por conseguinte, o desprazer intelectual da contradição, diante do qual se detém a passagem do pensamento verificador, não é outra coisa senão o [desprazer] acumulado para proteger as regras biológicas, agora ativado por um processo de pensamento incorreto.

A existência dessas regras biológicas pode ser comprovada precisamente pela sensação de desprazer diante dos erros lógicos.

Só podemos retratar a ação, de novo, como a catexia plena das imagens motoras que foram destacadas durante o processo de pensamento [em [1]], em adição, talvez, das que fizeram parte do componente volitivo da ação específica (caso tenha havido um estado de expectativa). Aqui se renuncia ao estado de ligação e as catexias de atenção são retiradas. O que sem dúvida acontece em relação ao primeiro [a renúncia ao estado de ligação] é que o nível do ego cai irresistivelmente ante a primeira passagem [da Q] proveniente dos neurônios motores. Não se pode, naturalmente, esperar que o ego seja completamente descarregado em conseqüência de atos isolados, pois isso só poderá acontecer nos atos de satisfação do tipo mais amplo. É instrutivo observar que a ação não ocorre por uma inversão da via percorrida pelas imagens motoras, e sim ao longo de vias motoras especiais; e, por esse motivo, o efeito do movimento não é necessariamente o desejado, caso houvesse uma inversão da mesma via. Por isso é que, no decurso da ação, uma nova comparação deve ser feita entre a informação que chega sobre os movimentos e os [movimentos] pré-catexizados, e é preciso que haja uma excitação das inervações corretivas até se alcançar a identidade. Aqui nos encontramos diante da mesma situação que já ocorreu no caso das percepções, embora com menor multiplicidade, maior rapidez e uma descarga contínua e plena, que não existia [no caso das percepções]. Mas a analogia entre o pensamento prático e a ação eficiente é digna de nota. Isso nos demonstra que as imagens motoras são sensoriais. No entanto, o fato peculiar de serem adotadas novas vias no caso da ação, em lugar de haver uma inversão muito mais simples, parece mostrar que a direção tomada pela condução dos elementos neuronais está firmemente fixada, e talvez, a rigor, que o movimento neuronal pode ter características diferentes nos dois casos.

As imagens motoras são percepções e, como tal, decerto possuem qualidade e despertam a consciência. Não se pode também discutir que, por vezes, elas atraem considerável atenção para si mesmas. Suas qualidades, porém, não são muito marcantes nem provavelmente tão multiformes quanto as do mundo externo; não estão associadas com representações de palavra; pelo contrário, elas próprias servem, em parte, às finalidades dessa associação. No entanto, não procedem de órgãos sensoriais altamente organizados; sua qualidade é sem dúvida monótona [em [1]-[2]].

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

Pensamos com antecipação com o início dos processos de pensamentos derivados (do pensamento prático) é a formação de juízos.

O erro surge no curso do pensamento durante a criação de um juízo, e no fato de as percepções da realidade não serem completamente percebidas por se encontrarem fora do campo dos sentidos, tanto a telepatia quanto a lavagem cerebral produzem erros no curso do pensamento durante a criação de um juízo, em função disto são fenômenos aversivos ao pensamento e a criação de um juízo.

Os erros do pensamento cognitivo constituem-se da incompletude.

A existência de regras biológicas é comprovada pela sensação de desprazer diante dos erros lógicos.

 

MATTANÓ

(05/04//2018)

 

 

Mattanó aponta que o erro surge no curso do pensamento durante a criação de um juízo, e no fato de as percepções da realidade não serem completamente percebidas por se encontrarem fora do campo dos sentidos, da mesma forma aqueles que não acreditavam na ressurreição tiverem um erro em seus pensamentos até Jesus corrigi-los e mostrar ¨porque, depois da ressurreição, nem as mulheres terão maridos, nem os homens terão esposas, mas serão todos como os anjos de Deus no céu. E sobre a ressurreição dos mortos, vós não tendes lido o que Deus disse falando convosco: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó? Deus não é [Deus] dos mortos, mas dos viventes.

 

MATTANÓ

(17/01/2019)

 

 

 

 

 

 

APÊNDICE B: TRECHO DA CARTA 39, ESCRITA POR FREUD A FLIESS EM 1º DE JANEIRO DE 1896

 

 

…Seus comentários sobre a enxaqueca me deram uma idéia cuja conseqüência seria a revisão completa de todas as minhas teorias sobre fyw, o que de momento não posso arriscar-me a fazer. Mas vou ver se consigo esboçá-la.

Meu ponto de partida são os dois tipos de terminações nervosas. As livres [em [1]] só recebem quantidade, que conduzem por soma [em [1]] até y; mas não têm poder de evocar sensações - isto é, de afetar w. Nesse sentido, o movimento neuronal conserva suas características qualitativas [em [1]] genuínas e monótonas. Essas são as vias de toda a quantidade que preenche y, e também, é claro, as vias da energia sexual. As vias de condução nervosa que começam nos órgãos terminais não conduzem quantidade, mas sim a característica qualitativa que lhes é peculiar; nada acrescentam à soma [de quantidade] nos neurônios y, colocando-os apenas em estado e de excitação. Os neurônios w são os neurônios y que só têm capacidade muito reduzida de catexia quantitativa. A condição necessária para que se produza a consciência é a coincidência dessas quantidades mínimas com a qualidade que lhes é fielmente transferida do órgão terminal. Agora [em meu novo esquema], intercalo esses neurônios w entre os neurônios f e os neurônios y, de modo que f transfira sua qualidade para w, e então w não transfere qualidade nem quantidade a y, mas meramente o excita - isto é, indica as vias a serem tomadas pela energia  livre. (Não sei se você vai poder entender essa confusão. Existem, por assim dizer, três formas pelas quais os neurônios se afetam mutuamente: (1) transferindo quantidade entre si, (2) transferindo qualidade entre si e (3) exercendo, segundo determinadas regras, um efeito excitante recíproco.)

Segundo essa visão, os processos perceptuais abrangeriam eo ipso [por sua própria natureza] a consciência e só produziriam seus efeitos psíquicos depois de se tornarem conscientes. Os processos y, em compensação, seriam inconscientes em si e só subseqüentemente adquiririam uma consciência secundária, artificial, ao se vincularem aos processos de descarga e de percepção (associação da fala) [em [1]]. Uma descarga de w, que tive de postular na exposição anterior desse tema [em [1]] já não é mais necessária; a alucinação, cuja explicação sempre criou dificuldades, já não é mais um movimento retroativo da excitação até  [em [1]], mas só até w. Agora fica muito mais fácil compreender a regra da defesa, que não se aplica às percepções, mas apenas aos processos y. O fato de a consciência secundária ficar para trás [ver atrás] possibilita uma descrição simples dos processos neuróticos. Também me livrei do incômodo problema de determinar quanto da intensidade f (dos estímulos sensoriais) é transferida para os neurônios y. A resposta é: em forma direta, absolutamente nada. A Q em y depende exclusivamente da medida em que a atenção livre de y é dirigida pelos neurônios w.

Essa nova hipótese também se ajusta melhor ao fato de que os estímulos sensoriais objetivos são tão ínfimos que, de acordo com o princípio da constância, é difícil derivar dessa fonte a força de vontade. Em compensação, [na nova teoria] a sensação não traz nenhum Q para y; a fonte da energia de y são as vias de condução orgânicas [endógenas].

O conflito entre a condução orgânica puramente quantitativa e os processos excitados em y pela sensação consciente me permite explicar também a liberação de desprazer, da qual necessito para o recalcamento nas neuroses sexuais.

No que se refere ao seu lado da questão, essa nova colocação abre a possibilidade de que ocorram estados de estimulação em órgãos que não produzem sensações espontâneas (embora devam ser, indubitavelmente, sensíveis à pressão), mas que por ação reflexa (isto é, pela influência do equilíbrio) podem instigar distúrbios a partir de outros centros nervosos. Com efeito, a idéia de que existe uma ligação mútua entre os neurônios ou entre os centros nervosos sugere também que os sintomas motores da descarga são de vários tipos. É provável, também, que os atos voluntários sejam determinados por uma transferência de Q, uma vez que descarregam a tensão psíquica. Além disso, existem descargas de prazer, espasmos etc. que não explico pela transferência de Q para o centro motor, mais sim pela liberação dela nesse centro, em decorrência de uma possível diminuição da Q de ligação no centro sensorial pareado com ele. Isso nos ofereceria a tão almejada distinção entre os movimentos “voluntários e espásticos”, e ao mesmo tempo permitiria explicar todo um grupo de efeitos somáticos secundários - na histeria, por exemplo.

Quanto aos processos puramente quantitativos de transferência para y, existe uma possibilidade de eles atraírem a consciência para si mesmos - mas só se essas conduções de Q atenderem às condições necessárias para produzir dor. Dessas condições, a essencial talvez seja a suspensão da soma e um afluxo contínuo [de Q] até y durante algum tempo. Certos neurônios w tornam-se hipercatexizados, produzem um sentimento de desprazer e levam também a atenção a se fixar nesse ponto particular. Assim se teria de conceber a “modificação nevrálgica” como um afluxo de Q emanada de determinado órgão e aumentada acima de certo limite, até deixar anulada a soma, levando à hipercatexização dos neurônios w e à fixação da energia y livre. Como vê, chegamos à enxaqueca; a precondição necessária seria a existência de regiões nasais no estado de estimulação que você comprovou a olho nu. O excesso de Q se distribuiria por diversas vias subcorticais antes de chegar a y. Uma vez feito isso, o fluxo de Q, agora contínuo, força seu acesso a y e, de acordo com a regra da atenção [em [1]], a energia y livre aflui para a sede da erupção.

Agora cabe perguntar qual é a fonte dos estados de estimulação nos órgãos nasais. A idéia que logo se oferece é a de que o órgão qualitativo dos estímulos olfativos seria a membrana de Schneider, enquanto o órgão quantitativo (diferente daquele) seriam os corpora cavernosa. As substâncias olfativas, como você mesmo crê e as flores nos ensinam, são produtos de degradação do metabolismo sexual; funcionariam como estímulos sobre os dois órgãos citados. Durante a menstuação e em outros processos sexuais, o organismo produz uma Q aumentada dessas substâncias - desses estímulos, portanto. Teríamos que estabelecer se elas atuam sobre os órgãos nasais através do ar expiratório ou por intermédio dos vasos sangüíneos; provavelmente por via sangüínea, já que antes dos ataques de enxaqueca não se tem nenhuma sensação olfativa subjetiva. Por conseguinte, o nariz receberia, por assim dizer, informações sobre os estímulos olfativos internos por intermédio dos corpora cavernosa, tal como recebe os estímulos externos através da membrana de Schneider: seríamos vítimas do próprio corpo. Essas duas formas de se produzir a enxaqueca - espontaneamente ou por odores e emanações tóxicas humanas [em [1]], seriam portanto equivalentes, e seus respectivos efeitos poderiam ser provocados a qualquer momento por soma.

Desse modo, a tumefação dos órgãos nasais de quantidade seria uma espécie de adaptação do órgão sensorial, resultante do incremento do estímulo interno, à semelhança do que ocorre, na adaptação dos órgãos sensoriais verdadeiros (qualitativos), no arregalar dos olhos e concentrá-los em algum foco de atenção, no aguçar dos ouvidos, e assim por diante.

Talvez não seja muito difícil transpor para essa concepção as outras fontes de enxaqueca e estados semelhantes, embora eu ainda não saiba como se poderia fazer isso. Em todo caso, é mais importante verificar a idéia em relação ao nosso tema principal.

Dessa maneira, numerosas idéias médicas antigas e obscuras adquirem vida e valor.

 

APÊNDICE C: A NATUREZA DA Q

 

Não há mistério em torno da primeira das duas “idéias principais” com que Freud inicia o Projeto (cf. em [1]) - o neurônio e a Q. A segunda, porém, exige certo exame, principalmente quando tudo leva a crer que foi a precursora de um conceito que iria desempenhar um papel fundamental na psicanálise. Aqui não nos interessa decifrar o enigma especial, mencionado atrás, na Introdução do Editor, da diferença entre Q e Q. Vamos nos ocupar agora é da Q (como o próprio Freud declara explicitamente no fim do primeiro parágrafo do Projeto) - uma Q que possui alguma conexão especial com o sistema nervoso.

Como foi, portanto, que Freud imaginou essa Q no outono de 1895?

À parte a circunstância óbvia de que ele tencionava apresentá-la como uma coisa concreta - “sujeita às leis gerais do movimento” (em [1]) -, logo se percebe que ela surge em duas formas distintas. A primeira consistiria na Q em fluxo, passando através de um neurônio ou indo de um neurônio a outro. Isso vem descrito de vários modos: por exemplo, “a excitação neuronal em estado fluente” (em [1]), “uma Q fluente” (em [1]), “corrente” (em [1]), ou “passagem de excitação” (em [1]). A segunda, que é mais estática, é demonstrada por “um neurônio catexizado, cheio de” Q (em [1]).

A importância dessa distinção entre os dois estados da Q só se faz sentir gradativamente no Projeto, ficando-se quase tentado a supor que o próprio Freud só se deu conta dela quando escrevia a obra. O primeiro indício dessa importância está relacionado com a análise do mecanismo para apontar a diferença entre alucinações e percepções, e o papel desempenhado nesse mecanismo pela ação inibidora procedente do ego (Seções 14 e 15 da Parte I). Os pormenores dessa ação inibidora (a interferência de uma “catexia colateral”, dirigida por uma catexia da atenção vinda do ego) são fornecidos em [1]-[2], e seu efeito consiste em modificar o estado da Q em fluxo para um estado de Q estática num neurônio. Essa distinção é depois (em [1]-[2]) relacionada com a distinção entre o processo primário (não-inibido) e o secundário (inibido). Outra forma ainda de descrevê-la surge pouco mais adiante (em [1]), com a noção de que a catexia colateral interveniente exerce um efeito “de ligação” sobre a Q. Mas é só na Parte III do Projeto(em [1]) que ficam expostas todas as implicações da diferença entre um estado ligado e um estado móvel da Q. A necessidade da hipótese de haver dois estados de Q aparece, àquela altura, relacionada à análise do mecanismo do pensamento de Freud, que requer um estado no neurônio “que, embora na presença de uma catexia elevada, permite apenas uma corrente pequena” (em [1]).

Assim, a Q pareceria mensurável de dois modos: pela altura do nível da catexia dentro de um neurônio e pelo índice de fluxo entre as catexias. Isso foi ocasionalmente interpretado como prova de que Freud realmente acreditava que a Q fosse simplesmente eletricidade e que as duas maneiras de medi-la corresponderiam à amperagem e à voltagem. É bem verdade que, cerca de um ano e meio antes da redação do Projeto, em seu primeiro artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1894a), ele já tinha feito uma vaga comparação entre algo que seria precursor da Q e “uma carga elétrica espalhada pela superfície de um corpo” (ver em [1]). É também verdade que Breuer, em sua contribuição teórica para os Estudos sobre a Histeria (1895d) (publicados apenas alguns meses antes de ser escrito o Projeto), dedicou um pouco de espaço a uma analogia elétrica com as “excitações” nas “vias condutoras do cérebro” (ver em [1]-[2]). Apesar disso, não há nenhuma palavra no Projeto que sugira que houvesse qualquer idéia desse tipo na mente de Freud. Ao contrário, ele não cansa de salientar que desconhecemos a natureza do “movimento neuronal”. (Ver, por exemplo, em [1], [2] e [3].)

É forçoso reconhecer que existem certas partes obscuras na descrição fornecida no Projeto para a natureza do estado “ligado” e seu mecanismo. Uma das mais intrigantes diz respeito ao processo de “juízo” e ao papel nele desempenhado por uma catexia procedente do ego. Essa influência está descrita das maneiras mais variadas - como “catexia colateral”, ou “pré-catexia”, ou “hipercatexia” - e se encontra intrinsecamente implicada na idéia de uma catexia da atenção. A princípio (ver em [1], por exemplo), parece que a atenção é apenas um meio de dirigir as catexias colaterais para o lugar onde são necessárias. Mas em outros trechos (ver em [1], por exemplo), tem-se a impressão de que a hipercatexia da atenção constitui, em si mesma, a força que produz o estado “ligado”.

Efetivamente, todo o problema da relação da atenção com a Q requer um exame meticuloso. (A “energia livre de ”, como Freud parece denominá-la na carta enviada a Fliess em 1º de janeiro de 1896, Apêndice B) A atenção é mencionada discretamente na Seção 14 da Parte I (em [1]), mas logo começa a mostrar sua importância (na Seção 19 da Parte I e na Seção 6 da Parte II), até se tornar, na Parte III, um elemento quase predominante. Apesar disso, nos escritos posteriores de Freud, a “atenção”, depois de ser citada esporadicamente, é quase relegada ao esquecimento. Alguns vestígios anônimos, porém, persistem até o fim, em dois sentidos bastante diferentes que, em última análise, remontam ao Projeto. O primeiro e mais óbvio se relaciona com o “teste de realidade”, cuja história foi integralmente documentada na Nota do Editor Inglês à discussão metapsicológica dos sonhos (1917d), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, em [1]-[2], IMAGO Editora, 1974. O outro, menos evidente, mas talvez mais importante, diz respeito justamente ao papel desempenhado pela atenção ou por alguma instância semelhante na determinação da diferença entre a Q em seu estado ligado e seu estado livre, e, além disso, entre os processos primário e secundário. Essa função da atenção é discutida numa nota de rodapé do Editor Inglês a “O Inconsciente” (1915e), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, em [1], IMAGO Editora, 1974. E há uma alusão indireta nas derradeiras obras de Freud, Moisés e o Monoteísmo (1939a), Edição Standard Brasileira, Vol. XXIII, em [1], IMAGO Editora, 1975, e o Esboço de Psicanálise (1940a) [1938], ibid., em [1].

Sejam quais forem os pormenores exatos do mecanismo responsável pela transformação da Q livre em Q ligada, é evidente que Freud atribuía a maior importância à distinção propriamente dita. “Em minha opinião”, escreveu ele em “O Inconsciente”, “essa distinção representa a compreensão mais profunda a que chegamos até agora quanto à natureza da energia nervosa” (ibid., Vol. XIV, em [1]).

Essa citação talvez também nos anime a esperar que os escritos posteriores de Freud esclareçam nosso problema imediato da natureza da Q. A Q propriamente dita, com esse nome, jamais reaparece, embora não haja dificuldade em reconhecê-la sob várias cognominações, a maioria das quais já usadas no Projeto. Uma delas, sobretudo, a “energia psíquica”, exige atenção, pois enfatiza o que parece constituir uma mudança vital sofrida pelo conceito. Q não é mais “uma coisa concreta”, tornou-se uma coisa psíquica. Não há nenhuma referência a “energia psíquica” no Projeto (“Energia y”, mencionada na Carta 39, cf. em [1] etc., significa apenas “energia procedente do sistema neuronal y”.) Mas já passa ao uso comum em A Interpretação dos Sonhos. Apesar disso, a mudança não implica um abandono completo de uma base física. Muito embora Freud declare (Edição Standard Brasileira, Vol. V, [1], IMAGO Editora, 1972), que “permanecerá no campo psicológico”, um exame minucioso revela traços da antiga formação neurológica. Mesmo no famoso trecho do livro sobre o chiste (1905c, Edição Standard Brasileira, Vol. VIII, [1]), onde ele parece dar as costas aos neurônios e fibras nervosas, na realidade deixa a porta totalmente aberta para uma explicação fisiológica. Com efeito, na frase do artigo sobre “O Inconsciente” (1915e) citada acima, Freud fala em “energia nervosa”, e não em “energia psíquica”. Por outro lado, na edição alemã de suas obras completas publicada em 1925, ele modificou duas palavras na última frase dos Estudos sobre a Histeria (1895d), de “sistema nervoso” para “vida mental” (Edição Standard Brasileira, Vol. II, [1], IMAGO Editora, 1974). Mas, por maior ou menor que tenha sido essa revolução, não resta dúvida de que muitas características fundamentais da Q sobreviveram em forma transfigurada, até o fim, nos escritos de Freud: prova disso são as inúmeras referências nas notas de rodapé destas páginas.

Um problema particularmente interessante surge na relação da Q com as pulsões. Estas quase nunca são citadas pelo nome no Projeto. É evidente, porém, que são as sucessoras da “Q endógena” ou das “excitações endógenas”. Um pouco da história da evolução dos pontos de vista de Freud em relação às pulsões é dado na Nota do Editor Inglês a “As Pulsões (“OsInstintos”) e Suas Vicissitudes”, Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, [1] e seguintes, IMAGO Editora, 1974, e, sobretudo, da história das várias classificações que fez delas, primeiro em pulsões libidinais e do ego e, depois, em pulsões libidinais e destrutivas. Um aspecto que não foi mencionado aqui e que apresenta um interesse todo especial no presente contexto é a sugestão, duas vezes lançada por Freud, da possibilidade de uma “energia psíquica indiferente”, que poderia assumir qualquer das duas formas de pulsão: cf. o artigo sobre o narcisismo (1914c), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, [1], IMAGO Editora, 1974, e Edição Standard Brasileira, Vol. XIX, [1]. Essa “energia psíquica indiferente” se parece muito com um retorno à Q.

Essas incertezas subseqüentes a respeito das pulsões (entidades que, tal como a Q, se encontram “na fronteira entre o mental e o físico”) e de sua classificação nos lembram que Freud sempre se mostrou muito coerente ao salientar nossa ignorância quanto à natureza básica da Q ou de seja lá qual for o nome que se lhe dê. Isso, como já vimos (em [1]) é repetido com insistência no próprio Projeto. Mas a questão volta uma infinidade de vezes nas obras posteriores: para citar apenas algumas, em A Interpretação dos Sonhos (1900a), Edição Standard Brasileira, Vol. V, [1], IMAGO Editora, 1972, no artigo sobre “O Inconsciente” (1915e), ibid., Vol. XIV, [1], e em Moisés e o Monoteísmo (1939a), ibid., Vol. XXIII, [1]. Essa conclusão está expressa com a maior clareza possível em Além do Princípio do Prazer (1920g), Edição Standard Brasileira, Vol. XVIII, [1]: “A indefinição de todas as nossas discussões sobre o que descrevemos como metapsicologia se deve, naturalmente, ao fato de nada sabermos da natureza do processo excitatório que ocorre nos elementos dos sistemas psíquicos, e a não nos sentirmos autorizados a formular qualquer hipótese sobre o assunto. Estamos, conseqüentemente, trabalhando o tempo todo com um grande fator desconhecido, que somos obrigados a transportar para cada fórmula nova”. Tudo indica, portanto, que a nossa investigação tem que terminar aqui e que não há outro remédio senão seguir Freud, deixando insóluvel o problema da Q.

Mas, embora a natureza fundamental da Q fosse ignorada por Freud, alguns de seus traços essenciais sempre foram pressupostos e reiterados por ele até o fim de sua vida. Se nos voltarmos para uma das primeiras referências a ela, citada em [1], no primeiro artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1894a), Edição Standard Brasileira, Vol. III, [1], encontraremos essa entidade desconhecida descrita como algo “que possui todas as características de uma quantidade (embora não tenhamos meios de medi-la) capaz de aumento, diminuição, deslocamento e descarga”. Não resta a menor dúvida de que a misteriosa Q recebeu seu nome pela própria razão de possuir essas características.

Desde o início, as considerações quantitativas sempre tiveram que ser levadas em conta em vários pontos das teorias de Freud. Por exemplo, em “A Etiologia da Histeria” (1896c) lê-se que “na etiologia das neuroses, as precondições quantitativas são tão importantes quanto as qualitativas: há valores liminares que têm de ser transpostos antes que a enfermidade possa tornar-se manifesta” (Edição Standard Brasileira, Vol. III, [1]). Mais importante, porém, é o fato de que a quantidade está implícita em toda a teoria do conflito como causa não só das neuroses, mas também de toda uma série de estados mentais. Há uma porção de trechos em que esse fato se torna explícito: por exemplo, em “Tipos de Desencadeamento da Neurose” (1912c), Edição Standard Brasileira, Vol. XII, [1]; na Conferência XXIII das Conferências Introdutórias (1916-17), idem, Vol. XVI, [1]-[2]; em “Alguns Mecanismos Neuróticos” (1922b), idem, Vol. XVIII,  [1], e em “Análise Terminável e Interminável” (1937c), Edição Standard Brasileira, Vol. XXIII, [1], IMAGO Editora, 1975. Neste último caso, a importância dos fatores quantitativos está relacionada com a situação terapêutica; mas isso também já ocorrera quarenta anos antes, na contribuição de Freud aos Estudos sobre a Histeria (1895d), Edição Standard Brasileira, Vol. II, pág. [1], IMAGO Editora, 1974. Em seu grande artigo sobre “O Inconsciente” (1915e), Freud usou o termo “econômico” como equivalente de “quantitativo”, ibid., Vol. XIV, pág. [1], IMAGO Editora, 1974, e a partir daí passou a usar as duas palavras como sinônimos. Estaremos certos, portanto, em considerar a nossa enigmática Q, seja qual for a sua natureza última, como a precursora de um dos três fatores fundamentais de metapsicologia.

 

 

 

O RELEITOR (MATTANÓ):

Assim como Freud, Mattanó também estudou o que ele chamou de Pulsão Nasal e Pulsão Tátil, mas não deu importância, pois não concordou com suas primeiras ideias e seus primeiros textos que ele mesmo descartou e perdeu entre 2000 e 2002.

O meu sonho é que os meus escritos ajudem a manter a paz social no Brasil e no mundo, que ajudem a humanidade e não que atrapalhem a humanidade!

 

Osny Mattanó Júnior

Londrina, 05 de abril de 2018.

 

 

Mattanó aponta que suas teorias e sua Psicanálise do Amor segue os dois maiores mandamentos na Lei: ¨Amarás ao Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento¨. E o segundo mandamento é ¨Amarás o teu próximo como a ti mesmo¨. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os profetas.

Mattanó ama ao Senhor de todo o seu coração, alma e entendimento; e ama ao próximo como ama a si mesmo, por isso sabe o que é melhor para o miserável e para o pobre e diferentemente, para o excluído e abandonado, ou o drogado e prostituído(a) e violentado(a), para o rico, para o normal, para o egoísta, para o doente, para o aflito e o agonizante, para o ambicioso, para criminoso e para o delinquente, para o desempregado, para o sem oportunidades, para aquele que crê em si mesmo, para aquele que precisa de ajuda e para aquele que precisa de muita ajuda, para aquele que precisa de trabalho, educação, formação, aprendizagem, aprender a aprender e se soltar das jaulas do abandono e do vício, para aquele que precisa de um pouco mais como um cobrador de impostos, ¨daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus¨, se Deus ou seu Amor não precisam de riquezas por que os servos teriam que ser ricos? Não precisamos de riquezas! Precisamos do necessário como as aves do céu, as cobras e as serpentes, os leões e os carneiros, somos tesouros de Deus e não tesouros de piratas e de assassinos ou de ladrões.

 

MATTANÓ

(17/01/2019)

 

 

 

 

Mattanó fala de uma sexologia em suas Novas Teorias e Epistemologias, mas em sua Psicanálise do Amor aborda uma Matrimonologia construída a partir da encíclica apostólica pós-sinodal, Amoris Laetitia, do Papa Francisco.

 

MATRIMONIOLOGIA

VIDA A DOIS:

Papa Francisco traz 10 dicas de como ter um matrimônio mais feliz

1 – Paciência

É importante ter clareza de que “a paciência é uma qualidade do Deus da Aliança, que convida a imitá-lo também na vida familiar”, tarefa não fácil, mas possível no amor, pois, no matrimônio e na família, a pessoa “mostra-se paciente, quando não se deixa levar pelos impulsos interiores e evita agredir”, ou seja, procura viver com paciência os incômodos e infortúnios do dia a dia. Dessa forma, compreende-se mais sobre o verdadeiro amor ao descobrir, como aponta o Papa, que, “se não cultivarmos a paciência, sempre acharemos desculpas para responder com ira, acabando por nos tornarmos pessoas que não sabem conviver, antissociais incapazes de dominar os impulsos; e a família tornar-se-á um campo de batalha.”

2 – Atitude de serviço

O Papa, diante das palavras de São Paulo sobre a paciência, que é “acompanhada por uma atividade, uma reação dinâmica e criativa perante os outros”, assinala para uma atitude de serviço. Essa prontidão para servir “indica que o amor beneficia e promove os outros”, ocasionando urgência no seio familiar e matrimonial de pessoas boas que vivam a bondade nas ações cotidianas na doação ao próximo, pois a atitude de serviço nos lança em direção ao outro no amor concreto, eficiente e sem reservas, “permitindo-nos experimentar a felicidade de dar, a nobreza e a grandeza de doar-se de forma superabundante, sem calcular nem reclamar pagamento, mas apenas pelo prazer de dar e servir”.

3 – Curando a inveja

Compreender que “a inveja é uma tristeza pelo bem alheio, demonstrando que não nos interessa a felicidade dos outros, porque estamos concentrados exclusivamente no nosso bem-estar” é imprescindível para vencer tal fraqueza, pois, “no amor, não há lugar para sentir desgosto pelo bem do outro (cf. At 7,9; 17,5)”, mas sim alegria por tais realizações e conquistas. Assim, como ensina o Pontífice, “o verdadeiro amor aprecia os sucessos alheios, não os sente como uma ameaça, libertando-se do sabor amargo da inveja”.

4 – Sem ser arrogante nem se orgulhar

orgulho e a arrogância “não se trata apenas duma obsessão por mostrar as próprias qualidades; é pior: perde-se o sentido da realidade, a pessoa considera-se maior do que é, porque se crê mais espiritual ou sábia”. No matrimônio e “na vida familiar, não pode reinar a lógica do domínio de uns sobre os outros, nem a competição para ver quem é mais inteligente ou poderoso, porque essa lógica acaba com o amor”. Por isso, muitas vezes, é necessário ser humilde, atitude que “faz parte do amor, porque, para poder compreender, desculpar ou servir os outros de coração, é indispensável curar o orgulho e cultivar a humildade”.

5 – Amabilidade

Ser amável “significa que o amor não age rudemente, não atua de forma inconveniente, não se mostra duro no trato. Os seus modos, as suas palavras, os seus gestos são agradáveis; não são ásperos nem rígidos”. A predisposição para um encontro verdadeiro com o outro requer amabilidade, porém, “isso não é possível quando reina um pessimismo que põe em evidência os defeitos e erros alheios, talvez para compensar os próprios complexos. Um olhar amável faz com que nos detenhamos menos nos limites do outro, podendo assim tolerá-lo e unirmo-nos num projeto comum, apesar de sermos diferentes”. Já que “ser amável não é um estilo que o cristão possa escolher ou rejeitar: faz parte das exigências irrenunciáveis do amor, por isso todo o ser humano está obrigado a ser afável com aqueles que o rodeiam”.

6 – Desprendimento

desapego ou desprendimento conduz para um compreensão de que “muitas vezes, para amar os outros, é preciso primeiro amar a si mesmo. Todavia, esse hino à caridade afirma que o amor não procura o seu próprio interesse ou não procura o que é seu”. O Papa diz que “uma pessoa que seja incapaz de se amar a si mesma sente dificuldade em amar os outros”, já que, nas Escrituras, a orientação é que “não tenha cada um em vista os próprios interesses, mas todos e cada um exatamente os interesses dos outros (cf. Fl 2,4).” Essa postura em relação ao próximo demonstra um amor que pode transbordar gratuitamente “sem nada esperar em troca” (Lc 6, 35), até chegar ao amor maior, que é “dar a vida” pelos outros.

7 – Sem violência interior

Para superar um interior violento é preciso “à paciência, que evita reagir bruscamente perante as fraquezas ou erros dos outros”, pois a “reação interior de indignação provocada por algo exterior”, seja nas várias situações da vida, “trata-se de uma violência interna, uma irritação recôndita que nos põe à defesa perante os outros, como se fossem inimigos molestos a evitar”. Diante dessa ira excessiva, a solução mostrada pelo Papa é que “nunca se deve terminar o dia sem fazer as pazes na família.” Desta forma, entende-se que “a indignação é saudável, quando nos leva a reagir perante uma grave injustiça; mas é prejudicial, quando tende a impregnar todas as nossas atitudes para com os outros”.

8 – Perdão

“Se permitirmos a entrada de um mau sentimento no nosso íntimo, damos lugar ao ressentimento que se aninha no coração.” Contrário a esse ressentir, o Papa Francisco instrui que o perdão é “fundado numa atitude positiva que procura compreender a fraqueza alheia e encontrar desculpas para a outra pessoa, como Jesus que diz: Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem (cf. Lc 23, 34)”. Porém, a tendência humana “costuma ser a de buscar cada vez mais culpas, imaginar cada vez mais maldades, supor todo o tipo de más intenções; assim, o ressentimento vai crescendo e cria raízes”; e no matrimônio, “qualquer erro ou queda do cônjuge pode danificar o vínculo de amor e a estabilidade familiar”. Então, “se aceitamos que o amor de Deus é incondicional, que o carinho do Pai não se deve comprar nem pagar, então poderemos amar sem limites, perdoar aos outros, ainda que tenham sido injustos para conosco.”

9 – Alegrar-se com os outros

O Papa diz que “alegra-se com o bem do outro, quando se reconhece a sua dignidade, quando apreciam-se as suas capacidades e as suas boas obras”. Mas “isso é impossível para quem sente a necessidade de estar sempre a comparar-se ou a competir, inclusive com o próprio cônjuge, até o ponto de se alegrar secretamente com os seus fracassos”. O matrimônio e “a família deve ser sempre o lugar onde uma pessoa que consegue algo de bom na vida, sabe que ali se vão congratular com ela”. Assim, diz o Pontífice que “nosso Senhor aprecia de modo especial quem se alegra com a felicidade do outro”.

10 – Tudo desculpa

Tudo desculpar “implica limitar o juízo, conter a inclinação para se emitir uma condenação dura e implacável: não condeneis e não sereis condenados (cf. Lc 6, 37)”. Assim, no amor cotidiano matrimonial, “os esposos, que se amam e se pertencem, falam bem um do outro, procuram mostrar mais o lado bom do cônjuge do que as suas fraquezas e erros. Em todo caso, guardam silêncio para não danificar a sua imagem. Mas não é apenas um gesto externo, brota duma atitude interior. Também não é a ingenuidade de quem pretende não ver as dificuldades e os pontos fracos do outro, mas a perspectiva ampla de quem coloca essas fraquezas e erros no seu contexto; lembra-se de que esses defeitos constituem apenas uma parte, não são a totalidade do ser do outro: um fato desagradável no relacionamento não é a totalidade desse relacionamento”. Por fim, o Papa fala que “o amor convive com a imperfeição, desculpa-a e sabe guardar silêncio perante os limites do ser amado”.

Papa Francisco

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL

 

AMORIS LÆTITIA

DO SANTO PADRE

FRANCISCO

AOS BISPOS

AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS ÀS PESSOAS CONSAGRADAS

AOS ESPOSOS CRISTÃOS

E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA


A

 
  • AlegriA do Amor que se vive nas famí- lias é também o júbilo da Ape-

sar dos numerosos sinais de crise no matrimónio

  • como foi observado pelos Padres sinodais – « o desejo de família permanece vivo, especialmente entre os jovens, e isto incentiva a Igreja ».1 Como resposta a este anseio, « o anúncio cristão sobre a família é verdadeiramente uma boa notícia ».2

 

  1. O caminho sinodal permitiu analisar a si- tuação das famílias no mundo actual, alargar a nossa perspectiva e reavivar a nossa consciência sobre a importância do matrimónio e da famí- lia. Ao mesmo tempo, a complexidade dos temas tratados mostrou-nos a necessidade de continuar a aprofundar, com liberdade, algumas questões doutrinais, morais, espirituais e A refle- xão dos pastores e teólogos, se for fiel à Igreja, honesta, realista e criativa, ajudar-nos-á a alcan- çar uma maior clareza. Os debates, que têm lugar nos meios de comunicação ou em publicações e mesmo entre ministros da Igreja, estendem-se desde o desejo desenfreado de mudar tudo sem

 

1  iii  AssembleiA  gerAl  extrAordináriA   do  sínodo dos bispos, Relatio Synodi (18 de Outubro de 2014), 2.

2  xiV  AssembleiA  gerAl  ordináriA  do  sínodo  dos

bispos, Relatio Finalis (24 de Outubro de 2015), 3.


suficiente reflexão ou fundamentação até à atitu- de que pretende resolver tudo através da aplica- ção de normas gerais ou deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas.

 

  1. Recordando que o tempo é superior ao es- paço, quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resol- vidas através de intervenções magisteriais. Na- turalmente, na Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e práxis, mas isto não impede que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela. Assim há-de acontecer até que o Espírito nos conduza à verdade completa (cf. Jo 16, 13), isto é, quando nos introduzir per- feitamente no mistério de Cristo e pudermos ver tudo com o seu Além disso, em cada país ou região, é possível buscar soluções mais incul- turadas, atentas às tradições e aos desafios locais. De facto, « as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (...), se quiser ser obser- vado e aplicado, precisa de ser inculturado ».3

 

3  FrAncisco,  Discurso  no  encerramento  da  XIV  Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9; cf. pont. comissão bíblicA, Fé e cultura à luz da Bíblia. Actas da Sessão Plenária de 1979 da Pontifícia Comissão Bíblica (Turim 1981); conc.  ecum.  VAt.  ii,  Const.  past.  sobre  a  Igreja  no  mundo contemporâneo Gaudium et spes, 44; João pAulo ii, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990), 52: AAS 83 (1991), 300; FrAncisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 69.117: AAS 105 (2013), 1049.1068-1069.


  1. Em todo o caso, devo dizer que o caminho sinodal se revestiu duma grande beleza e propor- cionou muita Agradeço tantas contribuições que me ajudaram a considerar, em toda a sua amplitude, os problemas das famílias do mundo inteiro. O conjunto das intervenções dos Padres, que ouvi com atenção constante, pareceu-me um precioso poliedro, formado por muitas preocu- pações legítimas e questões honestas e since- ras. Por isso, considerei oportuno redigir uma Exortação Apostólica pós-sinodal que recolha contribuições dos dois Sínodos recentes sobre a família, acrescentando outras considerações que possam orientar a reflexão, o diálogo ou a práxis pastoral, e simultaneamente ofereçam coragem, estímulo e ajuda às famílias na sua doação e nas suas dificuldades.

 

  1. Esta Exortação adquire um significado espe- cial no contexto deste Ano Jubilar da Misericór- dia, em primeiro lugar, porque a vejo como uma proposta para as famílias cristãs, que as estimule a apreciar os dons do matrimónio e da família e a manter um amor forte e cheio de valores como a generosidade, o compromisso, a fidelidade e a paciência; em segundo lugar, porque se propõe encorajar todos a serem sinais de misericórdia e proximidade para a vida familiar, onde esta não se realize perfeitamente ou não se desenrole em paz e

 

  1. No desenvolvimento do texto, começarei por uma abertura inspirada na Sagrada Escritura,


que lhe dê o tom adequado. A partir disso, consi- derarei a situação actual das famílias, para manter os pés assentes na terra. Depois lembrarei alguns elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a família, seguindo-se os dois ca- pítulos centrais, dedicados ao amor. Em seguida destacarei alguns caminhos pastorais que nos le- vem a construir famílias sólidas e fecundas se- gundo o plano de Deus, e dedicarei um capítulo à educação dos filhos. Depois deter-me-ei sobre um convite à misericórdia e ao discernimento pastoral perante situações que não correspon- dem plenamente ao que o Senhor nos propõe; e, finalmente, traçarei breves linhas de espiritua- lidade familiar.

 

  1. Devido à riqueza que os dois anos de refle- xão do caminho sinodal ofereceram, esta Exor- tação aborda, com diferentes  estilos,  muitos e variados temas. Isto explica a sua inevitável extensão. Por isso, não aconselho uma leitura geral Poderá ser de maior proveito, tanto para as famílias como para os agentes de pastoral familiar, aprofundar pacientemente uma parte de cada vez ou procurar nela aquilo de que precisam em cada circunstância concre- ta. É provável, por exemplo, que os esposos se identifiquem mais com o quarto e quinto capí- tulo, que os agentes pastorais tenham especial interesse pelo capítulo sexto, e que todos se sin- tam muito interpelados pelo oitavo. Espero que cada um, através da leitura, se sinta chamado a


cuidar com amor da vida das famílias, porque elas « não são um problema, são sobretudo uma oportunidade ».4

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4  FrAncisco, Discurso no Encontro com as Famílias, em San- tiago de Cuba (22 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 24/IX/2015), 14.


CAPÍTULO I

À  luZ  dA  pAlAVrA

 

 

  1. A Bíblia aparece cheia de famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares, desde as primeiras páginas onde entra em cena a famí- lia de Adão e Eva, com o seu peso de violência mas também com a força da vida que continua (cf. Gn 4), até às últimas páginas onde aparecem as núpcias da Esposa e do Cordeiro (cf. Ap 21, 2.9). As duas casas de que fala Jesus, construí- das ora sobre a rocha ora sobre a areia (cf. Mt 7, 24-27), representam muitas situações familiares, criadas pela liberdade de quantos habitam nelas, porque – como escreve o poeta – « toda a casa é um candelabro».5Agora entremos numa dessas casas, guiados pelo Salmista, através dum canto que ainda hoje se proclama nas liturgias nupciais quer judaica quer cristã:

« Felizes os que obedecem ao Senhor e andam nos seus caminhos.

Comerás do fruto do teu próprio trabalho: assim serás feliz e viverás contente.

A tua esposa será como videira fecunda na intimidade do teu lar;

 

5 Jorge luís borges, « Calle desconocida », in Fervor de Buenos Aires (Buenos Aires 2011), 23.


os teus filhos serão como rebentos de oliveira ao redor da tua mesa.

Assim vai ser abençoado

o homem que obedece ao Senhor.

O Senhor te abençoe do monte Sião!

Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida,

e chegues a ver os filhos dos teus filhos. Paz a Israel! » (Sl 128/127, 1-6).

 

tu e A tuA esposA

  1. Cruzemos então o limiar desta casa serena, com a sua família sentada ao redor da mesa em dia de No centro, encontramos o casal for- mado pelo pai e a mãe com toda a sua história de amor. Neles se realiza aquele desígnio primordial que o próprio Cristo evoca com decisão: « Não lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los ho- mem e mulher?» (Mt 19, 4). E retoma o mandato do livro do Génesis: « Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne » (Gn 2, 24).

 

  1. Aqueles dois primeiros capítulos grandio- sos do Génesis oferecem-nos a representação do casal humano na sua realidade Naquele trecho inicial da Bíblia, sobressaem al- gumas afirmações decisivas. A primeira, citada sinteticamente por Jesus, declara: « Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher » (1, 27). Surpreendentemente, a « imagem de Deus» tem


como paralelo explicativo precisamente o casal

« homem e mulher ». Quererá isto significar que o próprio Deus é sexuado ou tem a seu lado uma companheira divina, como acreditavam algumas religiões antigas? Não, obviamente! Sabemos com quanta clareza a Bíblia rejeitou como ido- látricas tais crenças, generalizadas entre os cana- neus da Terra Santa. Preserva-se a transcendência de Deus, mas, uma vez que é ao mesmo tempo o Criador, a fecundidade do casal humano é « ima- gem» viva e eficaz, sinal visível do acto criador.

 

  1. O casal que ama e gera a vida é a verdadeira

« escultura » viva (não a de pedra ou de ouro, que o Decálogo proíbe), capaz de manifestar Deus criador e salvador. Por isso, o amor fecundo che- ga a ser o símbolo das realidades íntimas de Deus (cf. Gn 1, 28; 9, 7; 17, 2-5.16; 28, 3; 35, 11; 48,

3-4). Devido a isso a narrativa do Génesis, aten- do-se à chamada « tradição sacerdotal», aparece permeada por várias sequências genealógicas (cf. Gn 4, 17-22.25-26; 5; 10; 11, 10-32; 25, 1-4.12-

17.19-26; 36): de facto, a capacidade que o casal humano tem de gerar é o caminho por onde se desenrola a história da salvação. Sob esta luz, a relação fecunda do casal torna-se uma imagem para descobrir e descrever o mistério de Deus, fundamental na visão cristã da Trindade que, em Deus, contempla o Pai, o Filho e o Espírito de amor. O Deus Trindade é comunhão de amor; e a família, o seu reflexo vivente. A propósito, são elucidativas estas palavras de São João Paulo II:


« O nosso Deus, no seu mistério mais íntimo, não é solidão, mas uma família, dado que tem em Si mesmo paternidade, filiação e a essência da fa- mília, que é o amor. Este amor, na família divina, é o Espírito Santo ».6 Concluindo, a família não é alheia à própria essência divina.7 Este aspecto trinitário do casal encontra uma nova represen- tação na teologia paulina, quando o Apóstolo re- laciona o casal com o « mistério » da união entre Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 21-33).

 

  1. Mas Jesus, na sua reflexão sobre o ma- trimónio, alude a outra página do Génesis – o capítulo 2 – onde aparece um retrato admirável do casal com detalhes Escolhemos apenas dois. O primeiro é a inquietação vivida pelo homem, que busca « uma auxiliar seme- lhante » (vv. 18.20), capaz de resolver esta soli- dão que o perturba e que não encontra remédio na proximidade dos animais e da criação intei- ra. A expressão original hebraica faz-nos pensar numa relação directa, quase « frontal » – olhos nos olhos –, num diálogo também sem palavras, porque, no amor, os silêncios costumam ser mais eloquentes do que as palavras: é o encontro com um rosto, um « tu » que reflecte o amor divino e constitui – como diz um sábio bíblico – « o pri- meiro dos bens, uma ajuda condizente e uma co- luna de apoio » (Sir 36, 24). Ou como exclamará a

 

6 Homilia na Eucaristia celebrada em Puebla de los Ánge- les (28 de Janeiro de 1979), 2: AAS 71 (1979), 184.

7 Cf. ibidem.


mulher do Cântico dos Cânticos, numa confissão estupenda de amor e doação na reciprocidade, « o meu amado é para mim e eu para ele (...). Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim » (2, 16; 6, 3).

 

  1. Deste encontro, que cura a solidão, surge a geração e a família. Este é um segundo detalhe, que podemos evidenciar: Adão, que é também o homem de todos os tempos e de todas as regiões do nosso planeta, juntamente com a sua esposa dá origem a uma nova família, como afirma Je- sus citando o Génesis: « Unir-se-á à sua mulher e serão os dois um só» (Mt 19, 5; Gn 2, 24). No original hebraico, o verbo « unir-se » indica uma estreita sintonia, uma adesão física e interior, a ponto de se utilizar para descrever a união com Deus, como canta o orante: « A minha alma está unida a Ti» (Sl 63/62, 9). Deste modo, evoca-se a união matrimonial não apenas na sua dimensão sexual e corpórea, mas também na sua doação voluntária de amor. O fruto desta união é « tor- nar-se uma só carne », quer no abraço físico, quer na união dos corações e das vidas e, porventura, no filho que nascerá dos dois e, em si mesmo, há-de levar as duas « carnes », unindo-as genética e espiritualmente.

 

os teus Filhos como rebentos de oliVeirA

  1. Retomemos o canto do Salmista. Lá, den- tro da casa onde o homem e a sua esposa es- tão sentados à mesa, aparecem os filhos que os


acompanham « como rebentos de oliveira » (Sl 128/127, 3), isto é, cheios de energia e vitalida- de. Se os pais são como que os alicerces da casa, os filhos constituem as « pedras vivas » da família (cf. 1 Ped 2, 5). É significativo que, no Antigo Testamento, a palavra que aparece mais vezes de- pois da designação divina (YHWH, o « Senhor ») é « filho » (ben), um termo que remete para o ver- bo hebraico que significa « construir » (banah). Por isso, noutro Salmo, exalta-se o dom dos fi- lhos com imagens que aludem quer à edificação duma casa, quer à vida social e comercial que se desenrolava às portas da cidade: « Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os cons- trutores. (...) Olhai: os filhos são uma bênção do Senhor; o fruto das entranhas, uma verdadeira dádiva. Como flechas nas mãos de um guerreiro, assim são os filhos nascidos na juventude. Feliz o homem que deles encheu a sua aljava! Não será envergonhado pelos seus inimigos, quando com eles discutir às portas da cidade» (Sl 127/126, 1.3-5). É verdade que estas imagens reflectem a cultura duma sociedade antiga, mas a presença dos filhos é, em todo o caso, um sinal de plenitu- de da família na continuidade da mesma história de salvação, de geração em geração.

 

  1. Sob esta luz, podemos ver outra dimensão da família. Sabemos que, no Novo Testamen- to, se fala da « igreja que se reúne em casa » (cf. 1 Cor 16, 19; Rm 16, 5; Col 4, 15; Flm 2). O espaço vital duma família podia transformar-se em igreja


 

doméstica, em local da Eucaristia, da presença de Cristo sentado à mesma mesa. Inesquecível é a cena descrita no Apocalipse: « Olha que Eu es- tou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo» (3, 20). Esboça-se assim uma casa que abriga no seu interior a presença de Deus, a oração comum e, por conseguinte, a bênção do Senhor. Isto mesmo se afirma no Sal- mo 128, que nos serviu de base: « Assim vai ser abençoado o homem que obedece ao Senhor. O Senhor te abençoe do monte Sião! » (vv. 4-5).

 

  1. A Bíblia considera a família também como o local da catequese dos Vê-se isto clara- mente na descrição da celebração pascal (cf. Ex 12, 26-27; Dt 6, 20-25) – mais tarde explicitado na haggadah judaica –, concretamente no diálogo que acompanha o rito da ceia pascal. Eis como um Salmo exalta o anúncio familiar da fé: « O que ouvimos e aprendemos e os nossos antepas- sados nos transmitiram, não o ocultaremos aos seus descendentes; tudo contaremos às gerações vindouras: as glórias do Senhor e o seu poder, e as maravilhas que Ele fez. Ele estabeleceu um preceito em Jacob, instituiu uma lei em Israel. E ordenou aos nossos pais que a ensinassem aos seus filhos, para que as gerações futuras a conhe- cessem e os filhos que haviam de nascer a contas- sem aos seus próprios filhos » (Sl 78/77, 3-6). Por isso, a família é o lugar onde os pais se tornam os primeiros mestres da fé para seus filhos. É uma


 

tarefa « artesanal », pessoa a pessoa: « Se amanhã o teu filho te perguntar (...), dir-lhe-ás... » (Ex 13, 14). Assim, entoarão o seu canto ao Senhor as diferentes gerações, « os jovens e as donzelas, os velhos e as crianças» (Sl 148, 12).

 

  1. Os pais têm o dever de cumprir, com se- riedade, a sua missão educativa, como ensinam frequentemente os sábios da Bíblia (cf. Pr 3, 11- 12; 6, 20-22; 13, 1; 22, 15; 23, 13-14; 29, 17). Os filhos são chamados a receber e praticar o man- damento « honra o teu pai e a tua mãe» (Ex 20, 12), querendo o verbo « honrar » indicar o cum- primento das obrigações familiares e sociais em toda a sua plenitude, sem os transcurar com des- culpas religiosas (cf. Mc 7, 11-13). Com efeito, « o que honra o pai alcança o perdão dos pecados, e quem honra a sua mãe é semelhante ao que acu- mula tesouros» (Sir 3, 3-4).

 

  1. O Evangelho lembra-nos também que os filhos não são uma propriedade da família, mas espera-os o seu caminho pessoal de vida. Se é verdade que Jesus Se apresenta como modelo de obediência a seus pais terrenos, submetendo-Se a eles (cf. Lc 2, 51), também é certo que Ele faz ver que a escolha de vida do filho e a sua pró- pria vocação cristã podem exigir uma separação para realizar a entrega de si mesmo ao Reino de Deus (cf. Mt 10, 34-37; Lc 9, 59-62). Mais ainda! Ele próprio, aos doze anos, responde a Maria e a José que tem uma missão mais alta a realizar para além da sua família histórica (cf. Lc 2, 48-50). Por


 

isso, exalta a necessidade de outros laços mais profundos, mesmo dentro das relações familia- res: « Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática » (Lc 8, 21). Por outro lado, Jesus presta tal aten- ção às crianças – consideradas, na sociedade do Médio Oriente antigo, como sujeitos sem parti- culares direitos e inclusivamente como parte da propriedade familiar –, que chega ao ponto de as propor aos adultos como mestres, devido à sua confiança simples e espontânea nos outros. « Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este me- nino será o maior no Reino do Céu » (Mt 18, 3-4).

 

um rAsto de soFrimento e sAngue

  1. O idílio, que o Salmo 128 apresenta, não nega uma amarga realidade que marca toda a Sa- grada Escritura: é a presença do sofrimento, do mal, da violência, que dilaceram a vida da família e a sua comunhão íntima de vida e de Não é de estranhar que o discurso de Cristo sobre o matrimónio (cf. Mt 19, 3-9) apareça inserido numa disputa a respeito do divórcio. A Palavra de Deus é testemunha constante desta dimensão obscura que assoma já nos primórdios, quando, com o pecado, a relação de amor e pureza entre o homem e a mulher se transforma num domínio:

« Procurarás apaixonadamente o teu marido, mas ele te dominará » (Gn 3, 16).


 

  1. É um rasto de sofrimento e sangue que atravessa muitas páginas da Bíblia, a começar pela violência fratricida de Caim contra Abel e dos vá- rios litígios entre os filhos e entre as esposas dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacob, passando pelas tragédias que cobrem de sangue a família de Da- vid, até às numerosas dificuldades familiares que regista a história de Tobias ou a confissão amar- ga de Job abandonado: Deus « afastou de mim os meus irmãos, e os meus amigos retiraram-se como estranhos. (...) A minha mulher sente re- pugnância do meu hálito e tornei-me fétido para os meus próprios filhos » (Jb 19, 17).

 

  1. O próprio Jesus nasce numa família mo- desta, que à pressa tem de fugir para uma terra estrangeira. Entra na casa de Pedro, onde a sua sogra está doente (cf. Mc 1, 29-31), deixa-Se en- volver no drama da morte na casa de Jairo ou no lar de Lázaro (cf. Mc 5, 22-24.35-43; Jo 11, 1-44), ouve o pranto desesperado da viúva de Naim pelo seu filho morto (cf. Lc 7, 11-15); atende o grito do pai do epiléptico numa pequena povoação ru- ral (cf. Mc 9, 17-27). Encontra-Se com publica- nos, como Mateus ou Zaqueu, nas suas próprias casas (cf. Mt 9, 9-13; Lc 19, 1-10), e também com pecadoras, como a mulher que invade a casa do fariseu (cf. Lc 7, 36-50). Conhece as ansiedades e as tensões das famílias, inserindo-as nas suas parábolas: desde filhos que deixam a própria casa para tentar alguma aventura (cf. Lc 15, 11-32) até filhos difíceis com comportamentos inexplicá-


 

veis (cf. Mt 21, 28-31) ou vítimas da violência (cf. Mc 12, 1-9). Interessa-Se ainda pela situação em- baraçosa que se vive numas bodas pela falta de vinho (cf. Jo 2, 1-10) ou pela recusa dos convida- dos a participar nelas (cf. Mt 22, 1-10), e conhece também o pesadelo que representa a perda duma moeda numa família pobre (cf. Lc 15, 8-10).

 

  1. Nesta breve resenha, podemos comprovar que a Palavra de Deus não se apresenta como uma sequência de teses abstractas, mas como uma companheira de viagem, mesmo para as famílias que estão em crise ou imersas nalguma tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho, quando Deus « enxugar todas as lágrimas dos seus olhos, e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor » (Ap 21, 4).

 

o Fruto do teu próprio trAbAlho

  1. No início do Salmo 128, o pai é apresenta- do como um trabalhador que pode, com a obra das suas mãos, manter o bem-estar físico e a se- renidade da sua família: « Comerás do fruto do teu próprio trabalho: assim serás feliz e viverás contente» (v. 2). O facto de o trabalho ser uma parte fundamental da dignidade da vida humana deduz-se das primeiras páginas da Bíblia, quan- do se afirma que Deus « colocou [o homem] no Jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar» (Gn 2, 15). Temos aqui a imagem do trabalhador que transforma a matéria e aprovei- ta as energias da criação, fazendo nascer o « pão


 

de tanta fadiga» (Sl 127/126, 2), para além de se cultivar a si mesmo.

 

  1. O trabalho torna possível simultaneamente o desenvolvimento da sociedade, o sustento da fa- mília e também a sua estabilidade e fecundidade:

« Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida e chegues a ver os fi- lhos dos teus filhos » (Sl 128/127, 5-6). No livro dos Provérbios, realça-se também a tarefa da mãe de família, cujo trabalho aparece descrito nas suas múltiplas mansões diárias, merecendo o elogio do marido e dos filhos (cf. 31, 10-31). O próprio apóstolo Paulo sentia-se orgulhoso por ter vivido sem ser um fardo para os outros, porque traba- lhou com as suas mãos, garantindo-se deste modo o sustento (cf. Act 18, 3; 1 Cor 4, 12; 9, 12). Estava tão convencido da necessidade do trabalho, que estabeleceu esta férrea norma para as suas comu- nidades: « Se alguém não quer trabalhar, também não coma » (2 Ts 3,10; cf. 1 Ts 4, 11).

 

  1. Dito isto, compreende-se que o desempre- go e a precariedade laboral gerem sofrimento, como atesta o livro de Rute e como lembra Jesus na parábola dos trabalhadores sentados, em ócio forçado, na praça da localidade (cf. Mt 20, 1-16), ou como pôde verificar pessoalmente vendo-Se muitas vezes rodeado de necessitados e Isto mesmo vive tragicamente a sociedade actual em muitos países, e esta falta de emprego afecta, de várias maneiras, a serenidade das famílias.


 

  1. Também não podemos esquecer a degene- ração que o pecado introduz na sociedade, quan- do o homem se comporta como um tirano com a natureza, devastando-a, utilizando-a de forma egoísta e até Como consequência, temos, simultaneamente, a desertificação do solo (cf. Gn 3, 17-19) e os desequilíbrios económicos e sociais, contra os quais se levanta, abertamente, a voz dos profetas, desde Elias (cf. 1 Re 21) até chegar às palavras que o próprio Jesus pronuncia contra a injustiça (cf. Lc 12, 13-21; 16,1-31).

 

A ternurA do AbrAço

  1. Como distintivo dos seus discípulos, Cris- to pôs sobretudo a lei do amor e do dom de si mesmo aos outros (cf. Mt 22, 39; Jo 13, 34), e fê-lo através dum princípio que um pai ou uma mãe costumam testemunhar na sua própria vida:

« Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelos seus amigos » (Jo 15, 13). Frutos do amor são também a misericórdia e o perdão. Nesta linha, é emblemática a cena que nos apre- senta uma adúltera na explanada do templo de Jerusalém, primeiro, rodeada pelos seus acusado- res e, depois, sozinha com Jesus, que não a con- dena mas convida-a a uma vida mais digna (cf. Jo 8, 1-11).

 

  1. No horizonte do amor, essencial na expe- riência cristã do matrimónio e da família, des- taca-se ainda outra virtude, um pouco ignorada nestes tempos de relações frenéticas e superfi-


 

ciais: a ternura. Detenhamo-nos no terno e den- so Salmo 131, onde – como se observa, aliás, noutros textos (cf. Ex 4, 22; Is 49, 15; Sl 27/26,

10) – a união entre o fiel e o seu Senhor é expres- sa com traços de amor paterno e materno. Lá aparece a intimidade delicada e carinhosa entre a mãe e o seu bebé, um recém-nascido que dorme nos braços de sua mãe depois de ter sido ama- mentado. Como indica a palavra hebraica gamùl, trata-se dum menino que acaba de mamar e se agarra conscientemente à mãe que o leva ao colo. É, pois, uma intimidade consciente, e não mera- mente biológica. Por isso canta o Salmista: « Es- tou sossegado e tranquilo, como criança saciada ao colo da mãe » (Sl 131/130, 2). Paralelamente, podemos ver outra cena na qual o profeta Oseias coloca na boca de Deus, visto como pai, estas palavras comoventes: « Quando Israel era ainda menino, Eu amei-o (...), Eu ensinava Efraim a andar, trazia-o nos meus braços (...). Segurava-

-o com laços de ternura, com laços de amor, fui

para ele como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto; inclinei-me para ele para lhe dar de comer» (Os 11, 1.3-4).

 

  1. Com este olhar feito de fé e amor, de graça e compromisso, de família humana e Trindade divina, contemplamos a família que a Palavra de Deus confia nas mãos do marido, da esposa e dos filhos, para que formem uma comunhão de pessoas que seja imagem da união entre o Pai, o Filho e o Espírito Por sua vez, a actividade


 

geradora e educativa é um reflexo da obra cria- dora do Pai. A família é chamada a compartilhar a oração diária, a leitura da Palavra de Deus e a comunhão eucarística, para fazer crescer o amor e tornar-se cada vez mais um templo onde habita o Espírito.

 

  1. Cada família tem diante de si o ícone da família de Nazaré, com o seu dia-a-dia feito de fadigas e até de pesadelos, como quando teve que sofrer a violência incompreensível de Herodes, experiência que ainda hoje se repete tragicamen- te em muitas famílias de refugiados descartados e Como os Magos, as famílias são con- vidadas a contemplar o Menino com sua Mãe, a prostrar-se e adorá-Lo (cf. Mt 2, 11). Como Maria, são exortadas a viver, com coragem e serenidade, os desafios familiares tristes e entusiasmantes, e a guardar e meditar no coração as maravilhas de Deus (cf. Lc 2, 19.51). No tesouro do coração de Maria, estão também todos os acontecimentos de cada uma das nossas famílias, que Ela guarda solicitamente. Por isso pode ajudar-nos a inter- pretá-los de modo a reconhecer a mensagem de Deus na história familiar.


 


 

 

 

 

 

CAPÍTULO II

A reAlidAde e os desAFios dAs FAmíliAs

 

  1. O bem da família é decisivo para o futu- ro do mundo e da Inúmeras são as análi- ses feitas sobre o matrimónio e a família, sobre as suas dificuldades e desafios actuais. É salutar prestar atenção à realidade concreta, porque « os pedidos e os apelos do Espírito ressoam tam- bém nos acontecimentos da história » através dos quais « a Igreja pode ser guiada para uma com- preensão mais profunda do inexaurível mistério do matrimónio e da família ».8 Não tenho a pre- tensão de apresentar aqui tudo aquilo que pode- ria ser dito sobre os vários temas relacionados com a família no contexto actual. Mas, dado que os Padres sinodais ofereceram um panorama da realidade das famílias de todo o mundo, consi- dero oportuno recolher algumas das suas contri- buições pastorais, acrescentando outras preocu- pações derivadas da minha própria visão.

 

A situAção ActuAl dA FAmíliA

  1. « Fiéis ao ensinamento de Cristo, olhamos a realidade actual da família em toda a sua comple-

 

8 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 4: AAS 74 (1982), 84.


 

xidade, nas suas luzes e sombras. (...) Hoje, a mu- dança antropológico-cultural influencia todos os aspectos da vida e requer uma abordagem analí- tica e diversificada ».9 Já no contexto de várias dé- cadas atrás, os bispos da Espanha reconheciam uma realidade doméstica com mais espaços de liberdade, « com uma distribuição equitativa de encargos, responsabilidades e tarefas (...). Valo- rizando mais a comunicação pessoal entre os es- posos, contribui-se para humanizar toda a vida familiar. (...) Nem a sociedade em que vivemos nem aquela para onde caminhamos permitem a sobrevivência indiscriminada de formas e mode- los do passado ».10 Mas « estamos conscientes da direcção que vão tomando as mudanças antropo- lógico-culturais, em razão das quais os indivíduos são menos apoiados do que no passado pelas es- truturas sociais na sua vida afectiva e familiar ».11

 

  1. Por outro lado, « há que considerar o cres- cente perigo representado por um individualis- mo exagerado que desvirtua os laços familiares e acaba por considerar cada componente da família como uma ilha, fazendo prevalecer, em certos casos, a ideia dum sujeito que se constrói segundo os seus próprios desejos assumidos com carácter absoluto ».12 « As tensões causadas por

 

9 Relatio Synodi 2014, 5.

10  conFerênciA episcopAl espAnholA, Matrimonio y fami- lia (6 de Julho de 1979), 3.16.23.

11  Relatio Finalis 2015, 5.

12 Relatio Synodi 2014, 5.


 

uma cultura individualista exagerada da posse e fruição geram no seio das famílias dinâmicas de impaciência e agressividade ».13 Gostaria de acrescentar o ritmo da vida actual, o stresse, a organização social e laboral, porque são factores culturais que colocam em risco a possibilidade de opções permanentes. Ao mesmo tempo, en- contramo-nos perante fenómenos ambíguos. Por exemplo, aprecia-se uma personalização que aposte na autenticidade em vez de reproduzir comportamentos prefixados. É um valor que pode promover as diferentes capacidades e a es- pontaneidade, mas, se for mal orientado, pode criar atitudes de permanente suspeita, fuga dos compromissos, confinamento no conforto, arro- gância. A liberdade de escolher permite projectar a própria vida e cultivar o melhor de si mesmo, mas, se não se tiver objectivos nobres e disciplina pessoal, degenera numa incapacidade de se dar generosamente. De facto, em muitos países onde diminui o número de matrimónios, cresce o nú- mero de pessoas que decidem viver sozinhas ou que convivem sem coabitar. Podemos assinalar também um louvável sentido de justiça; mas, mal compreendido, transforma os cidadãos em clien- tes que só exigem o cumprimento de serviços.

 

  1. Se estes riscos se transpõem para o modo de compreender a família, esta pode transfor- mar-se num lugar de passagem, aonde uma pes-

 

13 Relatio Finalis 2015, 8.


 

soa vai quando lhe parecer conveniente para si mesma ou para reclamar direitos, enquanto os vínculos são deixados à precariedade volúvel dos desejos e das circunstâncias. No fundo, hoje é fácil confundir a liberdade genuína com a ideia de que cada um julga como lhe parece, como se, para além dos indivíduos, não houvesse verda- des, valores, princípios que nos guiam, como se tudo fosse igual e tudo se devesse permitir. Neste contexto, o ideal matrimonial com um compro- misso de exclusividade e estabilidade acaba por ser destruído pelas conveniências contingentes ou pelos caprichos da sensibilidade. Teme-se a solidão, deseja-se um espaço de protecção e fide- lidade mas, ao mesmo tempo, cresce o medo de ficar encurralado numa relação que possa adiar a satisfação das aspirações pessoais.

 

  1. Como cristãos, não podemos  renunciar a propor o matrimónio, para não contradizer a sensibilidade actual, para estar na moda, ou por sentimentos de inferioridade face ao descalabro moral e humano; estaríamos a privar o mundo dos valores que podemos e devemos É verdade que não tem sentido limitar-nos a uma denúncia retórica dos males actuais, como se isso pudesse mudar qualquer coisa. De nada serve também querer impor normas pela força da au- toridade. É-nos pedido um esforço mais respon- sável e generoso, que consiste em apresentar as razões e os motivos para se optar pelo matrimó- nio e a família, de modo que as pessoas estejam


 

melhor preparadas para responder à graça que Deus lhes oferece.

 

  1. Ao mesmo tempo devemos ser humildes e realistas, para reconhecer que às vezes a nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas ajudaram a pro- vocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém uma salutar reacção de autocrí- tica. Além disso, muitas vezes apresentámos de tal maneira o matrimónio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação. Também não fizemos um bom acompanhamento dos jovens casais nos seus primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus horários, às suas linguagens, às suas preocupações mais concretas. Outras vezes, apresentámos um ideal teológico do ma- trimónio demasiado abstracto, construído qua- se artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efectivas das famílias tais como são. Esta excessiva idealização, sobretudo quando não despertámos a confiança na graça, não fez com que o matrimónio fosse mais dese- jável e atraente; muito pelo contrário.

 

  1. Durante muito tempo pensámos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioé- ticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, con- solidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas Temos


 

dificuldade em apresentar o matrimónio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira. Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respon- dem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substi- tuí-las.

 

  1. Devemos dar graças pela maioria das pes- soas valorizar as relações familiares que querem permanecer no tempo e garantem o respeito pelo Por isso, aprecia-se que a Igreja ofe- reça espaços de apoio e aconselhamento sobre questões relacionadas com o crescimento do amor, a superação dos conflitos e a educação dos filhos. Muitos estimam a força da graça que ex- perimentam na Reconciliação sacramental e na Eucaristia, que lhes permite enfrentar os desafios do matrimónio e da família. Nalguns países, es- pecialmente em várias partes da África, o secula- rismo não conseguiu enfraquecer alguns valores tradicionais e, em cada matrimónio, gera-se uma forte união entre duas famílias alargadas, onde se conserva ainda um sistema bem definido de gestão de conflitos e dificuldades. No mundo ac- tual, aprecia-se também o testemunho dos côn- juges que não se limitam a perdurar no tempo, mas continuam a sustentar um projecto comum


 

e conservam o afecto. Isto abre a porta a uma pastoral positiva, acolhedora, que torna possível um aprofundamento gradual das exigências do Evangelho. No entanto, muitas vezes agimos na defensiva e gastámos as energias pastorais mul- tiplicando os ataques ao mundo decadente, com pouca capacidade de propor e indicar caminhos de felicidade. Muitos não sentem a mensagem da Igreja sobre o matrimónio e a família como um reflexo claro da pregação e das atitudes de Jesus,

o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não perdia jamais a proximidade com- passiva às pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera.

 

  1. Isto não significa deixar de advertir a deca- dência cultural que não promove o amor e a doa- ção. As consultações que antecederam os dois últimos Sínodos trouxeram à luz vários sinto- mas da « cultura do provisório ». Refiro-me, por exemplo, à rapidez com que as pessoas passam duma relação afectiva para outra. Crêem que o amor, como acontece nas redes sociais, se pos- sa conectar ou desconectar ao gosto do consu- midor e inclusive bloquear rapidamente. Penso também no medo que desperta a perspectiva dum compromisso permanente, na obsessão pelo tempo livre, nas relações que medem custos e benefícios e mantêm-se apenas se forem um meio para remediar a solidão, ter protecção ou receber algum serviço. Transpõe-se para as rela- ções afectivas o que acontece com os objectos e


 

o meio ambiente: tudo é descartável, cada um usa e joga fora, gasta e rompe, aproveita e espreme enquanto serve; depois… adeus. O narcisismo torna as pessoas incapazes de olhar para além de si mesmas, dos seus desejos e necessidades. Mas quem usa os outros, mais cedo ou mais tarde acaba por ser usado, manipulado e abandonado com a mesma lógica. Faz impressão ver que as rupturas ocorrem, frequentemente, entre adultos já de meia-idade que buscam uma espécie de « au- tonomia» e rejeitam o ideal de envelhecer juntos cuidando-se e apoiando-se.

 

  1. « Correndo o risco de simplificar, podere- mos dizer que vivemos numa cultura que impele os jovens a não formarem uma família, porque privam-nos de possibilidades para o Mas esta mesma cultura apresenta a outros tantas op- ções que também eles são dissuadidos de formar uma família ».14 Nalguns países, muitos jovens

« são frequentemente levados a adiar o matrimó- nio por problemas de tipo económico, laboral ou de estudo. Às vezes também por outros motivos, tais como a influência das ideologias que desva- lorizam o matrimónio e a família, a experiência do fracasso de outros casais a que eles não se querem expor, o medo de algo que consideram demasiado grande e sagrado, as oportunidades sociais e os benefícios económicos derivados da

 

14  FrAncisco,  Discurso  ao  Congresso  dos  Estados  Unidos  da América (24 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. se- manal portuguesa de 01/X/2015), 9.


 

convivência, uma concepção puramente emoti- va e romântica do amor, o medo de perder a li- berdade e a autonomia, a rejeição de tudo o que possa ser concebido como institucional e buro- crático ».15 Precisamos de encontrar as palavras, as motivações e os testemunhos que nos ajudem a tocar as cordas mais íntimas dos jovens, onde são mais capazes de generosidade, de compro- misso, de amor e até mesmo de heroísmo, para convidá-los a aceitar, com entusiasmo e coragem, o desafio de matrimónio.

 

  1. Os Padres sinodais aludiram a certas « ten- dências culturais que parecem impor uma afetivi- dade sem qualquer limitação, (…) uma afetivida- de narcisista, instável e mutável que não ajuda os sujeitos a atingir uma maior maturidade». Preo- cupa a « difusão da pornografia e da comerciali- zação do corpo, favorecida, entre outras coisas, por um uso distorcido da internet » e pela « si- tuação das pessoas que são obrigadas a praticar a prostituição ». Neste contexto, por vezes os casais sentem-se inseguros, indecisos, custando-

-lhes a encontrar as formas para crescer. Muitos são aqueles que tendem a ficar nos estádios pri- mários da vida emocional e sexual. A crise do casal destabiliza a família e pode chegar, através das separações e dos divórcios, a ter sérias conse- quências para os adultos, os filhos e a sociedade, enfraquecendo o indivíduo e os laços sociais ».16

 

15  Relatio Finalis 2015, 29.

16  Relatio Synodi 2014, 10.


 

As crises conjugais são « enfrentadas muitas ve- zes de modo apressado e sem a coragem da pa- ciência, da averiguação, do perdão recíproco, da reconciliação e até do sacrifício. Deste modo os falimentos dão origem a novas relações, novos casais, novas uniões e novos casamentos, criando situações familiares complexas e problemáticas para a opção cristã ».17

 

  1. « A própria queda demográfica, causada por uma mentalidade anti natalista e promovida pelas políticas mundiais de saúde reprodutiva, não só determina uma situação em que a sucessão das gerações deixa de estar garantida, mas corre-se o risco de levar, com o tempo, a um empobreci- mento económico e a uma perda de esperança no futuro. O avanço das biotecnologias também teve um forte impacto sobre a natalidade ».18 Podem juntar-se outros factores, como « a industrializa- ção, a revolução sexual, o temor da superpopula- ção, os problemas económicos (...). A sociedade de consumo também pode dissuadir as pessoas de ter filhos, só para manter a sua liberdade e es- tilo de vida ».19 É verdade que a consciência recta dos esposos, quando foram muito generosos na transmissão da vida, pode orientá-los para a de- cisão de limitar o número dos filhos por razões

 

17  III AssembleiA gerAl extrAordináriA do sínodo dos

bispos, Mensagem (18 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano

(ed. semanal portuguesa de 23/X/2014), 7.

18 Relatio Synodi 2014, 10.

19 Relatio Finalis 2015, 7.


 

suficientemente sérias; e também « por amor des- ta dignidade da consciência, a Igreja rejeita com todas as suas forças as intervenções coercitivas do Estado a favor da contracepção, da esterili- zação e até mesmo do aborto ».20 Estas medidas são inaceitáveis mesmo em áreas com alta taxa de natalidade, mas é notável que os políticos as incentivem também nalguns países que sofrem o drama duma taxa de natalidade muito baixa. Como assinalaram os bispos da Coreia, isto é

« agir de forma contraditória e negligenciando o próprio dever ».21

 

  1. O enfraquecimento da fé e da prática re- ligiosa, nalgumas sociedades, afecta as famílias, deixando-as ainda mais sós com as suas dificul- dades. Os Padres disseram que « uma das maiores pobrezas da cultura actual é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fra- gilidade das relações. Há também uma sensação geral de impotência face à realidade socioeconó- mica que, muitas vezes, acaba por esmagar as fa- mílias. (...) Frequentemente as famílias sentem-se abandonadas pelo desinteresse e a pouca atenção das instituições. As consequências negativas sob o ponto de vista da organização social são evi- dentes: da crise demográfica às dificuldades edu- cativas, da fadiga em acolher a vida nascente ao sentir a presença dos idosos como um peso, até à

 

20 Ibid., 63.

21 conFerênciA dos bispos cAtólicos dA coreiA, Towards a culture of life! (15 de Março de 2007).


 

difusão dum mal-estar afectivo que às vezes che- ga à violência. O Estado tem a responsabilidade de criar as condições legislativas e laborais para garantir o futuro dos jovens e ajudá-los a realizar o seu projecto de formar uma família ».22

 

  1. A falta duma habitação digna ou adequada leva muitas vezes a adiar a formalização duma relação. É preciso lembrar que « a família tem direito a uma habitação condigna, apropriada para a vida familiar e proporcional ao número dos seus membros, num ambiente fisicamente sadio que proporcione os serviços básicos para a vida da família e da comunidade».23 Uma família e uma casa são duas realidades que se reclamam mutuamente. Este exemplo mostra que devemos insistir nos direitos da família, e não apenas nos direitos A família é um bem de que a sociedade não pode prescindir, mas precisa de ser protegida.24 A defesa destes direitos é « um apelo profético a favor da instituição familiar, que deve ser respeitada e defendida contra toda a agres- são »,25 sobretudo no contexto actual em que ha- bitualmente ocupa pouco espaço nos projectos políticos. As famílias têm, entre outros direitos, o de « poder contar com uma adequada política familiar por parte das autoridades públicas no

 

22 Relatio Synodi 2014, 6.

23  pont.  conselho  pArA  A  FAmíliA,  Carta  dos  direitos  da família (22 de Outubro de 1983), 11.

24 Cf. Relatio Finalis 2015, 11-12.

25  pont.  conselho  pArA  A  FAmíliA,  Carta  dos  direitos  da família (22 de Outubro de 1983), introdução.


 

campo jurídico, económico, social e fiscal ».26 Às vezes as angústias das famílias tornam-se dra- máticas, quando têm de enfrentar a doença de um ente querido sem acesso a serviços de saúde adequados, ou quando se prolonga o tempo sem ter conseguido um emprego decente. « As coer- ções económicas excluem o acesso das famílias à educação, à vida cultural e à vida social activa. O actual sistema económico produz várias formas de exclusão social. As famílias sofrem de modo particular com os problemas relativos ao traba- lho. As possibilidades para os jovens são poucas e a oferta de trabalho é muito selectiva e precária. As jornadas de trabalho são longas e, muitas ve- zes, agravadas pelo tempo gasto na deslocação. Isto não ajuda os esposos a encontrar-se entre si e com os filhos, para alimentar diariamente as suas relações ».27

 

  1. « Há muitos filhos nascidos fora do ma- trimónio, especialmente nalguns países, e muitos são os que, em seguida, crescem com um só dos progenitores e num contexto familiar alargado ou reconstituído. (...) Por outro lado, a explora- ção sexual da infância constitui uma das realida- des mais escandalosas e perversas da sociedade actual. Além disso, nas sociedades feridas pela violência da guerra, do terrorismo ou da presen- ça do crime organizado, acabam deterioradas as situações familiares, sobretudo nas grandes me-

 

26 Ibid., 9.

27 Relatio Finalis 2015, 14.


 

trópoles, e nas suas periferias cresce o chamado fenómeno dos meninos da rua ».28 O abuso se- xual das crianças torna-se ainda mais escandalo- so, quando se verifica em ambientes onde deve- riam ser protegidas, particularmente nas famílias e nas comunidades e instituições cristãs.29

 

  1. As migrações « constituem outro sinal dos tempos, que deve ser enfrentado e compreendido com todo o seu peso de consequências sobre a vida familiar ».30 O último Sínodo atribuiu grande importância a esta problemática ao reconhecer que, « sob modalidades diferentes, atinge popula- ções inteiras em várias partes do A Igre- ja desempenhou, neste campo, papel de primária grandeza. A necessidade de manter e desenvolver este testemunho evangélico (cf. Mt 25, 35) apare- ce hoje mais urgente do que nunca. (...) A mobi- lidade humana, que corresponde ao movimento histórico natural dos povos, pode revelar-se uma verdadeira riqueza tanto para a família que emigra como para o país que a recebe. Caso diferente é a migração forçada das famílias, em consequência de situações de guerra, perseguição, pobreza, in- justiça, marcada pelas vicissitudes duma viagem que, muitas vezes, põe em perigo a vida, trauma- tiza as pessoas e destabiliza as famílias. O acom- panhamento dos migrantes exige uma pastoral específica dirigida tanto às famílias que emigram

 

28 Relatio Synodi 2014, 8.

29 Cf. Relatio Finalis 2015, 78.

30 Relatio Synodi 2014, 8.


 

como aos membros dos núcleos familiares que ficaram nos lugares de origem. Isto deve ser feito respeitando as suas culturas, a formação religiosa e humana da sua origem, a riqueza espiritual dos seus ritos e tradições, inclusive através dum cui- dado pastoral específico. (...) As migrações reve- lam-se particularmente dramáticas e devastado- ras tanto para as famílias como para as pessoas, quando têm lugar à margem da legalidade e são sustentadas por circuitos internacionais do tráfi- co de pessoas. O mesmo se pode dizer quando envolvem mulheres ou crianças não acompanha- das, forçadas a estadias prolongadas nos locais de passagem entre um país e outro, nos campos de refugiados, onde não é possível iniciar um per- curso de integração. A pobreza extrema e outras situações de desintegração induzem, por vezes, as famílias até mesmo a vender os próprios fi- lhos para a prostituição ou o tráfico de órgãos ».31

« As perseguições dos cristãos, bem como as de minorias étnicas e religiosas, em várias partes do mundo, especialmente no Médio Oriente, consti- tuem uma grande prova: não só para a Igreja mas também para toda a comunidade internacional. Devem ser apoiados todos os esforços para favo- recer a permanência das famílias e das comunida- des cristãs nas suas terras de origem ».32

 

31 Relatio Finalis 2015, 23; cf. Mensagem para o Dia Mundial do Emigrante e do Refugiado em 17 de Janeiro de 2016 (12 de Se- tembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 08/X/2015), 18-19.

32 Relatio Finalis 2015, 24.


 

  1. Os Padres dedicaram especial atenção tam- bém « às famílias das pessoas com deficiência, já que tal deficiência, ao irromper na vida, gera um desafio profundo e inesperado e transtorna os equilíbrios, os desejos, as (...) Me- recem grande admiração as famílias que aceitam, com amor, a prova difícil dum filho deficiente. Dão à Igreja e à sociedade um valioso teste- munho de fidelidade ao dom da vida. A família poderá descobrir, juntamente com a comunida- de cristã, novos gestos e linguagens, formas de compreensão e identidade, no percurso de aco- lhimento e cuidado do mistério da fragilidade. As pessoas com deficiência são, para a família, um dom e uma oportunidade para crescer no amor, na ajuda recíproca e na unidade. (...) A família que aceita, com os olhos da fé, a presença de pessoas com deficiência poderá reconhecer e ga- rantir a qualidade e o valor de cada vida, com as suas necessidades, os seus direitos e as suas opor- tunidades. Tal família providenciará assistência e cuidados e promoverá companhia e carinho em cada fase da vida ».33 Quero sublinhar que a aten- ção prestada tanto aos migrantes como às pes- soas com deficiência é um sinal do Espírito. Pois ambas as situações são paradigmáticas: põem es- pecialmente em questão o modo como se vive, hoje, a lógica do acolhimento misericordioso e da integração das pessoas frágeis.

 

33 Ibid., 21.


 

  1. « A maioria das famílias respeita os idosos, rodeia-os de carinho e considera-os uma bênção. Um agradecimento especial deve ser dirigido às associações e movimentos familiares que traba- lham a favor dos idosos, sob o aspecto espiritual e social (...). Nas sociedades altamente industrializa- das, onde o seu número tende a aumentar enquan- to diminui a taxa de natalidade, os idosos correm o risco de ser vistos como um Por outro lado, os cuidados que requerem muitas vezes põem a dura prova os seus entes queridos ».34 « A valoriza- ção da fase conclusiva da vida é, hoje, ainda mais necessária, porque na sociedade actual se tenta, de todos os modos possíveis, ocultar o momento da passagem. Às vezes, a fragilidade e dependência do idoso são iniquamente exploradas por mero proveito económico. Muitas famílias ensinam-nos que é possível enfrentar os últimos anos da vida, valorizando o sentido de realização e integração de toda a existência no mistério pascal. Um gran- de número de idosos é acolhido em estruturas da Igreja, onde podem viver num ambiente sereno e familiar a nível material e espiritual. A eutanásia e o suicídio assistido são graves ameaças para as fa- mílias, em todo o mundo. A sua prática é legal em muitos Estados. A Igreja, ao mesmo tempo que se opõe firmemente a tais práticas, sente o dever de ajudar as famílias que cuidam dos seus membros idosos e doentes ».35

 

34  Ibid., 17.

35  Ibid., 20.


 

  1. Quero assinalar a situação das famílias caí- das na miséria, penalizadas de tantas maneiras, onde as limitações da vida se fazem sentir de for- ma Se todos têm dificuldades, estas, numa casa muito pobre, tornam-se mais duras.36Por exemplo, se uma mulher deve criar o seu fi- lho sozinha, devido a uma separação ou por ou- tras causas, e tem de ir trabalhar sem a possibili- dade de o deixar com outra pessoa, o filho cresce num abandono que o expõe a todos os tipos de risco e fica comprometido o seu amadurecimen- to pessoal. Nas situações difíceis em que vivem as pessoas mais necessitadas, a Igreja deve pôr um cuidado especial em compreender, consolar e integrar, evitando impor-lhes um conjunto de normas como se fossem uma rocha, tendo como resultado fazê-las sentir-se julgadas e abandona- das precisamente por aquela Mãe que é chamada a levar-lhes a misericórdia de Deus. Assim, em vez de oferecer a força sanadora da graça e da luz do Evangelho, alguns querem « doutrinar » o Evangelho, transformá-lo em « pedras mortas para as jogar contra os outros ».37

 

Alguns desAFios

  1. As respostas recebidas nas duas consulta- ções, efectuadas no caminho sinodal, mencio-

 

36 Cf. ibid., 15.

37  FrAncisco,  Discurso  no  encerramento  da  XIV  Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9.


 

naram as mais diversas situações que colocam novos desafios. Além das situações já indicadas, muitos referiram-se à função educativa, que aca- ba dificultada porque, entre outras causas, os pais chegam a casa cansados e sem vontade de conversar; em muitas famílias, já não há sequer o hábito de comerem juntos, e cresce uma gran- de variedade de ofertas de distracção, para além da dependência da televisão. Isto torna difícil  a transmissão da fé de pais para filhos. Outros assinalaram que as famílias habitualmente pade- cem duma enorme ansiedade; parece haver mais preocupação por prevenir problemas futuros do que por compartilhar o presente. Isto, que é uma questão cultural, vê-se agravado por um futuro profissional incerto, pela insegurança económica ou pelo medo quanto ao futuro dos filhos.

 

  1. Mencionou-se também a toxicodependên- cia como um dos flagelos do nosso tempo que faz sofrer muitas famílias e, não raro, acaba por destruí-las. Algo semelhante acontece com o al- coolismo, os jogos de azar e outras dependên- cias. A família poderia ser o lugar da prevenção e das boas regras, mas a sociedade e a política não chegam a perceber que uma família em risco

« perde a capacidade de reacção para ajudar os seus membros (...). Observamos as graves con- sequências desta ruptura em famílias destruídas, filhos desenraizados, idosos abandonados, crian- ças órfãs de pais vivos, adolescentes e jovens de-


 

sorientados e sem regras ».38 Como apontaram os bispos do México, há tristes situações de violên- cia familiar que são terreno fértil para novas for- mas de agressividade social, porque « as relações familiares explicam também a predisposição para uma personalidade violenta. As famílias que in- fluem nesta direcção são aquelas em que há uma comunicação deficiente; aquelas em que predo- minam as atitudes defensivas e os seus membros não se apoiam entre si; onde não há actividades familiares que favoreçam a participação; as famí- lias onde as relações entre os pais costumam ser conflituosas e violentas, e as relações pais-filhos se caracterizam por atitudes hostis. A violência no seio da família é escola de ressentimento e ódio nas relações humanas básicas ».39

 

  1. Ninguém pode pensar que o enfraqueci- mento da família como sociedade natural fun- dada no matrimónio seja algo que beneficia a sociedade. Antes pelo contrário, prejudica o ama- durecimento das pessoas, o cultivo dos valores comunitários e o desenvolvimento ético das ci- dades e das Já não se adverte claramente que só a união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher realiza uma função social plena, por ser um compromisso estável e tornar possível a fecundidade. Devemos reconhecer

 

38  conFerênciA episcopAl ArgentinA, Navega mar adentro

(31 de Maio de 2003), 42.

39  conFerênciA episcopAl mexicAnA, Que en Cristo Nues- tra Paz México tenga vida digna (15 de Fevereiro de 2009), 67.


 

a grande variedade de situações familiares que podem fornecer uma certa regra de vida, mas as uniões de facto ou entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não podem ser simplistamen- te equiparadas ao matrimónio. Nenhuma união precária ou fechada à transmissão da vida garante o futuro da sociedade. E, todavia, quem se preo- cupa hoje com fortalecer os cônjuges, ajudá-los a superar os riscos que os ameaçam, acompanhá-

-los no seu papel educativo, incentivar a estabili- dade da união conjugal?

 

  1. « Nalgumas sociedades, vigora ainda a prá- tica da poligamia; noutros contextos, permanece a prática dos matrimónios (...) Em muitos contextos, e não apenas ocidentais, está a difundir-se largamente a prática da convivência que precede o matrimónio e também a prática de convivências não orientadas para assumir a forma dum vínculo institucional ».40 Em vários países, a legislação facilita o avanço de várias al- ternativas, de modo que um matrimónio com as características de exclusividade, indissolubilidade e abertura à vida acaba por aparecer como mais uma proposta antiquada entre muitas outras. Avança, em muitos países, uma desconstrução jurídica da família, que tende a adoptar formas baseadas quase exclusivamente no paradigma da autonomia da vontade. Embora seja legítimo e justo rejeitar velhas formas de família « tradicio-


 

nal », caracterizadas pelo autoritarismo e inclusi- ve pela violência, todavia isso não deveria levar ao desprezo do matrimónio, mas à redescoberta do seu verdadeiro sentido e à sua renovação. A força da família « reside essencialmente na sua capacidade de amar e ensinar a amar. Por muito ferida que possa estar uma família, ela pode sem- pre crescer a partir do amor ».41

 

  1. Neste relance sobre a realidade, desejo sa- lientar que, apesar das melhorias notáveis regista- das no reconhecimento dos direitos da mulher e na sua participação no espaço público, ainda há muito que avançar nalguns países. Não se acabou ainda de erradicar costumes inaceitáveis; destaco a violência vergonhosa que, às vezes, se exerce sobre as mulheres, os maus-tratos familiares e várias formas de escravidão, que não constituem um sinal de força masculina, mas uma covarde degradação. A violência verbal, física e sexual, perpetrada contra as mulheres nalguns casais, contradiz a própria natureza da união conjugal. Penso na grave mutilação genital da mulher nal- gumas culturas, mas também na desigualdade de acesso a postos de trabalho dignos e aos lugares onde as decisões são A história carrega os vestígios dos excessos das culturas patriarcais, onde a mulher era considerada um ser de segun- da classe, mas recordemos também o « aluguer de ventres » ou « a instrumentalização e comerciali-


 

zação do corpo feminino na cultura mediática contemporânea ».42 Alguns consideram que mui- tos dos problemas actuais ocorreram a partir da emancipação da mulher. Mas este argumento não é válido, « é falso, não é verdade! Trata-se de uma forma de machismo ».43 A idêntica dignidade en- tre o homem e a mulher impele a alegrar-nos com a superação de velhas formas de discriminação e o desenvolvimento dum estilo de reciprocidade dentro das famílias. Se aparecem formas de femi- nismo que não podemos considerar adequadas, de igual modo admiramos a obra do Espírito no reconhecimento mais claro da dignidade da mu- lher e dos seus direitos.

 

  1. O homem « desempenha um papel igual- mente decisivo na vida da família, especialmente na protecção e sustentamento da esposa e dos filhos. (...) Muitos homens estão conscientes da importância do seu papel na família e vivem-no com as qualidades peculiares da índole masculi- na. A ausência do pai penaliza gravemente a vida familiar, a educação dos filhos e a sua integração na Tal ausência pode ser física, afec- tiva, cognitiva e espiritual. Esta carência priva os filhos dum modelo adequado do comportamen- to paterno ».44

 

42  FrAncisco, Catequese (22 de Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 23/IV/2015), 16.

43 idem, Catequese (29 de Abril de 2015): L’Osservatore Ro- mano (ed. semanal portuguesa de 30/IV/2015), 16.


 

  1. Outro desafio surge de várias formas duma ideologia genericamente chamada gender, que

« nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma sociedade sem dife- renças de sexo, e esvazia a base antropológica da família. Esta ideologia leva a projectos educati- vos e directrizes legislativas que promovem uma identidade pessoal e uma intimidade afectiva ra- dicalmente desvinculadas da diversidade biológi- ca entre homem e mulher. A identidade humana é determinada por uma opção individualista, que também muda com o tempo».45 Preocupa o facto de algumas ideologias deste tipo, que pretendem dar resposta a certas aspirações por vezes com- preensíveis, procurarem impor-se como pensa- mento único que determina até mesmo a edu- cação das crianças. É preciso não esquecer que

« sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender) podem-se distinguir, mas não sepa- rar ».46 Por outro lado, « a revolução biotecnoló- gica no campo da procriação humana introduziu a possibilidade de manipular o acto generativo, tornando-o independente da relação sexual en- tre homem e mulher. Assim, a vida humana bem como a paternidade e a maternidade tornaram-se realidades componíveis e decomponíveis, sujeitas de modo prevalecente aos desejos dos indivíduos ou dos casais ».47 Uma coisa é compreender a fra-

 

45 Ibid., 8.

46 Ibid., 58.


 

gilidade humana ou a complexidade da vida, e outra é aceitar ideologias que pretendem dividir em dois os aspectos inseparáveis da realidade. Não caiamos no pecado de pretender substi- tuir-nos ao Criador. Somos criaturas, não somos omnipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo so- mos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada.

 

  1. Dou graças a Deus porque muitas famílias, que estão bem longe de se considerarem per- feitas, vivem no amor, realizam a sua vocação e continuam para diante embora caiam muitas ve- zes ao longo do Partindo das reflexões sinodais, não se chega a um estereótipo da família ideal, mas um interpelante mosaico formado por muitas realidades diferentes, cheias de alegrias, dramas e sonhos. As realidades que nos preocu- pam, são desafios. Não caiamos na armadilha de nos consumirmos em lamentações autodefensi- vas, em vez de suscitar uma criatividade missio- nária. Em todas as situações, « a Igreja sente a necessidade de dizer uma palavra de verdade e de esperança. (...) Os grandes valores do matrimó- nio e da família cristã correspondem à busca que atravessa a existência humana ».48 Se constatamos muitas dificuldades, estas são – como disseram os bispos da Colômbia – um apelo para « libertar

 

48 Relatio Synodi 2014, 11.


 

em nós as energias da esperança, traduzindo-as em sonhos proféticos, acções transformadoras e imaginação da caridade ».49

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

49  conFerênciA  episcopAl  dA  colômbiA,  A  tiempos  difí- ciles, colombianos nuevos (13 de Fevereiro de 2003), 3.


 

 

 

 

 

CAPÍTULO iii

o  olhAr  Fixo  em  Jesus: A VocAção dA FAmíliA

 

  1. Diante das famílias e no meio delas, deve ressoar sempre de novo o primeiro anúncio, que é o « mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário »50 e « deve ocupar o centro da atividade evangelizadora ».51 É o anúncio principal, « aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou doutra ».52 Porque « nada há de mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais consis- tente e mais sábio que esse anúncio » e « toda a formação cristã é, primariamente, o aprofunda- mento do querigma».53

 

  1. O nosso ensinamento sobre o matrimónio e a família não pode deixar de se inspirar e trans- figurar à luz deste anúncio de amor e ternura, se não quiser tornar-se mera defesa duma doutrina fria e sem vida. Com efeito, o próprio mistério da família cristã só se pode compreender plena-

 

50  FrAncisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novem- bro de 2013), 35: AAS 105 (2013), 1034.

51 Ibid., 164: o. c., 1088.

52 Ibidem.

53 Ibid., 165: o. c., 1089.


 

mente à luz do amor infinito do Pai, que se mani- festou em Cristo entregue até ao fim e vivo entre nós. Por isso, quero contemplar Cristo vivo que está presente em tantas histórias de amor e invo- car o fogo do Espírito sobre todas as famílias do mundo.

 

  1. Dentro deste quadro, o presente capítulo recolhe uma síntese da doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a família. Também aqui citarei várias contribuições prestadas pelos Padres si- nodais nas suas considerações acerca da luz que a fé nos oferece. Eles partiram do olhar de Je- sus, dizendo que Ele « olhou para as mulheres e os homens que encontrou com amor e ternura, acompanhando os seus passos com verdade, pa- ciência e misericórdia, ao anunciar as exigências do Reino de Deus».54De igual modo nos acom- panha, hoje, o Senhor no nosso compromisso de viver e transmitir o Evangelho da família.

 

Jesus recuperA e reAliZA plenAmente o proJecto diVino

  1. Contrariamente àqueles que proibiam o ma- trimónio, o Novo Testamento ensina que « tudo o que Deus criou é bom e nada deve ser rejeita- do » (1 Tim 4, 4). O matrimónio é um « dom » do Senhor (cf. 1 Cor 7, 7). Ao mesmo tempo que se dá esta avaliação positiva, acentua-se fortemen- te a obrigação de cuidar deste dom divino: « Seja

 

54 Relatio Synodi 2014, 12.


 

o matrimónio honrado por todos e imaculado o leito conjugal » (Heb 13, 4). Este dom de Deus inclui a sexualidade: « Não vos recuseis um ao outro » (1 Cor 7, 5).

 

  1. Os Padres sinodais lembraram que Jesus,

« ao referir-Se ao desígnio primordial sobre o casal humano, reafirma a união indissolúvel en- tre o homem e a mulher, mesmo admitindo que, “por causa da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres; mas, ao princípio, não foi assim” (Mt 19, 8). A indissolubilidade do matrimónio (“o que Deus uniu não o separe o homem”: Mt 19, 6) não se deve entender primariamente como “jugo” im- posto aos homens, mas como um “dom” con- cedido às pessoas unidas em matrimónio. (...) A condescendência divina acompanha sempre o caminho humano, com a sua graça, cura e trans- forma o coração endurecido, orientando-o para o seu princípio, através do caminho da cruz. Nos Evangelhos, sobressai claramente a postura de Jesus, que (...) anunciou a mensagem relativa ao significado do matrimónio como plenitude da revelação que recupera o projecto originário de Deus (cf. Mt 19, 3) ».55

 

  1. « Jesus, que reconciliou em Si todas as coi- sas, voltou a levar o matrimónio e a família à sua forma original (cf. Mc 10, 1-12). A família e o

 

55 Ibid., 14.


 

matrimónio foram redimidos por Cristo (cf. Ef 5, 21-32), restaurados à imagem da Santíssima Trindade, mistério donde brota todo o amor ver- dadeiro. A aliança esponsal, inaugurada na cria- ção e revelada na história da salvação, recebe a revelação plena do seu significado em Cristo e na sua Igreja. O matrimónio e a família recebem de Cristo, através da Igreja, a graça necessária para testemunhar o amor de Deus e viver a vida de comunhão. O Evangelho da família atravessa a história do mundo desde a criação do homem à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-27) até à realização do mistério da Aliança em Cristo no fim dos séculos com as núpcias do Cordeiro (cf. Ap 19, 9) ».56

 

  1. « A postura de Jesus é paradigmática para a Igreja (...). Ele inaugurou a sua vida pública com o sinal de Caná, realizado num banquete de núp- cias (cf. Jo 2, 1-11). (…) Compartilhou momen- tos diários de amizade com a família de Lázaro e suas irmãs (cf. Lc 10, 38) e com a família de Pedro (cf. Mt 8, 14). Escutou o pranto dos pais pelos seus filhos, restituindo-os à vida (cf. Mc 5, 41; Lc 7, 14-15) e mostrando assim o verdadei- ro significado da misericórdia, a qual implica a restauração da Aliança (cf. João Paulo II, Dives in misericordia, 4). Vê-se isto claramente nos en- contros com a mulher samaritana (cf. Jo 4, 1-30) e com a adúltera (cf. Jo 8, 1-11), nos quais a noção


 

do pecado é avivada perante o amor gratuito de Jesus ».57

 

  1. A encarnação do Verbo numa família hu- mana, em Nazaré, comove com a sua novidade a história do Precisamos de mergulhar no mistério do nascimento de Jesus, no sim de Maria ao anúncio do anjo, quando foi concebida a Pala- vra no seu seio; e ainda no sim de José, que deu o nome a Jesus e cuidou de Maria; na festa dos pastores no presépio; na adoração dos Magos; na fuga para o Egipto, em que Jesus participou no sofrimento do seu povo exilado, perseguido e humilhado; na devota espera de Zacarias e na alegria que acompanhou o nascimento de João Baptista; na promessa que Simeão e Ana viram cumprida no templo; na admiração dos doutores da lei ao escutarem a sabedoria de Jesus adoles- cente. E, em seguida, penetrar nos trinta longos anos em que Jesus ganhava o pão trabalhando com suas mãos, sussurrando a oração e a tra- dição crente do seu povo e formando-Se na fé dos seus pais, até fazê-la frutificar no mistério do Reino. Este é o mistério do Natal e o segredo de Nazaré, cheio de perfume a família! É o mistério que tanto fascinou Francisco de Assis, Teresa do Menino Jesus e Charles de Foucauld, e do qual bebem também as famílias cristãs para renovar a sua esperança e alegria.


 

  1. « A aliança de amor e fidelidade, vivida pela Sagrada Família de Nazaré, ilumina o princípio que dá forma a cada família e a torna capaz de enfrentar melhor as vicissitudes da vida e da his- tória. Sobre este fundamento, cada família, mes- mo na sua fragilidade, pode tornar-se uma luz na escuridão do “Aqui se aprende (…) uma lição de vida familiar. Que Nazaré nos ensine o que é a família, a sua comunhão de amor, a sua austera e simples beleza, o seu carácter sagrado e inviolável; aprendamos de Nazaré como é pre- ciosa e insubstituível a educação familiar e como é fundamental e incomparável a sua função no plano social” (Paulo VI, Alocução em Nazaré, 5 de Janeiro de 1964) ».58

 

A FAmíliA nos documentos dA igreJA

  1. O Concílio Ecuménico Vaticano II ocupou-

-se, na Constituição pastoral Gaudium et spes, da promoção da dignidade do matrimónio e da famí- lia (cf. nn. 47-52). « Definiu o matrimónio como comunidade de vida e amor (cf. n. 48), colocan- do o amor no centro da família (...). O “verdadei- ro amor entre marido e mulher” (n. 49) implica a mútua doação de si mesmo, inclui e integra a dimensão sexual e a afectividade, corresponden- do ao desígnio divino (cf. nn. 48-49). Além disso sublinha o enraizamento dos esposos em Cristo: Cristo Senhor “vem ao encontro dos esposos cris- tãos com o sacramento do matrimónio” (n. 48) e


 

permanece com eles. Na encarnação, Ele assume o amor humano, purifica-o, leva-o à plenitude e dá aos esposos, com o seu Espírito, a capacidade de o viver, impregnando toda a sua vida com a fé, a esperança e a caridade. Assim, os cônjuges são de certo modo consagrados e, por meio duma graça própria, edificam o Corpo de Cristo e constituem uma igreja doméstica (cf. Lumen gentium, 11), de tal modo que a Igreja, para compreender plenamente o seu mistério, olha para a família cristã, que o ma- nifesta de forma genuína ».59

 

  1. Em seguida, « na esteira do Concílio Vatica- no II, o Beato Paulo VI aprofundou a doutrina sobre o matrimónio e a família. Em particular, com a Encíclica Humanae vitae, destacou o víncu- lo intrínseco entre amor conjugal e procriação: “o amor conjugal requer nos esposos uma consciên- cia da sua missão de ‘paternidade responsável’, sobre a qual hoje tanto se insiste, e justificada- mente, e que deve também ela ser compreendida com exactidão (...). O exercício responsável da paternidade implica, portanto, que os cônjuges reconheçam plenamente os próprios deveres para com Deus, para consigo próprios, para com a família e para com a sociedade, numa justa hie- rarquia de valores” (n. 10). Na Exortação apos- tólica Evangelii nuntiandi, Paulo VI salientou a re- lação entre a família e a Igreja ».60

 

59 Relatio Synodi 2014, 17.


 

  1. « São João Paulo II dedicou especial aten- ção à família, através das suas catequeses sobre o amor humano, a Carta às famílias Gratissimam sane e sobretudo com a Exortação apostólica Fa- miliaris Nestes documentos, o Pontífice definiu a família « caminho da Igreja »; ofereceu uma visão de conjunto sobre a vocação ao amor do homem e da mulher; propôs as linhas funda- mentais para a pastoral da família e para a pre- sença da família na sociedade. Concretamente, ao tratar da caridade conjugal (cf. Familiaris consortio, 13), descreveu o modo como os cônjuges, no seu amor mútuo, recebem o dom do Espírito de Cristo e vivem a sua vocação à santidade ».61

 

  1. « Bento XVI, na Encíclica Deus caritas est, retomou o tema da verdade do amor entre o ho- mem e a mulher, que se vê iluminado plenamente apenas à luz do amor de Cristo crucificado (cf.
  2. 2). Sublinha que “o matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-

-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano” (n. 11). Além disso, na Encí- clica Caritas in veritate, destaca a importância do amor como princípio de vida na sociedade (cf. n. 44), lugar onde se aprende a experiência do bem comum ».62

 

61 Relatio Synodi 2014, 18.

62 Ibid., 19.


 

o sAcrAmento do mAtrimónio

  1. « A Sagrada Escritura e a Tradição abrem-

-nos o acesso a um conhecimento da Trindade que Se revela com traços familiares. A família é imagem de Deus, que (…) é comunhão de pes- soas. No baptismo, a voz do Pai chamou a Jesus Filho amado; e, neste amor, podemos reconhecer o Espírito Santo (cf. Mc 1, 10-11). Jesus, que tudo reconciliou em Si mesmo e redimiu o homem do pecado, não só voltou a levar o matrimónio e a família à sua forma original, mas também elevou o matrimónio a sinal sacramental do seu amor pela Igreja (cf. Mt 19, 1-12; Mc 10, 1-12; Ef 5, 21-32). Na família humana, reunida em Cristo, é restaurada a “imagem e semelhança” da San- tíssima Trindade (cf. Gn 1, 26), mistério donde brota todo o amor verdadeiro. O matrimónio e a família recebem de Cristo, através da Igreja, a graça para testemunhar o Evangelho do amor de Deus ».63

 

  1. O sacramento do matrimónio não é uma convenção social, um rito vazio ou o mero sinal externo dum compromisso. O sacramento é um dom para a santificação e a salvação dos esposos, porque « a sua pertença recíproca é a representa- ção real, através do sinal sacramental, da mesma relação de Cristo com a Igreja. Os esposos são, portanto, para a Igreja a lembrança permanente daquilo que aconteceu na cruz; são um para o

 

63 Relatio Finalis 2015, 38.


 

outro, e para os filhos, testemunhas da salvação, da qual o sacramento os faz participar ».64 O ma- trimónio é uma vocação, sendo uma resposta à chamada específica para viver o amor conjugal como sinal imperfeito do amor entre Cristo e a Igreja. Por isso, a decisão de se casar e formar uma família deve ser fruto dum discernimento vocacional.

 

  1. « O dom recíproco constitutivo do ma- trimónio sacramental está enraizado na graça do baptismo, que estabelece a aliança fundamental de cada pessoa com Cristo na Igreja. Na mú- tua recepção e com a graça de Cristo, os noivos prometem-se entrega total, fidelidade e abertura à vida, e também reconhecem como elementos constitutivos do matrimónio os dons que Deus lhes oferece, tomando a sério o seu mútuo com- promisso, em nome de Deus e perante a Igreja. Ora, na fé, é possível assumir os bens do ma- trimónio como compromissos que se podem cumprir melhor com a ajuda da graça do sacra- (...) Portanto, o olhar da Igreja volta-se para os esposos como o coração da família in- teira, que, por sua vez, levanta o seu olhar para Jesus ».65 O sacramento não é uma « coisa » nem uma « força », mas o próprio Cristo, na realidade,

« vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento do matrimónio. Fica com eles, dá-

 

64 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 13: AAS 74 (1982), 94.

65 Relatio Synodi 2014, 21.


 

-lhes a coragem de O seguirem, tomando sobre si a sua cruz, de se levantarem depois das que- das, de se perdoarem mutuamente, de levarem o fardo um do outro ».66 O matrimónio cristão é um sinal que não só indica quanto Cristo amou a sua Igreja na Aliança selada na Cruz, mas torna presente esse amor na comunhão dos esposos. Quando se unem numa só carne, representam o desposório do Filho de Deus com a natureza humana. Por isso, « nas alegrias do seu amor e da sua vida familiar, Ele dá-lhes, já neste mundo, um antegozo do festim das núpcias do Cordeiro ».67 Embora « a analogia entre o casal marido-esposa e Cristo-Igreja » seja uma « analogia imperfeita »,68 convida a invocar o Senhor para que derrame o seu amor nas limitações das relações conjugais.

 

  1. Vivida de modo humano e santificada pelo sacramento, a união sexual é, por sua vez, cami- nho de crescimento na vida da graça para os es- É o « mistério nupcial ».69 O valor da união dos corpos está expresso nas palavras do con- sentimento, pelas quais se acolheram e doaram reciprocamente para partilhar a vida toda. Estas palavras conferem um significado à sexualidade, libertando-a de qualquer ambiguidade. Mas, na realidade, toda a vida em comum dos esposos,

 

66 Catecismo da Igreja Católica, 1642.

67 Ibidem.

68  FrAncisco, Catequese (6 de Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 7/V/2015), 20.

69 leão mAgno, Epistula Rustico narbonensi episcopo, inquis. IV: PL 54, 1205A; cf. incmAro de reims, Epist. 22: PL 126, 142.


 

toda a rede de relações que hão-de tecer entre si, com os seus filhos e com o mundo, estará im- pregnada e robustecida pela graça do sacramento que brota do mistério da Encarnação e da Pás- coa, onde Deus exprimiu todo o seu amor pela humanidade e Se uniu intimamente com ela. Os esposos nunca estarão sós, com as suas próprias forças, a enfrentar os desafios que surgem. São chamados a responder ao dom de Deus com o seu esforço, a sua criatividade, a sua perseverança e a sua luta diária, mas sempre poderão invocar o Espírito Santo que consagrou a sua união, para que a graça recebida se manifeste sem cessar em cada nova situação.

 

  1. No sacramento do matrimónio, segundo a tradição latina da Igreja, os ministros são o homem e a mulher que se casam,70 os quais, ao manifestar o seu consentimento e expressá-lo na sua entrega corpórea, recebem um grande O seu consentimento e a união dos seus corpos são os instrumentos da acção divina que os torna uma só carne. No baptismo, ficou consagrada a sua capacidade de se unir em matrimónio como ministros do Senhor, para responder à vocação de Deus. Por  isso,  quando dois cônjuges não-

-cristãos recebem o baptismo, não é necessário renovar a promessa nupcial sendo suficiente que não a rejeitem, pois, pelo baptismo que recebem,

 

70 Cf. pio xii, Carta enc. Mystici Corporis Christi (29 de Ju- nho de 1943): AAS 35 (1943), 202: « Matrimonio enim quo coniuges sibi invicem sunt ministri gratiae… ».


 

essa união torna-se automaticamente sacramen- tal. O próprio direito canónico reconhece a vali- dade de alguns matrimónios que se celebram sem um ministro ordenado.71 É que a ordem natural foi assumida pela redenção de Jesus Cristo, pelo que, « entre baptizados, não pode haver contra- to matrimonial válido que não seja, pelo mesmo facto, sacramento».72 A Igreja pode exigir que o acto seja público, a presença de testemunhas e outras condições que foram variando ao longo da história, mas isto não tira, aos dois esposos, o seu carácter de ministros do sacramento, nem diminui a centralidade do consentimento do ho- mem e da mulher, que é aquilo que, de por si, es- tabelece o vínculo sacramental. Em todo o caso, precisamos de reflectir mais sobre a acção divina no rito nupcial, que aparece muito evidenciada nas Igrejas Orientais ao ressaltarem a importân- cia da bênção sobre os contraentes como sinal do dom do Espírito.

 

sementes do Verbo e situAções imperFeitAs

  1. « O Evangelho da família nutre também as sementes ainda à espera de desenvolver-se e deve cuidar das árvores que perderam vitalidade e ne- cessitam que não as transcurem»,73de modo que, partindo do dom de Cristo no sacramento, « se-

 

71 Cf. Código de Direito Canónico, cc. 1116; 1161-1165; Códi- go dos Cânones das Igrejas Orientais, 832; 848-852.

72 Código de Direito Canónico, c. 1055-§ 2.

73 Relatio Synodi 2014, 23.


 

jam conduzidas pacientemente mais além, che- gando a um conhecimento mais rico e uma inte- gração mais plena deste mistério na sua vida ».74

 

  1. Assumindo o ensinamento bíblico de que tudo foi criado por Cristo e para Cristo (cf. Col 1, 16), os Padres sinodais lembraram que « a ordem da redenção ilumina e realiza a da criação. Assim, o matrimónio natural compreende-se plenamen- te à luz da sua realização sacramental: só fixando o olhar em Cristo é que se conhece cabalmente a verdade das relações “Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo en- carnado se esclarece verdadeiramente. (...) Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime” (Gaudium et spes, 22). Em particular é oportuno compreender, em chave cristocêntrica, (...) o bem dos cônjuges (bonum coniugum) »,75 que inclui a unidade, a aber- tura à vida, a fidelidade, a indissolubilidade e, no matrimónio cristão, também a ajuda mútua no caminho que leva a uma amizade mais plena com o Senhor. « O discernimento da presença das se- mina Verbi nas outras culturas (cf. Ad gentes, 11) pode-se aplicar também à realidade matrimonial e familiar. Para além do verdadeiro matrimónio natural, há elementos positivos também nas for- mas matrimoniais doutras tradições religiosas »,76

 

74 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 9: AAS 74 (1982), 90.

75 Relatio Finalis 2015, 47.

76 Ibidem.


 

embora não faltem também as sombras. Pode- mos dizer que « toda a pessoa que deseja formar, neste mundo, uma família que ensine os filhos a alegrar-se por cada acção que se proponha ven- cer o mal – uma família que mostre que o Espí- rito está vivo e operante – encontrará gratidão e estima, independentemente do povo, região ou religião a que pertença ».77

 

  1. « O olhar de Cristo, cuja luz ilumina todo o homem (cf. Jo 1, 9; Gaudium et spes, 22), inspira o cuidado pastoral da Igreja pelos fiéis que simples- mente vivem juntos, que contraíram matrimónio apenas civil ou são divorciados que voltaram a casar. Na perspectiva da pedagogia divina, a Igre- ja olha com amor para aqueles que participam de modo imperfeito na vida dela: com eles, invoca a graça da conversão; encoraja-os a fazerem o bem, a cuidarem com amor um do outro e colo- carem-se ao serviço da comunidade onde vivem e (...) Quando a união alcança uma es- tabilidade notável por meio dum vínculo público
  • e se reveste de afecto profundo, responsabili- dade pela prole, capacidade de superar as prova- ções –, pode ser vista como uma oportunidade a encaminhar para o sacramento do matrimónio, sempre que este seja possível ».78

 

77  FrAncisco,  Homilia  na  Santa  Missa  de  encerramento  do VIII Encontro Mundial das Famílias em Filadélfia (27 de Setem- bro de 2015): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 08/X/2015), 4.

78 Relatio Finalis 2015, 53-54.


 

  1. « Perante situações difíceis e famílias feri- das, é preciso lembrar sempre um princípio geral: “Saibam os pastores que, por amor à verdade, es- tão obrigados a discernir bem as situações” (Fa- miliaris consortio, 84). O grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, e podem existir factores que limitem a capacidade de decisão. Por isso, ao mesmo tempo que se exprime com clareza a doutrina, há que evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diferen- tes situações, e é preciso estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição ».79

 

A trAnsmissão dA VidA e A educAção dos Filhos

  1. O matrimónio é, em primeiro lugar, uma « ín- tima comunidade da vida e do amor conjugal »,80que constitui um bem para os próprios esposos;81 e a sexualidade « ordena-se para o amor conjugal do homem e da mulher ».82 Por isso, também « os esposos a quem Deus não concedeu a graça de ter filhos podem ter uma vida conjugal cheia de sen- tido, humana e cristãmente falando ».83 Contudo, esta união está ordenada para a geração « por sua

 

79 Ibid., 51.

80  conc.  ecum.  VAt.  ii,  Const.  past.  sobre  a  Igreja  no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48.

81 Cf. Código de Direito Canónico, c. 1055-§ 1: « ad bonum co- niugum atque ad prolis generationem et educationem ordinatum ».

82 Catecismo da Igreja Católica, 2360.

83 Ibid., 1654.


 

própria natureza ».84 O bebé que chega « não vem de fora juntar-se ao amor mútuo dos esposos; sur- ge no próprio coração deste dom mútuo, do qual é fruto e complemento ».85 Não aparece como o final dum processo, mas está presente desde o iní- cio do amor como uma característica essencial que não pode ser negada sem mutilar o próprio amor. Desde o início, o amor rejeita qualquer impulso para se fechar em si mesmo, e abre-se a uma fe- cundidade que o prolonga para além da sua pró- pria existência. Assim nenhum acto sexual dos es- posos pode negar este significado,86 embora, por várias razões, nem sempre possa efectivamente gerar uma nova vida.

 

  1. O filho pede para nascer, não de qualquer maneira, mas deste amor, porque ele « não é uma dívida, mas uma dádiva »,87 que é « o fruto do acto específico do amor conjugal de seus pais ».88 Com efeito, « segundo a ordem da criação, o amor con- jugal entre um homem e uma mulher e a trans- missão da vida estão ordenados reciprocamente (cf. Gn 1, 27-28). Deste modo, o Criador tornou participantes da obra da sua criação o homem e a

 

84  conc.  ecum.  VAt.  ii,  Const.  past.  sobre  a  Igreja  no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48.

85 Catecismo da Igreja Católica, 2366.

86 Cf. pAulo Vi, Carta enc. Humanae vitae (25 de Julho de 1968), 11-12: AAS 60 (1968), 488-489.

87 Catecismo da Igreja Católica, 2378.

88  congr. pArA A doutrinA dA Fé, Instr. sobre o respeito da vida humana nascente e a dignidade da procriação Donum vitae (22 de Fevereiro de 1987), II, 8: AAS 80 (1988), 97.


 

mulher e, ao mesmo tempo, fê-los instrumentos do seu amor, confiando à sua responsabilidade o futuro da humanidade através da transmissão da vida humana ».89

 

  1. Os Padres sinodais referiram que « não é difícil constatar como se está espalhando uma mentalidade que reduz a geração da vida a uma variável dos projectos individuais ou dos cônju- ges ».90 A doutrina da Igreja « ajuda a viver de ma- neira harmoniosa e consciente a comunhão entre os cônjuges, em todas as suas dimensões, junta- mente com a responsabilidade É preci- so redescobrir a mensagem da Encíclica Humanae vitae de Paulo VI, que sublinha a necessidade de respeitar a dignidade da pessoa na avaliação mo- ral dos métodos de regulação da natalidade. (...) A escolha da adopção e do acolhimento exprime uma fecundidade particular da experiência con- jugal ».91 Com particular gratidão, a Igreja « apoia as famílias que acolhem, educam e rodeiam de carinho os filhos deficientes ».92

 

  1. Neste contexto, não posso deixar de afir- mar que, se a família é o santuário da vida, o lu- gar onde a vida é gerada e cuidada, constitui uma contradição lancinante fazer dela o lugar onde a vida é negada e destruída. É tão grande o va-

 

89  Relatio Finalis 2015, 63.

90  Relatio Synodi 2014, 57.

91  Ibid., 58.

92 Ibid., 57.


 

lor duma vida humana e inalienável o direito à vida do bebé inocente que cresce no ventre de sua mãe, que de modo nenhum se pode afirmar como um direito sobre o próprio corpo a pos- sibilidade de tomar decisões sobre esta vida que é fim em si mesma e nunca poderá ser objecto de domínio doutro ser humano. A família prote- ge a vida em todas as fases da mesma, incluindo o seu ocaso. Por isso, « a quem trabalha nas es- truturas sanitárias, lembra-se a obrigação moral da objecção de consciência. Da mesma forma, a Igreja não só sente a urgência de afirmar o direito à morte natural, evitando o excesso terapêutico e a eutanásia », mas também « rejeita firmemente a pena de morte ».93

 

  1. Os Padres quiseram sublinhar também que

« um dos desafios fundamentais que as famílias enfrentam hoje é seguramente o desafio educa- tivo, que se tornou ainda mais difícil e complexo por causa da realidade cultural actual e da gran- de influência dos meios de comunicação».94 « A Igreja desempenha um papel precioso de apoio às famílias, a começar pela iniciação cristã, atra- vés de comunidades acolhedoras ».95 Mas parece-

-me muito importante lembrar que a educação integral dos filhos é, simultaneamente, « dever gravíssimo » e « direito primário » dos pais.96 Não

 

93  Relatio Finalis 2015, 64.

94  Relatio Synodi 2014, 60.

95 Ibid., 61.

96 Código de Direito Canónico, c. 1136; cf. Código dos Cânones das Igrejas Orientais, 627.


 

é apenas um encargo ou um peso, mas também um direito essencial e insubstituível que estão chamados a defender e que ninguém deveria pre- tender tirar-lhes. O Estado oferece um serviço educativo de maneira subsidiária, acompanhando a função não-delegável dos pais, que têm direito de poder escolher livremente o tipo de educação

– acessível e de qualidade – que querem dar aos seus filhos, de acordo com as suas convicções. A escola não substitui os pais; serve-lhes de com- plemento. Este é um princípio básico: « qualquer outro participante no processo educativo não pode operar senão em nome dos pais, com o seu consenso e, em certa media, até mesmo por seu encargo».97 Infelizmente, « abriu-se uma fenda entre família e sociedade, entre família e escola; hoje, o pacto educativo quebrou-se; e, assim, a aliança educativa da sociedade com a família en- trou em crise ».98

 

  1. A Igreja é chamada a colaborar, com uma acção pastoral adequada, para que os próprios pais possam cumprir a sua missão educativa; e sempre o deve fazer, ajudando-os a valorizar a sua função específica e a reconhecer que quantos recebem o sacramento do matrimónio são trans- formados em verdadeiros ministros educativos, pois, quando formam os seus filhos, edificam a

 

97  pont.  conselho  pArA  A  FAmíliA,  Sexualidade  humana: verdade e significado (8 de Dezembro de 1995), 23.

98  FrAncisco, Catequese (20 de Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 21/V/2015), 20.


 

Igreja99 e, fazendo-o, aceitam uma vocação que Deus lhes propõe.100

 

A FAmíliA e A igreJA

  1. « Com íntima alegria e profunda consolação, a Igreja olha para as famílias que permanecem fiéis aos ensinamentos do Evangelho, agradecendo-

-lhes pelo testemunho que dão e encorajando-as. Com efeito, graças a elas, torna-se credível a bele- za do matrimónio indissolúvel e fiel para sempre. Na família, “como numa igreja doméstica” (Lu- men gentium, 11), amadurece a primeira experiência eclesial da comunhão entre as pessoas, na qual, por graça, se reflecte o mistério da Santíssima Trindade. “É aqui que se aprende a tenacidade e a alegria no trabalho, o amor fraterno, o perdão generoso e sempre renovado, e sobretudo o culto divino, pela oração e pelo oferecimento da pró- pria vida” (Catecismo da Igreja Católica, 1657) ».101

 

  1. A Igreja é família de famílias, constante- mente enriquecida pela vida de todas as igrejas domésticas. Assim, « em virtude do sacramento do matrimónio, cada família torna-se, para todos os efeitos, um bem para a Nesta perspec- tiva, será certamente um dom precioso, para o

 

99 Cf. João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 38: AAS 74 (1982), 129.

100  Cf. FrAncisco, Discurso à Assembleia diocesana de Roma (14 de Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portu- guesa de 18/VI/2015), 6.

101 Relatio Synodi 2014, 23.


 

momento actual da Igreja, considerar também a reciprocidade entre família e Igreja: a Igreja é um bem para a família, a família é um bem para a Igreja. A salvaguarda deste dom sacramental do Senhor compete não só à família individual, mas a toda a comunidade cristã ».102

 

  1. O amor vivido nas famílias é uma força permanente para a vida da « O fim unitivo do matrimónio é um apelo constante a crescer e aprofundar este amor. Na sua união de amor, os esposos experimentam a beleza da paternidade e da maternidade; partilham projectos e fadigas, anseios e preocupações; aprendem a cuidar um do outro e a perdoar-se mutuamente. Neste amor, celebram os seus momentos felizes e apoiam-se nos episódios difíceis da história da sua vida. (...) A beleza do dom recíproco e gratuito, a alegria pela vida que nasce e a amorosa solicitude de to- dos os seus membros, desde os pequeninos aos idosos, são apenas alguns dos frutos que tornam única e insubstituível a resposta à vocação da fa- mília »,103 tanto para a Igreja como para a socie- dade inteira.

 

 

 

 

 

 

 

102 Relatio Finalis 2015, 52.

103 Ibid., 49-50.


 

 

 

 

 

CAPÍTULO IV

o Amor no mAtrimónio

 

  1. Tudo o que foi dito não é suficiente para exprimir o Evangelho do matrimónio e da famí- lia, se não nos detivermos particularmente a falar do Com efeito, não poderemos encorajar um caminho de fidelidade e doação recíproca, se não estimularmos o crescimento, a consolidação e o aprofundamento do amor conjugal e familiar. De facto, a graça do sacramento do matrimónio destina-se, antes de mais nada, « a aperfeiçoar o amor dos cônjuges».104Também aqui é verdade que, « ainda que eu tenha tão grande fé que trans- porte montanhas, se não tiver amor, nada sou. Ainda que eu distribua todos os meus bens e en- tregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor de nada me vale » (1 Cor 13, 2-3). Mas a palavra « amor », uma das mais usadas, muitas vezes aparece desfigurada.105

 

o nosso Amor quotidiAno

  1. No chamado hino à caridade escrito por São Paulo, vemos algumas características do amor verdadeiro:

 

104 Catecismo da Igreja Católica, 1641.

105 Cf. bento xVi, Carta enc. Deus caritas est (25 de De- zembro de 2005), 2: AAS 98 (2006), 218.


 

« O amor é paciente, o amor é prestável; não é invejoso,

não é arrogante nem orgulhoso, nada faz de inconveniente,

não procura o seu próprio interesse, não se irrita,

nem guarda ressentimento, não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa,

tudo crê, tudo espera,

tudo suporta» (1 Cor 13, 4-7).

Isto pratica-se e cultiva-se na vida que os es- posos partilham dia-a-dia entre si e com os seus filhos. Por isso, vale a pena deter-se a esclarecer o significado das expressões deste texto, tendo em vista uma aplicação à existência concreta de cada família.

 

Paciência

  1. A primeira palavra usada é « macrothymei ». A sua tradução não é simplesmente « suporta tudo», porque esta ideia é expressa no final do versícu- lo 7. O sentido encontra-se na tradução grega do texto do Antigo Testamento onde se diz que Deus é « lento para a ira » (Nm 14, 18; Ex 34, 6). Uma pessoa mostra-se paciente, quando não se deixa levar pelos impulsos interiores e evita agredir. A paciência é uma qualidade do Deus da


 

Aliança, que convida a imitá-Lo também na vida familiar. Os textos onde Paulo usa este termo de- vem ser lidos à luz do livro da Sabedoria (cf. 11, 23; 12, 2.15-18): ao mesmo tempo que se louva a moderação de Deus para dar tempo ao arrepen- dimento, insiste-se no seu poder que se manifes- ta quando actua com misericórdia. A paciência de Deus é exercício da misericórdia de Deus para com o pecador e manifesta o verdadeiro poder.

 

  1. Ter paciência não é deixar que nos maltra- tem permanentemente, nem tolerar agressões físicas, ou permitir que nos tratem como objec- O problema surge quando exigimos que as relações sejam idílicas, ou que as pessoas sejam perfeitas, ou quando nos colocamos no centro esperando que se cumpra unicamente a nossa vontade. Então tudo nos impacienta, tudo nos leva a reagir com agressividade. Se não cultivar- mos a paciência, sempre acharemos desculpas para responder com ira, acabando por nos tor- narmos pessoas que não sabem conviver, anti-

-sociais incapazes de dominar os impulsos, e a fa- mília tornar-se-á um campo de batalha. Por isso, a Palavra de Deus exorta-nos: « Toda a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade » (Ef 4, 31). Esta paciência reforça-se quando reconheço que o outro, assim como é, também tem direito a viver comigo nesta terra. Não importa se é um estorvo para mim, se altera os meus planos, se me molesta com o seu modo de ser ou com as


 

suas ideias, se não é em tudo como eu esperava. O amor possui sempre um sentido de profunda compaixão, que leva a aceitar o outro como parte deste mundo, mesmo quando age de modo dife- rente daquilo que eu desejaria.

 

Atitude de serviço

  1. Vem depois a palavra jrestéuetai – a única vez que aparece em toda a Bíblia –, que deriva de jrestós (pessoa boa, que mostra a sua bondade nas acções). Mas pelo lugar onde está, ou seja, em estrito paralelismo com o verbo anterior, é seu complemento. Deste modo Paulo pretende es- clarecer que a « paciência », nomeada em primeiro lugar, não é uma postura totalmente passiva, mas há-de ser acompanhada por uma actividade, uma reacção dinâmica e criativa perante os In- dica que o amor beneficia e promove os outros. Por isso, traduz-se como « prestável ».

 

  1. No conjunto do texto, vê-se que Paulo quer insistir que o amor não é apenas um sentimento, mas deve ser entendido no sentido que o verbo

« amar » tem em hebraico: « fazer o bem ». Como dizia Santo Inácio de Loyola, « o amor deve ser colocado mais nas obras do que nas palavras ».106 Assim poderá mostrar toda a sua fecundidade, permitindo-nos experimentar a felicidade de dar, a nobreza e grandeza de doar-se superabundan-

 

106 Exercícios espirituais, Contemplação para alcançar o amor (230).


 

temente, sem calcular nem reclamar pagamento, mas apenas pelo prazer de dar e servir.

 

Curando a inveja

  1. Em seguida rejeita-se, como contrária ao amor, uma atitude expressa como zeloi (ciúme ou inveja). Significa que, no amor, não há lugar para sentir desgosto pelo bem do outro (cf. Act 7, 9; 17, 5). A inveja é uma tristeza pelo bem alheio, demostrando que não nos interessa a felicidade dos outros, porque estamos concentrados ex- clusivamente no nosso bem-estar. Enquanto o amor nos faz sair de nós mesmos, a inveja leva a centrar-nos em nós próprios. O verdadeiro amor aprecia os sucessos alheios, não os sente como uma ameaça, libertando-se do sabor amargo da inveja. Aceita que cada um tenha dons distintos e caminhos diferentes na vida; e, consequente- mente, procura descobrir o seu próprio caminho para ser feliz, deixando que os outros encontrem o

 

  1. Em última análise, trata-se de cumprir o que pedem os dois últimos mandamentos da Lei de Deus: « Não desejarás a casa do teu próximo. Não desejarás a mulher do teu próximo, o seu servo, a sua serva, o seu boi, o seu burro, e tudo o que é do teu próximo » (Ex 20, 17). O amor leva-

-nos a uma apreciação sincera de cada ser huma- no, reconhecendo o seu direito à felicidade. Amo aquela pessoa, vejo-a com o olhar de Deus Pai, que nos dá tudo « para nosso usufruto » (1 Tim


 

6, 17), e consequentemente aceito, no meu ínti- mo, que ela possa usufruir dum momento bom. Entretanto esta mesma raiz do amor leva-me a rejeitar a injustiça de alguns terem muito e outros não terem nada, ou induz-me a procurar que os próprios descartáveis da sociedade possam viver um pouco de alegria. Mas isto não é inveja; são anseios de equidade.

 

Sem ser arrogante nem se orgulhar

  1. Segue-se o termo perpereuetai, que indica vanglória, desejo de se mostrar superior para im- pressionar os outros com atitude pedante e um pouco agressiva. Quem ama não só evita falar muito de si mesmo, mas, porque está centrado nos outros, sabe manter-se no seu lugar sem pretender estar no centro. A palavra seguinte – physioutai – é muito semelhante, indicando que o amor não é arrogante. Literalmente afirma que não se « engrandece » diante dos outros; mas indica algo de mais subtil. Não se trata apenas duma obsessão por mostrar as próprias quali- dades; é pior: perde-se o sentido da realidade, a pessoa considera-se maior do que é, porque se crê mais « espiritual » ou « sábia ». Paulo usa este verbo noutras ocasiões, para dizer, por exemplo, que « a ciência incha », ao passo que « a caridade edifica » (1 Cor 8, 1). Por outras palavras, alguns julgam-se grandes, porque sabem mais do que os outros, dedicando-se a impor-lhes exigências e a controlá-los; quando, na realidade, o que nos faz grandes é o amor que compreende, cuida,


 

integra, está atento aos fracos. Noutro versícu- lo, usa-o para criticar aqueles que « se tornaram insolentes » (1 Cor 4, 18), mas, na realidade, têm mais palavreado do que verdadeiro « poder » do Espírito (cf. 1 Cor 4, 19).

 

  1. É importante que os cristãos vivam isto no seu modo de tratar os familiares pouco forma- dos na fé, frágeis ou menos firmes nas suas con- vicções. Às vezes, dá-se o contrário: as pessoas que, no seio da família, se consideram mais de- senvolvidas, tornam-se arrogantes insuportáveis. A atitude de humildade aparece aqui como algo que faz parte do amor, porque, para poder com- preender, desculpar ou servir os outros de co- ração, é indispensável curar o orgulho e cultivar a Jesus lembrava aos seus discípulos que, no mundo do poder, cada um procura do- minar o outro, e acrescentava: « não seja assim entre vós» (Mt 20, 26). A lógica do amor cristão não é a de quem se considera superior aos outros e precisa de fazer-lhes sentir o seu poder, mas a de « quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo» (Mt 20, 27). Na vida familiar, não pode reinar a lógica do domínio de uns sobre os outros, nem a competição para ver quem é mais inteligente ou poderoso, porque esta lógica acaba com o amor. Vale também para a família o seguinte conselho: « Revesti-vos todos de humil- dade no trato uns com os outros, porque Deus opõe-se aos soberbos, mas dá a sua graça aos hu- mildes » (1 Ped 5, 5).


 

Amabilidade

  1. Amar é também tornar-se amável, e nisto está o sentido do termo asjemonéi. Significa que o amor não age rudemente, não actua de forma inconveniente, não se mostra duro no Os seus modos, as suas palavras, os seus gestos são agradáveis; não são ásperos, nem rígidos. Detesta fazer sofrer os outros. A cortesia « é uma esco- la de sensibilidade e altruísmo », que exige que a pessoa « cultive a sua mente e os seus sentidos, aprenda a ouvir, a falar e, em certos momentos, a calar ».107 Ser amável não é um estilo que o cristão possa escolher ou rejeitar: faz parte das exigên- cias irrenunciáveis do amor, por isso « todo o ser humano está obrigado a ser afável com aqueles que o rodeiam ».108 Diariamente « entrar na vida do outro, mesmo quando faz parte da nossa exis- tência, exige a delicadeza duma atitude não inva- siva, que renova a confiança e o respeito. (...) E quanto mais íntimo e profundo for o amor, tanto mais exigirá o respeito pela liberdade e a capaci- dade de esperar que o outro abra a porta do seu coração ».109

 

  1. A fim de se predispor para um verdadeiro encontro com o outro, requer-se um olhar amável pousado Isto não é possível quando reina um

 

107 octAVio pAZ, La llama doble (Barcelona 1993), 35.

108 tomás de Aquino, Summa theologiae, II-II, q. 114, art. 2, ad 1.

109  FrAncisco, Catequese (13 de Maio de 2015): L’Osservato- re Romano (ed. semanal portuguesa de 14/V/2015), 16.


 

pessimismo que põe em evidência os defeitos e erros alheios, talvez para compensar os próprios complexos. Um olhar amável faz com que nos de- tenhamos menos nos limites do outro, podendo assim tolerá-lo e unirmo-nos num projecto co- mum, apesar de sermos diferentes. O amor amá- vel gera vínculos, cultiva laços, cria novas redes de integração, constrói um tecido social firme. Deste modo, uma pessoa protege-se a si mesma, pois, sem sentido de pertença, não se pode sustentar uma entrega aos outros, acabando cada um por buscar apenas as próprias conveniências, e a con- vivência torna-se impossível. Uma pessoa anti-so- cial julga que os outros existem para satisfazer as suas necessidades e, quando o fazem, cumprem apenas o seu dever. Neste caso, não haveria espaço para a amabilidade do amor e a sua linguagem. A pessoa que ama é capaz de dizer palavras de incen- tivo, que reconfortam, fortalecem, consolam, esti- mulam. Vejamos, por exemplo, algumas palavras que Jesus dizia às pessoas: « Filho, tem confiança! » (Mt 9, 2). « Grande é a tua fé! » (Mt 15, 28). « Levan-

ta-te! » (Mc 5, 41). « Vai em paz » (Lc 7, 50). « Não temais! » (Mt 14, 27). Não são palavras que humi- lham, angustiam, irritam, desprezam. Na família, é preciso aprender esta linguagem amável de Jesus.

 

Desprendimento

  1. Como se diz muitas vezes, para amar os outros, é preciso primeiro amar-se a si Todavia este hino à caridade afirma que o amor

« não procura o seu próprio interesse », ou « não


 

procura o que é seu ». Esta expressão aparece ain- da noutro texto: « Não tenha cada um em vista os próprios interesses, mas todos e cada um exacta- mente os interesses dos outros » (Flp 2, 4). Peran- te uma afirmação assim clara da Sagrada Escritu- ra, deve-se evitar de dar prioridade ao amor a si mesmo, como se fosse mais nobre do que o dom de si aos outros. Uma certa prioridade do amor a si mesmo só se pode entender como condição psicológica, pois uma pessoa que seja incapaz de se amar a si mesma sente dificuldade em amar os outros: « Para quem será bom aquele que é mau para si mesmo? (...) Não há pior do que aquele que é avaro para si mesmo » (Sir 14, 5-6).

 

  1. Mas o próprio Tomás de Aquino expli- cou « ser mais próprio da caridade querer amar do que querer ser amado »,110 e que de facto « as mães, que são as que mais amam, procuram mais amar do que ser amadas ».111 Por isso, o amor pode superar a justiça e transbordar gratuitamen- te « sem nada esperar em troca» (Lc 6, 35), até chegar ao amor maior que é « dar a vida » pelos outros (Jo 15, 13). Mas será possível um despren- dimento assim, que permite dar gratuitamente e dar até ao fim? Sem dúvida, porque é o que pede o Evangelho: « Recebestes de graça, dai de graça » (Mt 10, 8).

 

110 Summa theologiae, II-II, q. 27, art. 1, ad. 2.

111 Ibid., II-II, q. 27, art. 1.


 

Sem violência interior

  1. Se a primeira expressão do hino nos con- vidava à paciência, que evita reagir bruscamente perante as fraquezas ou erros dos outros, agora aparece outra palavra – paroxýnetai – que diz res- peito a uma reacção interior de indignação pro- vocada por algo exterior. Trata-se de uma vio- lência interna, uma irritação recôndita que nos põe à defesa perante os outros, como se fossem inimigos molestos a Alimentar esta agres- sividade íntima, de nada aproveita. Serve apenas para nos adoentar, acabando por nos isolar. A indignação é saudável, quando nos leva a reagir perante uma grave injustiça; mas é prejudicial, quando tende a impregnar todas as nossas atitu- des para com os outros.

 

  1. O Evangelho convida a olhar primeiro a trave na própria vista (cf. Mt 7, 5), e nós, cristãos, não podemos ignorar o convite constante da Pa- lavra de Deus para não se alimentar a ira: « Não te deixes vencer pelo mal» (Rm 12, 21); « não nos cansemos de fazer o bem » (Gal 6, 9). Uma coi- sa é sentir a força da agressividade que irrom- pe, e outra é consentir nela, deixar que se torne uma atitude permanente: « Se vos irardes, não pequeis; que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento » (Ef 4, 26). Por isso, nunca se deve terminar o dia sem fazer as pazes na família. « E como devo fazer as pazes? Ajoelhar-me? Não! Para restabelecer a harmonia familiar basta um pequeno gesto, uma coisa de nada. É suficiente


 

uma carícia, sem palavras. Mas nunca permitais que o dia em família termine sem fazer as pa- zes ».112 A reacção interior perante uma moléstia que nos causam os outros, deveria ser, antes de mais nada, abençoar no coração, desejar o bem do outro, pedir a Deus que o liberte e cure. « Res- pondei com palavras de bênção, pois a isto fostes chamados: a herdar uma bênção » (1 Ped 3, 9). Se tivermos de lutar contra um mal, façamo-lo; mas sempre digamos « não » à violência interior.

 

Perdão

  1. Se permitirmos a entrada dum mau senti- mento no nosso íntimo, damos lugar ao ressen- timento que se aninha no coração. A frase logí- zetai to kakón significa que se « tem em conta o mal », « trá-lo gravado », ou seja, está O contrário disto é o perdão; perdão fundado numa atitude positiva que procura compreender a fraqueza alheia e encontrar desculpas para a outra pessoa, como Jesus que diz: « Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34). Entretanto a tendência costuma ser a de buscar cada vez mais culpas, imaginar cada vez mais maldades, supor todo o tipo de más intenções, e assim o ressentimento vai crescendo e cria raízes. Deste modo, qualquer erro ou queda do cônjuge pode danificar o vínculo de amor e a estabilidade familiar. O problema é que, às vezes, atribui-se a

 

112  FrAncisco, Catequese (13 de Maio de 2015): L’Osservato- re Romano (ed. semanal portuguesa de 14/V/2015), 16.


 

tudo a mesma gravidade, com o risco de tornar-

-se cruel perante qualquer erro do outro. A justa reivindicação dos próprios direitos torna-se mais uma persistente e constante sede de vingança do que uma sã defesa da própria dignidade.

 

  1. Quando estivermos ofendidos ou de- siludidos, é possível e desejável o perdão; mas ninguém diz que seja fácil. A verdade é que « a comunhão familiar só pode ser conservada e aperfeiçoada com grande espírito de sacrifício. Exige, de facto, de todos e de cada um, pron- ta e generosa disponibilidade à compreensão, à tolerância, ao perdão, à reconciliação. Nenhuma família ignora como o egoísmo, o desacordo, as tensões, os conflitos agridem, de forma violenta e às vezes mortal, a comunhão: daqui as múltiplas e variadas formas de divisão da vida familiar ».113

 

  1. Hoje sabemos que, para se poder perdoar, precisamos de passar pela experiência liberta- dora de nos compreendermos e perdoarmos a nós mesmos. Quantas vezes os nossos erros ou o olhar crítico das pessoas que amamos nos fize- ram perder o amor a nós próprios; isto acaba por nos levar a acautelar-nos dos outros, esquivan- do-nos do seu afecto, enchendo-nos de suspeitas nas relações interpessoais. Então, poder culpar os outros torna-se um falso alívio. Faz falta rezar com a própria história, aceitar-se a si mesmo, sa-

 

113 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 21: AAS 74 (1982), 106.


 

ber conviver com as próprias limitações e inclusi- ve perdoar-se, para poder ter esta mesma atitude com os outros.

 

  1. Mas isto pressupõe a experiência de ser perdoados por Deus, justificados gratuitamente e não pelos nossos méritos. Fomos envolvidos por um amor prévio a qualquer obra nossa, que sempre dá uma nova oportunidade, promove e incentiva. Se aceitamos que o amor de Deus é incondicional, que o carinho do Pai não se deve comprar nem pagar, então poderemos amar sem limites, perdoar aos outros, ainda que tenham sido injustos para connosco. Caso contrário, a nossa vida em família deixará de ser um lugar de compreensão, companhia e incentivo, e tor- nar-se-á um espaço de permanente tensão ou de castigo mútuo.

 

Alegrar-se com os outros

  1. A expressão jairei epi te adikía indica algo de negativo arraigado no segredo do coração da pessoa. É a atitude venenosa de quem, ao ver feita a alguém uma injustiça, se alegra. A frase é completada pela seguinte, que o diz de forma positiva: sygjairei te alétheia – rejubila com a ver- Por outras palavras, alegra-se com o bem do outro, quando se reconhece a sua dignidade, quando se apreciam as suas capacidades e as suas boas obras. Isto é impossível para quem sente a necessidade de estar sempre a comparar-se ou a competir, inclusive com o próprio cônjuge, até


 

ao ponto de se alegrar secretamente com os seus fracassos.

 

  1. Quando uma pessoa que ama pode fazer algo de bom pelo outro, ou quando vê que a vida está a correr bem ao outro, vive isso com alegria e, assim, dá glória a Deus, porque « Deus ama quem dá com alegria » (2 Cor 9, 7), nosso Senhor aprecia de modo especial quem se alegra com a felicidade do Se não alimentamos a nos- sa capacidade de rejubilar com o bem do outro, concentrando-nos sobretudo nas nossas próprias necessidades, condenamo-nos a viver com pouca alegria, porque – como disse Jesus – « a felicidade está mais em dar do que em receber » (At 20, 35). A família deve ser sempre o lugar onde uma pes- soa que consegue algo de bom na vida, sabe que ali se vão congratular com ela.

 

Tudo desculpa

  1. O elenco é completado com quatro ex- pressões que falam duma totalidade: « tudo». Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo su- porta. Assim se destaca vigorosamente o dina- mismo contracorrente do amor, capaz de enfren- tar qualquer coisa que o possa ameaçar.

 

  1. Em primeiro lugar, diz-se que « tudo des- culpa – panta stégei ». É diferente de « não ter em conta o mal», porque este termo tem a ver com o uso da língua; pode significar « guardar silên- cio » a propósito do mal que possa haver noutra


 

pessoa. Implica limitar o juízo, conter a inclina- ção para se emitir uma condenação dura e im- placável: « Não condeneis e não sereis condena- dos » (Lc 6, 37). Embora isto vá contra o uso que habitualmente fazemos da língua, a Palavra de Deus pede-nos: « Não faleis mal uns dos outros, irmãos » (Tg 4, 11). Deter-se a danificar a imagem do outro é uma maneira de reforçar a própria, de descarregar ressentimentos e invejas, sem se importar com o dano causado. Muitas vezes es- quece-se que a difamação pode ser um grande pecado, uma grave ofensa a Deus, quando afecta seriamente a boa fama dos outros, causando-lhes danos muito difíceis de reparar. Por isso a Palavra de Deus se mostra tão dura com a língua, dizen- do que « é um mundo de iniquidade [que] con- tamina todo o corpo » (Tg 3, 6), « um mal incon- trolável, carregado de veneno mortal» (Tg 3, 8). Se « com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus» (Tg 3, 9), o amor faz o con- trário, defendendo a imagem dos outros e com uma delicadeza tal que leva mesmo a preservar a boa fama dos inimigos. Ao defender a lei divina, é preciso nunca esquecer esta exigência do amor.

 

  1. Os esposos, que se amam e se pertencem, falam bem um do outro, procuram mostrar mais o lado bom do cônjuge do que as suas fraquezas e erros. Em todo o caso, guardam silêncio para não danificar a sua imagem. Mas não é apenas um gesto externo, brota duma atitude interior. Também não é a ingenuidade de quem preten-


 

de não ver as dificuldades e os pontos fracos do outro, mas a perspectiva ampla de quem coloca estas fraquezas e erros no seu contexto; lembra-

-se de que estes defeitos constituem apenas uma parte, não são a totalidade do ser do outro: um facto desagradável no relacionamento não é a to- talidade desse relacionamento. Assim é possível aceitar, com simplicidade, que todos somos uma complexa combinação de luzes e sombras. O ou- tro não é apenas aquilo que me incomoda; é mui- to mais do que isso. E, pela mesma razão, não lhe exijo que seja perfeito o seu amor para o apreciar: ama-me como é e como pode, com os seus li- mites, mas o facto de o seu amor ser imperfeito não significa que seja falso ou que não seja real. É real, mas limitado e terreno. Por isso, se eu lhe exigir demais, de alguma maneira mo fará saber, pois não poderá nem aceitará desempenhar o pa- pel dum ser divino nem estar ao serviço de todas as minhas necessidades. O amor convive com a imperfeição, desculpa-a e sabe guardar silêncio perante os limites do ser amado.

 

Confia

  1. « Panta pisteuei – tudo crê ». Pelo contexto, não se deve entender esta « fé » em sentido teo- lógico, mas no sentido comum de « confiança ». Não se trata apenas de não suspeitar que o outro esteja mentindo ou enganando; esta confiança básica reconhece a luz acesa por Deus que se es- conde por detrás da escuridão, ou a brasa ainda acesa sob as


 

  1. É precisamente esta confiança que torna possível uma relação em Não é neces- sário controlar o outro, seguir minuciosamente os seus passos, para evitar que fuja dos meus bra- ços. O amor confia, deixa em liberdade, renun- cia a controlar tudo, a possuir, a dominar. Esta liberdade, que possibilita espaços de autonomia, abertura ao mundo e novas experiências, consen- te que a relação se enriqueça e não se transfor- me numa endogamia sem horizontes. Assim, ao reencontrar-se, os cônjuges podem viver a alegria de partilhar o que receberam e aprenderam fora do circuito familiar. Ao mesmo tempo torna pos- sível a sinceridade e a transparência, porque uma pessoa, quando sabe que os outros confiam nela e apreciam a bondade basilar do seu ser, mos- tra-se como é, sem dissimulações. Pelo contrá- rio, quando alguém sabe que sempre suspeitam dele, julgam-no sem compaixão e não o amam incondicionalmente, preferirá guardar os seus se- gredos, esconder as suas quedas e fraquezas, fin- gir o que não é. Concluindo, uma família, onde reina uma confiança sólida, carinhosa e, suceda o que suceder, sempre se volta a confiar, permite o florescimento da verdadeira identidade dos seus membros, fazendo com que se rejeite esponta- neamente o engano, a falsidade e a mentira.

 

Espera

  1. Panta elpízei: não desespera do futuro. Li- gado à palavra anterior, indica a esperança de quem sabe que o outro pode mudar; sempre es-


 

pera que seja possível um amadurecimento, um inesperado surto de beleza, que as potencialida- des mais recônditas do seu ser germinem algum dia. Não significa que, nesta vida, tudo vai mudar; implica aceitar que nem tudo aconteça como se deseja, mas talvez Deus escreva direito por linhas tortas e saiba tirar algum bem dos males que não se conseguem vencer nesta terra.

 

  1. Aqui aparece a esperança no seu sentido pleno, porque inclui a certeza duma vida para além da morte. Aquela pessoa, com todas as suas fraquezas, é chamada à plenitude do Céu: lá, completamente transformada pela ressurreição de Cristo, cessarão de existir as suas fraquezas, trevas e patologias; lá, o verdadeiro ser daquela pessoa resplandecerá com toda a sua potência de bem e beleza. Isto permite-nos, no meio das moléstias desta terra, contemplar aquela pessoa com um olhar sobrenatural, à luz da esperança, e aguardar aquela plenitude que, embora hoje não seja visível, há-de receber um dia no Reino ce- leste.

 

Tudo suporta

  1. Panta hypoménei significa que suporta, com espírito positivo, todas as É man- ter-se firme no meio dum ambiente hostil. Não consiste apenas em tolerar algumas coisas mo- lestas, mas é algo de mais amplo: uma resistência dinâmica e constante, capaz de superar qualquer desafio. É amor que apesar de tudo não desiste,


 

mesmo que todo o contexto convide a outra coi- sa. Manifesta uma dose de heroísmo tenaz, de força contra qualquer corrente negativa, uma op- ção pelo bem que nada pode derrubar. Isto lem- bra-me Martin Luther King, quando reafirmava a opção pelo amor fraterno, mesmo no meio das piores perseguições e humilhações: « A pessoa que mais te odeia, tem algo de bom nela; mesmo a nação que mais odeia, tem algo de bom nela; mesmo a raça que mais odeia, tem algo de bom nela. E, quando chegas ao ponto de fixar o rosto de cada ser humano e, bem no fundo dele, vês o que a religião chama a “imagem de Deus”, come- ças, não obstante tudo, a amá-lo. Não importa o que faça, lá vês a imagem de Deus. Há um ele- mento de bondade de que nunca poderás livrar-

-te. (...) Outra forma de amares o teu inimigo é esta: quando surge a oportunidade de derrotares o teu inimigo, aquele é o momento em que deves decidir não o fazer. (...) Quando te elevas ao nível do amor, da sua grande beleza e poder, a única coisa que procuras derrotar são os sistemas ma- lignos. Às pessoas que caíram na armadilha deste sistema, tu ama-las, mas procuras derrotar o sis- tema. (...) Ódio por ódio só intensifica a existên- cia do ódio e do mal no universo. Se eu te bato e tu me bates, e eu te devolvo a pancada e tu me devolves a pancada, e assim por diante… obvia- mente continua-se até ao infinito; simplesmente nunca termina. Nalgum ponto, alguém deve ter um pouco de bom senso, e esta é a pessoa forte. A pessoa forte é aquela que pode quebrar a ca-


 

deia do ódio, a cadeia do mal. (...) Alguém deve ter bastante fé e moralidade para a quebrar e in- jectar dentro da própria estrutura do universo o elemento forte e poderoso do amor ».114

 

  1. Na vida familiar, é preciso cultivar esta força do amor, que permite lutar contra o mal que a ameaça. O amor não se deixa dominar pelo ressentimento, o desprezo das pessoas, o dese- jo de se lamentar ou vingar de alguma coisa. O ideal cristão, nomeadamente na família, é amor que apesar de tudo não Deixa-me mara- vilhado, por exemplo, a atitude das pessoas que, para se proteger da violência física, tiveram de separar-se do seu cônjuge e todavia, pela carida- de conjugal que sabe ultrapassar os sentimentos, foram capazes de procurar o seu bem, mesmo através de terceiros, em momentos de doença, tribulação ou dificuldade. Isto também é amor que apesar de tudo não desiste.

 

crescer nA cAridAde conJugAl

  1. O cântico de São Paulo, que acabámos de repassar, permite-nos avançar para a caridade conjugal. Esta é o amor que une os esposos,115amor santificado, enriquecido e iluminado pela

 

114 Sermon delivered at Dexter Avenue Baptist Church (Mont- gomery-Alabama 17 de Novembro de 1957).

115 São Tomás de Aquino entende o amor como « vis uni- tiva » (Summa theologiae, I, q. 20, art. 1, ad 3), retomando uma ex- pressão de Dionísio Pseudo-Areopagita (De divinis monibus, IV, 12: PG 3, 709).


 

graça do sacramento do matrimónio. É uma

« união afectiva »,116 espiritual e oblativa, mas que reúne em si a ternura da amizade e a paixão eróti- ca, embora seja capaz de subsistir mesmo quando os sentimentos e a paixão enfraquecem. O Papa Pio XI ensinava que este amor permeia todos os deveres da vida conjugal e « detém como que o primado da nobreza ».117 Com efeito, este amor forte, derramado pelo Espírito Santo, é reflexo da aliança indestrutível entre Cristo e a humanidade que culminou na entrega até ao fim na cruz. « O Espírito, que o Senhor infunde, dá um coração novo e torna o homem e a mulher capazes de se amarem como Cristo nos amou. O amor conju- gal atinge assim aquela plenitude para a qual está interiormente ordenado: a caridade conjugal ».118

 

  1. O matrimónio é um sinal precioso, por- que, « quando um homem e uma mulher cele- bram o sacramento do matrimónio, Deus, por assim dizer, “espelha-Se” neles, imprime neles as suas características e o carácter indelével do seu O matrimónio é o ícone do amor de Deus por nós. Com efeito, também Deus é co- munhão: as três Pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo – vivem desde sempre e para sempre em unidade perfeita. É precisamente nisto que con-

 

116 Ibid., II-II, q. 27, art. 2.

117 Carta enc. Casti connubii (31 de Dezembro de 1930):

AAS 22 (1930), 547-548.

118 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 13: AAS 74 (1982), 94.


 

siste o mistério do matrimónio: dos dois esposos, Deus faz uma só existência ».119 Isto tem conse- quências muito concretas na vida do dia-a-dia, porque, « em virtude do sacramento, os esposos são investidos numa autêntica missão, para que possam tornar visível, a partir das realidades sim- ples e ordinárias, o amor com que Cristo ama a sua Igreja, continuando a dar a vida por ela ».120

 

  1. Todavia convém não confundir planos diferentes: não se deve atirar para cima de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que re- produzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e a sua Igreja, porque o matrimónio como sinal implica « um processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus ».121

 

A vida toda, tudo em comum

  1. Depois do amor que nos une a Deus, o amor conjugal é a « amizade maior ».122 É uma união que tem todas as características duma boa amizade: busca do bem do outro, reciprocidade, intimidade, ternura, estabilidade e uma semelhan- ça entre os amigos que se vai construindo com

 

119  FrAncisco, Catequese (2 de Abril de 2014): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 03/IV/2014), 12.

120 Ibidem.

121 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 9: AAS 74 (1982), 90.

122  tomás de Aquino, Summa contra gentiles, III, 123; cf. Aris-

tóteles, Ética a Nicómaco, 8, 12 (ed. Bywater, Oxford 1984, 174).


 

a vida partilhada. O matrimónio, porém, acres- centa a tudo isso uma exclusividade indissolúvel, que se expressa no projecto estável de partilhar e construir juntos toda a existência. Sejamos since- ros na leitura dos sinais da realidade: quem está enamorado não projecta que essa relação possa ser apenas por um certo tempo; quem vive in- tensamente a alegria de se casar não está a pensar em algo de passageiro; aqueles que acompanham a celebração duma união cheia de amor, embora frágil, esperam que possa perdurar no tempo; os filhos querem não só que os seus pais se amem, mas também que sejam fiéis e permaneçam sem- pre juntos. Estes e outros sinais mostram que, na própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao definitivo. A união, que se cristaliza na promessa matrimonial para sempre, é mais do que uma formalidade social ou uma tradição, porque radica-se nas inclinações espontâneas da pessoa humana. E, para os crentes, é uma aliança diante de Deus, que exige fidelidade: « O Senhor constituiu-Se testemunha entre ti e a esposa da tua juventude, aquela que tu atraiçoaste, embora ela fosse a tua companheira e aquela com quem fizeste aliança. (...) Ninguém atraiçoe a mulher da sua juventude, porque Eu odeio o divórcio » (Ml 2, 14.15-16).

 

  1. Um amor frágil ou enfermiço, incapaz de aceitar o matrimónio como um desafio que exige lutar, renascer, reinventar-se e recomeçar sempre de novo até à morte, não pode sustentar um nível


 

alto de compromisso. Cede à cultura do provisó- rio, que impede um processo constante de cres- cimento. Mas « prometer um amor que dure para sempre é possível, quando se descobre um de- sígnio maior que os próprios projectos, que nos sustenta e permite doar o futuro inteiro à pessoa amada ».123 Para que este amor possa atravessar todas as provações e manter-se fiel contra tudo, requer-se o dom da graça que o fortalece e eleva. Como dizia São Roberto Belarmino, « o facto de um só se unir com uma só num vínculo indisso- lúvel, de modo que não possam separar-se, sejam quais forem as dificuldades, e mesmo quando se perdeu a esperança da prole, isto não pode acon- tecer sem um grande mistério ».124

 

  1. Além disso, o matrimónio é uma amizade que inclui as características próprias da paixão, mas sempre orientada para uma união cada vez mais firme e Com efeito, « não foi insti- tuído só em ordem à procriação », mas para que o amor mútuo « se exprima convenientemente, aumente e chegue à maturidade ».125 Esta amiza- de peculiar entre um homem e uma mulher ad- quire um carácter totalizante, que só se verifica na união conjugal. E precisamente por ser totali-

 

123  FrAncisco,  Carta  enc.  Lumen  fidei  (29  de  Junho  de 2013), 52: AAS 105 (2013), 590.

124 « De sacramento matrimonii», I, 2 in: idem, Disputatio- nes de controversiis christianae fidei, III, 5, 3 (ed. Giuliano, Nápoles 1858, 778).

125  conc. ecum. VAt. ii, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 50.


 

zante, esta união também é exclusiva, fiel e aber- ta à geração. Partilha-se tudo, incluindo a sexua- lidade, sempre no mútuo respeito. Isto mesmo expressou o Concílio Vaticano II ao dizer que,

« unindo o humano e o divino, esse amor leva os esposos ao livre e recíproco dom de si mesmos, que se manifesta com a ternura do afecto e com as obras, e penetra toda a sua vida ».126

 

Alegria e beleza

  1. No matrimónio, convém cuidar a alegria do Quando a busca do prazer é obsessiva, encerra-nos numa coisa só e não permite encon- trar outros tipos de satisfações. Pelo contrário, a alegria expande a capacidade de desfrutar e permite-nos encontrar prazer em realidades va- riadas, mesmo nas fases da vida em que o prazer se apaga. Por isso, dizia São Tomás que se usa a palavra « alegria » para se referir à dilatação da amplitude do coração.127 A alegria matrimonial, que se pode viver mesmo no meio do sofrimen- to, implica aceitar que o matrimónio é uma com- binação necessária de alegrias e fadigas, de ten- sões e repouso, de sofrimentos e libertações, de satisfações e buscas, de aborrecimentos e praze- res, sempre no caminho da amizade que impele os esposos a cuidarem um do outro: « prestam-se recíproca ajuda e serviço ».128

 

126 Ibid., 49.

127 Cf. Summa theologiae, I-II, q. 31, art. 3, ad 3.

128  conc. ecum. VAt. ii, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48.


 

  1. O amor de amizade chama-se « caridade », quando capta e aprecia o « valor sublime » que tem o 129A beleza – o « valor sublime » do outro, que não coincide com os seus atractivos físicos ou psicológicos – permite-nos saborear o carácter sagrado da pessoa, sem a imperiosa ne- cessidade de a possuir. Na sociedade de consu- mo, o sentido estético empobrece-se e, assim, se apaga a alegria. Tudo se destina a ser comprado, possuído ou consumido, incluindo as pessoas. Ao contrário, a ternura é uma manifestação des- te amor que se liberta do desejo da posse egoís- ta. Leva-nos a vibrar à vista duma pessoa, com imenso respeito e um certo receio de lhe causar dano ou tirar a sua liberdade. O amor pelo outro implica este gosto de contemplar e apreciar o que é belo e sagrado do seu ser pessoal, que existe para além das minhas necessidades. Isto permite-

-me procurar o seu bem, mesmo quando sei que não pode ser meu ou quando se tornou fisica- mente desagradável, agressivo ou chato. Por isso,

« do amor pelo qual uma pessoa me é agradável, depende que lhe dê algo de graça ».130

 

  1. A experiência estética do amor exprime-se naquele olhar que contempla o outro como fim em si mesmo, ainda que esteja doente, velho ou privado de atractivos sensíveis. O olhar que apre- cia tem uma enorme importância e, recusá-lo, habitualmente faz Às vezes, quantas coisas

 

129 tomás de Aquino, Summa theologiae, I-II, q. 26, art. 3.

130 Ibid., I-II, q. 110, art. 1.


 

fazem os cônjuges e os filhos para ser considera- dos e tidos em conta! Muitas feridas e crises têm a sua origem no momento em que deixamos de nos contemplar. Isto é o que exprimem algumas queixas e reclamações, que se ouvem nas famílias:

« O meu marido não me olha, para ele parece que sou invisível ». « Por favor, olha para mim, quan- do te falo ». « A minha mulher já não me olha, agora só tem olhos para os filhos ». « Em minha casa, não interesso a ninguém, nem sequer me vêem, é como se não existisse ». O amor abre os olhos e permite ver, mais além de tudo, quanto vale um ser humano.

 

  1. A alegria deste amor contemplativo deve ser Uma vez que somos feitos para amar, sabemos que não há maior alegria do que partilhar um bem: « Dá e recebe, e alegra a tua vida » (Sir 14, 16). As alegrias mais intensas da vida surgem, quando se pode provocar a felicidade dos outros, numa antecipação do Céu. Vem a propósito recor- dar a cena feliz do filme A festa de Babette, quando a generosa cozinheira recebe um abraço agradecido e este elogio: « Como deliciarás os anjos! » É doce e consoladora a alegria de fazer as delícias dos ou- tros, vê-los usufruir delas. Este júbilo, efeito do amor fraterno, não é o da vaidade de quem olha para si mesmo, mas o do amante que se compraz no bem do ser amado, que transborda para o ou- tro e se torna fecundo nele.

 

  1. Por outro lado, a alegria renova-se no so- frimento. Como dizia Santo Agostinho, « quanto


 

mais grave foi o perigo no combate, tanto maior é o gozo no triunfo ».131 Depois de ter sofrido e lutado unidos, os cônjuges podem experimentar que valeu a pena, porque conseguiram algo de bom, aprenderam alguma coisa juntos ou podem apreciar melhor o que têm. Poucas alegrias hu- manas são tão profundas e festivas como quando duas pessoas que se amam conquistaram, con- juntamente, algo que lhes custou um grande es- forço compartilhado.

 

Casar-se por amor

  1. Quero dizer aos jovens que nada disto é prejudicado, quando o amor assume a modalida- de da instituição A união encontra nesta instituição o modo de canalizar a sua es- tabilidade e o seu crescimento real e concreto. É verdade que o amor é muito mais do que um consentimento externo ou uma forma de con- trato matrimonial, mas é igualmente certo que a decisão de dar ao matrimónio uma configuração visível na sociedade com certos compromissos manifesta a sua relevância: mostra a seriedade da identificação com o outro, indica uma superação do individualismo de adolescente e expressa a firme opção de se pertencerem um ao outro. Ca- sar-se é uma maneira de exprimir que realmente se abandonou o ninho materno, para tecer outros laços fortes e assumir uma nova responsabilida-

 

131 Confissões, VIII, 3, 7: PL 32, 752.


 

de perante outra pessoa. Isto vale muito mais do que uma mera associação espontânea para mútua compensação, que seria a privatização do ma- trimónio. Este, como instituição social, é protec- ção e instrumento para o compromisso mútuo, para o amadurecimento do amor, para que a op- ção pelo outro cresça em solidez, concretização e profundidade, e possa, por sua vez, cumprir a sua missão na sociedade. Por isso, o matrimónio su- pera qualquer moda passageira e persiste. A sua essência está radicada na própria natureza da pes- soa humana e do seu carácter social. Implica uma série de obrigações; mas estas brotam do próprio amor, um amor tão decidido e generoso que é capaz de arriscar o futuro.

 

  1. Semelhante opção pelo matrimónio ex- pressa a decisão real e efectiva de transformar dois caminhos num só, aconteça o que acontecer e contra todo e qualquer desafio. Pela serieda- de de que se reveste este compromisso público de amor, não pode ser uma decisão precipitada; mas, pela mesma razão, também não pode ser adiado indefinidamente. Comprometer-se de forma exclusiva e definitiva com outrem sempre encerra uma parcela de risco e de aposta ousa- da. A recusa de assumir um tal compromisso é egoísta, interesseira, mesquinha; não consegue reconhecer os direitos do outro e não chega ja- mais a apresentá-lo à sociedade como digno de ser amado incondicionalmente. Aliás, aqueles que estão verdadeiramente enamorados tendem


 

a manifestar aos outros o seu amor. O amor concretizado num matrimónio contraído diante dos outros, com todas as obrigações decorrentes dessa institucionalização, é manifestação e pro- tecção dum « sim » que se dá sem reservas nem restrições. Este sim significa dizer ao outro que poderá sempre confiar, não será abandonado, se perder atractivo, se tiver dificuldades ou se se apresentarem novas possibilidades de prazer ou de interesses egoístas.

 

Amor que se manifesta e cresce

  1. O amor de amizade unifica todos os as- pectos da vida matrimonial e ajuda os membros da família a avançarem em todas as suas fases. Por isso, os gestos que exprimem este amor de- vem ser constantemente cultivados, sem mesqui- nhez, cheios de palavras Na família,

« é necessário usar três palavras: com licença, obrigado,  desculpa.  Três  palavras-chave ».132

« Quando numa família não somos invasores e pedimos “com licença”, quando na família não somos egoístas e aprendemos a dizer “obriga- do”, e quando na família nos damos conta de que fizemos algo incorrecto e pedimos “desculpa”, nessa família existe paz e alegria ».133 Não seja-

 

132  FrAncisco, Discurso às famílias do mundo inteiro por ocasião da sua peregrinação a Roma no Ano da Fé (26 de Outubro de 2013): AAS 105 (2013), 980.

133 idem, Angelus (29 de Dezembro de 2013): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 02/I/2014), 12.


 

mos mesquinhos no uso destas palavras, sejamos generosos repetindo-as dia-a-dia, porque « pesam certos silêncios, às vezes mesmo em família, en- tre marido e mulher, entre pais e filhos, entre ir- mãos ».134 Pelo contrário, as palavras adequadas, ditas no momento certo, protegem e alimentam o amor dia após dia.

 

  1. Tudo isto se realiza num caminho de con- tínuo crescimento. Esta forma muito particular de amor, que é o matrimónio, é chamada a um amadurecimento constante, pois deve aplicar-se-

-lhe sempre aquilo que São Tomás de Aquino di- zia da caridade: « A caridade, devido à sua nature- za, não tem um termo de aumento, porque é uma participação da caridade infinita que é o Espírito Santo. (...) E, do lado do sujeito, também não é possível prefixar-lhe um termo, porque, ao cres- cer na caridade, eleva-se também a capacidade para um aumento maior ».135 Paulo exortava com veemência: « O Senhor vos faça crescer e supera- bundar de caridade uns para com os outros » (1 Ts 3, 12); e acrescenta: « A respeito do amor (...), exortamo-vos, irmãos, a progredir sempre mais» (1 Ts 4, 9.10). Sempre mais. O amor matrimonial não se estimula falando, antes de mais nada, da indissolubilidade como uma obrigação, nem re- petindo uma doutrina, mas robustecendo-o por

 

134 idem, Discurso às famílias do mundo inteiro por ocasião da sua peregrinação a Roma no Ano da Fé (26 de Outubro de 2013): AAS 105 (2013), 978.

135 Summa theologiae, II-II, q. 24, art. 7.


 

meio dum crescimento constante sob o impulso da graça. O amor que não cresce, começa a cor- rer perigo; e só podemos crescer corresponden- do à graça divina com mais actos de amor, com actos de carinho mais frequentes, mais intensos, mais generosos, mais ternos, mais alegres. O ma- rido e a mulher « tomam consciência da própria unidade e cada vez mais a realizam ».136 O dom do amor divino que se derrama nos esposos é, ao mesmo tempo, um apelo a um constante desen- volvimento deste dom da graça.

 

  1. Não fazem bem certas fantasias sobre um amor idílico e perfeito, privando-o assim de todo o estímulo para crescer. Uma ideia celestial do amor terreno esquece que o melhor ainda não foi alcançado, o vinho sazonado com o tem- Como recordaram os bispos do Chile, « não existem as famílias perfeitas que a publicidade falaciosa e consumista nos propõe. Nelas, não passam os anos, não existe a doença, a tribula- ção nem a morte. (...) A publicidade consumista mostra uma realidade ilusória que não tem nada a ver com a realidade que devem enfrentar no dia-a-dia os pais e as mães de família ».137 É mais saudável aceitar com realismo os limites, os de- safios e as imperfeições, e dar ouvidos ao apelo para crescer juntos, fazer amadurecer o amor e cultivar a solidez da união, suceda o que suceder.

 

136  conc. ecum. VAt. ii, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48.

137  conFerênciA episcopAl  do chile, La vida y la familia: regalos de Dios para cada uno de nosotros (21 de Julho de 2014).


 

O diálogo

  1. O diálogo é uma modalidade privilegiada e indispensável para viver, exprimir e maturar o amor na vida matrimonial e Mas requer uma longa e diligente aprendizagem. Homens e mulheres, adultos e jovens têm maneiras di- versas de comunicar, usam linguagens diferen- tes, regem-se por códigos distintos. O modo de perguntar, a forma de responder, o tom usado, o momento escolhido e muitos outros factores podem condicionar a comunicação. Além disso, é sempre necessário cultivar algumas atitudes que são expressão de amor e tornam possível o diá- logo autêntico.

 

  1. Reservar tempo, tempo de qualidade, que permita escutar, com paciência e atenção, até que o outro tenha manifestado tudo o que precisava de Isto requer a ascese de não come- çar a falar antes do momento apropriado. Em vez de começar a dar opiniões ou conselhos, é preciso assegurar-se de ter escutado tudo o que o outro tem necessidade de dizer. Isto implica fazer silêncio interior, para escutar sem ruídos no coração e na mente: despojar-se das pressas, pôr de lado as próprias necessidades e urgências, dar espaço. Muitas vezes um dos cônjuges não preci- sa duma solução para os seus problemas, mas de ser ouvido. Tem de sentir que se apreendeu a sua mágoa, a sua desilusão, o seu medo, a sua ira, a sua esperança, o seu sonho. Todavia é frequente ouvir estes queixumes: « Não me ouve. E quando


 

parece que o faz, na realidade está a pensar nou- tra coisa ». « Falo-lhe e tenho a sensação de que está à espera que acabe de vez ». « Quando lhe falo, tenta mudar de assunto ou dá-me respostas rápidas para encerrar a conversa ».

 

  1. Desenvolver o hábito de dar real impor- tância ao Trata-se de dar valor à sua pes- soa, reconhecer que tem direito de existir, pen- sar de maneira autónoma e ser feliz. É preciso nunca subestimar aquilo que diz ou reivindica, ainda que seja necessário exprimir o meu ponto de vista. A tudo isto subjaz a convicção de que todos têm algo para dar, pois têm outra experiên- cia da vida, olham doutro ponto de vista, desen- volveram outras preocupações e possuem outras capacidades e intuições. É possível reconhecer a verdade do outro, a importância das suas preocu- pações mais profundas e a motivação de fundo do que diz, inclusive das palavras agressivas. Para isso, é preciso colocar-se no seu lugar e interpre- tar a profundidade do seu coração, individuar o que o apaixona, e tomar essa paixão como ponto de partida para aprofundar o diálogo.

 

  1. Amplitude mental, para não se encerrar obsessivamente numas poucas ideias, e flexi- bilidade para poder modificar ou completar as próprias opiniões. É possível que, do meu pen- samento e do pensamento do outro, possa surgir uma nova síntese que nos enriqueça a A unidade, a que temos de aspirar, não é unifor- midade, mas uma « unidade na diversidade » ou


 

uma « diversidade reconciliada ». Neste estilo enriquecedor de comunhão fraterna, seres dife- rentes encontram-se, respeitam-se e apreciam-se, mas mantendo distintos matizes e acentos que enriquecem o bem comum. Temos de nos liber- tar da obrigação de ser iguais. Também é neces- sária sagacidade para advertir a tempo eventuais

« interferências », a fim de que não destruam um processo de diálogo. Por exemplo, reconhecer os maus sentimentos que poderiam surgir e relati- vizá-los, para não prejudicarem a comunicação. É importante a capacidade de expressar aquilo que se sente, sem ferir; utilizar uma linguagem e um modo de falar que possam ser mais facil- mente aceites ou tolerados pelo outro, embora o conteúdo seja exigente; expor as próprias críti- cas, mas sem descarregar a ira como uma forma de vingança, e evitar uma linguagem moralizante que procure apenas agredir, ironizar, culpabilizar, ferir. Há tantas discussões no casal que não são por questões muito graves; às vezes trata-se de pequenas coisas, pouco relevantes, mas o que al- tera os ânimos é o modo de as dizer ou a atitude que se assume no diálogo.

 

  1. Ter gestos de solicitude pelo outro e de- monstrações de carinho. O amor supera as pio- res barreiras. Quando se pode amar alguém ou quando nos sentimos amados por essa pessoa, conseguimos entender melhor o que ela quer exprimir e fazer-nos É preciso su- perar a fragilidade que nos leva a temer o outro


 

como se fosse um « concorrente ». É muito im- portante fundar a própria segurança em opções profundas, convicções e valores, e não no desejo de ganhar uma discussão ou no facto de nos da- rem razão.

 

  1. Por último, reconheçamos que, para ser profícuo o diálogo, é preciso ter algo para se di- zer; e isto requer uma riqueza interior que se ali- menta com a leitura, a reflexão pessoal, a oração e a abertura à sociedade. Caso contrário, a con- versa torna-se aborrecida e Quan- do cada um dos cônjuges não cultiva o próprio espírito e não há uma variedade de relações com outras pessoas, a vida familiar torna-se endogâ- mica e o diálogo fica empobrecido.

 

Amor ApAixonAdo

  1. O Concílio Vaticano II ensinou que este amor conjugal « compreende o bem de toda a pessoa e, por conseguinte, pode conferir espe- cial dignidade às manifestações do corpo e do espírito, enobrecendo-as como elementos e si- nais peculiares do amor conjugal ».138 Deve haver qualquer motivo para um amor sem prazer nem paixão se revelar insuficiente a simbolizar a união do coração humano com Deus: « Todos os místi- cos afirmaram que o amor sobrenatural e o amor celeste encontram os símbolos que procuram

 

138 Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo

Gaudium et spes, 49.


 

mais no amor matrimonial do que na amizade, no sentimento filial ou na dedicação a uma cau- sa. E o motivo encontra-se precisamente na sua totalidade ».139 Sendo assim, por que não deter- mo-nos a falar dos sentimentos e da sexualidade no matrimónio?

 

O mundo das emoções

  1. Desejos, sentimentos, emoções (os clássi- cos chamavam-lhes « paixões ») ocupam um lugar importante no  matrimónio.  Geram-se quando

« outro » se torna presente e intervém na minha vida. É próprio de todo o ser vivo tender para outra realidade, e esta tendência reveste-se sem- pre de sinais afectivos basilares: prazer ou sofri- mento, alegria ou tristeza, ternura ou receio. São o pressuposto da actividade psicológica mais ele- mentar. O ser humano é um vivente desta terra, e tudo o que faz e busca está carregado de paixões.

 

  1. Verdadeiro homem, Jesus vivia as coisas com grande emotividade. Por isso, sofria com a rejeição de Jerusalém (cf. Mt 23, 37) e, por esta situação, chorou (cf. Lc 19, 41). Compadecia-Se também à vista da multidão atribulada (cf. Mc 6, 34). Vendo os outros a chorar, comovia-Se e tur- bava-Se (cf. Jo 11, 33), e Ele mesmo chorou pela morte dum amigo (cf. Jo 11, 35). Estas manifesta- ções da sua sensibilidade mostram até que ponto estava aberto aos outros o seu coração

 

139  A. sertillAnges, L’amour chrétien (Paris 1920), 174.


 

  1. Experimentar uma emoção não é, em si mesmo, algo moralmente bom nem 140 Co- meçar a sentir desejo ou repulsa não é pecami- noso nem censurável. O que pode ser bom ou mau é o acto que a pessoa realiza movida ou sus- tentada por uma paixão. Pois, se os sentimentos são alimentados, procurados e, por causa deles, cometemos más acções, o mal está na decisão de os alimentar e nos actos maus que se seguem. Na mesma linha, sentir atração por alguém não é, de por si, um bem. Se esta atracção me leva a procurar que essa pessoa se torne minha escrava, o sentimento estará ao serviço do meu egoísmo. Julgar que somos bons só porque « provamos sentimentos», é um tremendo engano. Há pes- soas que se sentem capazes dum grande amor, só porque têm grande necessidade de afecto, mas não conseguem lutar pela felicidade dos outros e vivem confinados nos próprios desejos. Neste caso, os sentimentos desviam dos grandes valo- res e escondem um egocentrismo que torna im- possível cultivar uma vida sadia e feliz em família.

 

  1. Entretanto, se uma paixão acompanha o acto livre, pode manifestar a profundidade dessa opção. O amor matrimonial leva a procurar que toda a vida emotiva se torne um bem para a fa- mília e esteja ao serviço da vida em comum. A maturidade chega a uma família, quando a vida emotiva dos seus membros se transforma numa

 

140  Cf. tomás de Aquino, Summa theologiae, I-II, q. 24, art. 1.


 

sensibilidade que não domina nem obscurece as grandes opções e valores, mas segue a sua liber- dade,141 brota dela, enriquece-a, embeleza-a e tor- na-a mais harmoniosa para bem de todos.

 

Deus ama a alegria dos seus filhos

  1. Isto requer um caminho pedagógico, um processo que inclui renúncias: é uma convicção da Igreja, que muitas vezes foi rejeitada pelo mun- do como se fosse inimiga da felicidade Bento XVI regista esta crítica com muita clareza:

« Com os seus mandamentos e proibições, a Igre- ja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela proibi- ções precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino? »142 Mas ele responde que, embora não tenham faltado exa- geros ou ascetismos extraviados no cristianismo, a doutrina oficial da Igreja, fiel à Sagrada Escri- tura, não rejeitou « o eros enquanto tal, mas decla- rou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros (…) priva-o da sua digni- dade, desumaniza-o ».143

 

  1. É necessária a educação da emotividade e do instinto e, para isso, às vezes torna-se indis-

 

141 Cf. ibid., I-II, q. 59, art. 5.

142 Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 3:

AAS 98 (2006), 219-220.

143 Ibid., 4: o. c., 220.


 

pensável impormo-nos algum limite. O excesso, o descontrole, a obsessão por um único tipo de prazeres acabam por debilitar e combalir o pró- prio prazer,144 e prejudicam a vida da família. Na verdade, pode-se fazer um belo caminho com as paixões, o que significa orientá-las cada vez mais num projeto de auto doação e plena realização própria que enriquece as relações interpessoais no seio da família. Isto não implica renunciar a momentos de intenso prazer,145 mas assumi-los de certo modo entrelaçados com outros momen- tos de dedicação generosa, espera paciente, inevi- tável fadiga, esforço por um ideal. A vida em fa- mília é tudo isto e merece ser vivida inteiramente.

 

  1. Algumas correntes espirituais insistem em eliminar o desejo para se libertar da Mas nós acreditamos que Deus ama a alegria do ser hu- mano, pois Ele criou tudo « para nosso usufruto » (1 Tim 6, 17). Deixemos brotar a alegria à vista da sua ternura, quando nos propõe: « Meu filho, se tens com quê, trata-te bem. (...) Não te prives da felicidade presente » (Sir 14, 11.14). Também um casal de esposos corresponde à vontade de Deus, quando segue este convite bíblico: « No dia da felicidade, sê alegre » (Qo 7, 14). A questão é ter a liberdade para aceitar que o prazer encontre outras formas de expressão nos sucessivos mo-

 

144  Cf. tomás de Aquino, Summa theologiae, I-II, q. 32, art. 7.

145 Cf. ibid., II-II, q. 153, art. 2, ad 2: « Abundantia delectatio- nis quae est in actu venereo secundum rationem ordinato, non contrariatur medio virtutis ».


 

mentos da vida, de acordo com as necessidades do amor mútuo. Neste sentido, pode-se aceitar a proposta de alguns mestres orientais que in- sistem em ampliar a consciência, para não ficar presos numa experiência muito limitada que nos fecharia as perspectivas. Esta ampliação da cons- ciência não é a negação ou a destruição do dese- jo, mas a sua dilatação e aperfeiçoamento.

 

A dimensão erótica do amor

  1. Tudo isto nos leva a falar da vida sexual dos esposos. O próprio Deus criou a sexualida- de, que é um presente maravilhoso para as suas criaturas. Quando se cultiva e evita o seu descon- trole, fazemo-lo para impedir que se produza o

« depauperamento de um valor autêntico ».146 São João Paulo II rejeitou a ideia de que a doutrina da Igreja leve a « uma negação do valor do sexo humano » ou que o tolere simplesmente « pela necessidade da procriação ».147 A necessidade se- xual dos esposos não é objecto de menosprezo, e

« não se trata de modo algum de pôr em questão aquela necessidade ».148

 

  1. A quantos receiam que, com a educação das paixões e da sexualidade, se prejudique a es-

 

146 João pAulo ii, Catequese (22 de Outubro de 1980), 5: Insegnamenti 3/2 (1980), 951; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 26/X/1980), 12.

147 Ibid., 3.

148 idem, Catequese (24 de Setembro de 1980), 4: Insegna- menti 3/2 (1980), 719; L’Osservatore Romano (ed. semanal portu- guesa de 28/IX/1980), 12.


 

pontaneidade do amor sexual, São João Paulo II respondia que o ser humano « é também cha- mado à plena e matura espontaneidade das rela- ções », que « é o fruto gradual do discernimento dos impulsos do próprio coração ».149 É algo que se conquista, pois todo o ser humano « deve, per- severante e coerentemente, aprender o que é o significado do corpo ».150 A sexualidade não é um recurso para compensar ou entreter, mas trata-se de uma linguagem interpessoal onde o outro é tomado a sério, com o seu valor sagrado e invio- lável. Assim, « o coração humano torna-se parti- cipante, por assim dizer, de outra espontaneida- de ».151 Neste contexto, o erotismo aparece como uma manifestação especificamente humana da sexualidade. Nele pode-se encontrar o « signifi- cado esponsal do corpo e a autêntica dignidade do dom ».152 Nas suas catequeses sobre a teologia do corpo humano, São João Paulo II ensinou que a corporeidade sexuada « é não só fonte de fe- cundidade e de procriação », mas possui « a capa- cidade de exprimir o amor: exactamente aquele amor em que o homem-pessoa se torna dom ».153 O erotismo mais saudável, embora esteja ligado

 

149 Catequese (12 de Novembro de 1980), 2: Insegnamenti 3/2 (1980), 1133; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 16/XI/1980), 12.

150  Ibid., 4.

151  Ibid., 5.

152  Ibid., 1.

153 Catequese (16 de Janeiro de 1980), 1: Insegnamenti 3/1 (1980), 151; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 20/I/1980), 12.


 

a uma busca de prazer, supõe a admiração e, por isso, pode humanizar os impulsos.

 

  1. Assim, não podemos, de maneira alguma, entender a dimensão erótica do amor como um mal permitido ou como um peso tolerável para o bem da família, mas como dom de Deus que embeleza o encontro dos esposos. Tratando-se de uma paixão sublimada pelo amor que admira a dignidade do outro, torna-se uma « afirmação amorosa plena e cristalina », mostrando-nos de que maravilhas é capaz o coração humano, e as- sim, por um momento, « sente-se que a existência humana foi um sucesso ».154

 

Violência e manipulação

  1. No contexto desta visão positiva da se- xualidade, é oportuno apresentar o tema na sua integridade e com um são Pois não po- demos ignorar que muitas vezes a sexualidade se despersonaliza e enche de patologias, de modo que « se torna cada vez mais ocasião e instrumen- to de afirmação do próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos ».155 Nes- te tempo, também a sexualidade corre grande risco de se ver dominada pelo espírito venenoso do « usa e joga fora ». Com frequência, o corpo do outro é manipulado como uma coisa que se

 

154 JoseF pieper, Über die Liebe (Munique 2014), 174-175.

155 João pAulo ii, Carta enc. Evangelium vitae (25 de Mar- ço de 1995), 23: AAS 87 (1995), 427.


 

conserva enquanto proporciona satisfação e se despreza quando perde atractivo. Podem-se por- ventura ignorar ou dissimular as formas constan- tes de domínio, prepotência, abuso, perversão e violência sexual que resultam duma distorção do significado da sexualidade e sepultam a dignidade dos outros e o apelo ao amor sob uma obscura procura de si mesmo?

 

  1. Nunca é demais lembrar que, mesmo no matrimónio, a sexualidade pode tornar-se fonte de sofrimento e manipulação. Por isso, devemos reafirmar, claramente, que « um acto conjugal im- posto ao próprio cônjuge, sem consideração pe- las suas condições e pelos seus desejos legítimos, não é um verdadeiro acto de amor e nega, por isso mesmo, uma exigência de recta ordem mo- ral, nas relações entre os esposos ».156 Os actos próprios da união sexual dos cônjuges corres- pondem à natureza da sexualidade querida por Deus, se forem vividos « de modo autenticamente humano ».157 Por isso, São Paulo exortava: « Que ninguém, nesta matéria, defraude e se aproveite do seu irmão » (1 Ts 4, 6). E não obstante ele es- crevesse numa época em que dominava uma cul- tura patriarcal, na qual a mulher era considerada um ser completamente subordinado ao homem, todavia ensinou que a sexualidade deve ser uma

 

156 pAulo Vi, Carta enc. Humanae vitae (25 de Julho de 1968), 13: AAS 60 (1968), 489.

157  conc. ecum. VAt. ii, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 49.


 

questão a discutir entre os cônjuges: levantou a possibilidade de adiar as relações sexuais por al- gum tempo, mas « de mútuo acordo » (1 Cor 7, 5).

 

  1. São João Paulo II fez uma advertência muito subtil, quando disse que o homem e a mu- lher são « ameaçados pela insaciabilidade ».158 Por outras palavras, são chamados a uma união cada vez mais intensa, mas correm o risco de pretender apagar as diferenças e a distância inevitável que existe entre os Com efeito, cada um possui uma dignidade própria e irrepetível. Quando o bem precioso da pertença recíproca se transfor- ma em domínio, « muda essencialmente a estru- tura de comunhão na relação interpessoal ».159 Na lógica do domínio, o dominador acaba também negando a sua própria dignidade160 e, em última análise, deixa « de identificar-se subjectivamente com o próprio corpo »,161 porque lhe tira todo o significado. Vive o sexo como evasão de si mes- mo e como renúncia à beleza da união.

 

  1. É importante deixar claro a rejeição de toda a forma de submissão Por isso, con-

 

158 Catequese (18 de Junho de 1980), 5: Insegnamenti 3/1 (1980), 1778; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/VI/1980), 18.

159 Ibid., 6.

160 Cf. idem, Catequese (30 de Julho de 1980), 1: Insegnamen- ti 3/2 (1980), 311; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 03/VIII/1980), 12.

161 idem, Catequese (8 de Abril de 1981), 3: Insegnamenti 4/1 (1981), 904; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 12/IV/1981), 12.


 

vém evitar toda a interpretação inadequada do texto da Carta aos Efésios, onde se pede que « as mulheres [sejam submissas] aos seus maridos» (Ef 5, 22). São Paulo exprime-se em categorias culturais próprias daquela época; nós não deve- mos assumir esta roupagem cultural, mas a men- sagem revelada que subjaz ao conjunto da perí- cope. Retomemos a sábia explicação de São João Paulo II: « O amor exclui todo o género de sub- missão, pelo qual a mulher se tornasse serva ou escrava do marido (...). A comunidade ou unida- de, que devem constituir por causa do matrimó- nio, realiza-se através de uma recíproca doação, que é também submissão mútua».162 Por isso, se diz que « devem também os maridos amar as suas mulheres, como o seu próprio corpo » (Ef 5, 28). Na realidade, o texto bíblico convida a superar o cómodo individualismo para viver disponíveis aos outros: « Submetei-vos uns aos outros » (Ef 5, 21). Entre os cônjuges, esta recíproca « submis- são» adquire um significado especial, devendo-se entender como uma pertença mútua livremente escolhida, com um conjunto de características de fidelidade, respeito e solicitude. A sexualidade está ao serviço desta amizade conjugal de modo inseparável, porque tende a procurar que o outro viva em plenitude.

  1. Entretanto a rejeição das distorções da se- xualidade e do erotismo nunca deveria levar-nos

 

162 Catequese (11 de Agosto de 1982), 4: Insegnamenti 5/3 (1982), 205-206; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 15/VIII/1982), 8.


 

ao seu desprezo nem ao seu descuido. O ideal do matrimónio não pode configurar-se apenas como uma doação generosa e sacrificada, onde cada um renuncia a qualquer necessidade pes- soal e se preocupa apenas por fazer o bem ao outro, sem satisfação alguma. Lembremo-nos de que um amor verdadeiro também sabe receber do outro, é capaz de se aceitar como vulnerável e necessitado, não renuncia a receber, com gra- tidão sincera e feliz, as expressões corporais do amor na carícia, no abraço, no beijo e na união sexual. Bento XVI era claro a este respeito: « Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas anima- lesca, então espírito e corpo perdem a sua digni- dade ».163 Por esta razão, « o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo, des- cendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber. Quem quer dar amor, deve ele mesmo recebê-lo em dom ».164 Em todo o caso, isto supõe ter presente que o equilíbrio humano é frágil, sempre permanece algo que resiste a ser humanizado e que, a qualquer momento, pode fugir-nos de mão novamente, recuperando as suas tendências mais primitivas e egoístas.

 

Matrimónio e virgindade

  1. « Muitas pessoas, que vivem sem se ca- sar, não só se dedicam à sua família de origem,

 

163 Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 5:

AAS 98 (2006), 221.

164 Ibid., 7: o. c., 223-224.


 

mas muitas vezes realizam grandes serviços no seu círculo de amigos, na comunidade eclesial e na vida profissional (...). Muitos colocam os seus talentos também ao serviço da comunidade cris- tã sob a forma de assistência caritativa e volun- tariado. Temos ainda aqueles que não se casam, porque consagram a vida por amor de Cristo e dos irmãos. Com a sua dedicação, é extraordi- nariamente enriquecida a família, na Igreja e na sociedade ».165

 

  1. A virgindade é uma forma de Como sinal, recorda-nos a solicitude pelo Reino, a ur- gência de entregar-se sem reservas ao serviço da evangelização (cf. 1 Cor 7, 32) e é um reflexo da plenitude do Céu, onde « nem os homens terão mulheres, nem as mulheres, maridos» (Mt 22, 30). São Paulo recomendava a virgindade, por- que esperava para breve o regresso de Jesus Cris- to e queria que todos se concentrassem apenas na evangelização: « O tempo é breve » (1 Cor 7, 29). Contudo deixa claro que era uma opinião pessoal e um desejo dele (cf. 1 Cor 7, 6-8), não uma exigência de Cristo: « Não tenho nenhum preceito do Senhor » (1 Cor 7, 25). Ao mesmo tempo reconhecia o valor de ambas as vocações:

« Cada um recebe de Deus o seu próprio dom, um de uma maneira, outro de outra » (1 Cor 7, 7). Neste sentido, diz São João Paulo II que os tex- tos bíblicos « não oferecem motivo para susten- tar nem a “inferioridade” do matrimónio, nem a

 

165 Relatio Finalis 2015, 22.


 

“superioridade” da virgindade ou do celibato»166 devido à abstinência sexual. Em vez de se falar da superioridade da virgindade sob todos os as- pectos, parece mais apropriado mostrar que os diferentes estados de vida são complementares, de tal modo que um pode ser mais perfeito num sentido e outro pode sê-lo a partir dum ponto de vista diferente. Por exemplo, Alexandre de Ha- les afirmava que, em certo sentido, o matrimónio pode-se considerar superior aos restantes sacra- mentos, porque simboliza algo tão grande como

« a união de Cristo com a Igreja ou a união da natureza divina com a humana ».167

 

  1. Portanto « não se trata de diminuir o va- lor do matrimónio em favor da continência»168 e

« não existe fundamento algum para uma suposta contraposição (...). Se, considerando uma certa tradição teológica, se fala do estado de perfeição (status perfectionis), não é por motivo da continên- cia mesma, mas a propósito do conjunto da vida fundada sobre os conselhos evangélicos ».169 En- tretanto uma pessoa casada pode viver a caridade

 

166 Catequese (14 de Abril de 1982), 1: Insegnamenti 5/1 (1982), 1176; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 18/IV/1982), 12.

167 Glossa in quatuor libros sententiarum Petri Lombardi, IV, XXVI, 2 (Quaracchi 1957, 446).

168 João pAulo ii, Catequese (7 de Abril de 1982), 2: In- segnamenti 5/1 (1982), 1127; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 11/IV/1982), 12.

169 idem, Catequese (14 de Abril de 1982), 3: Insegnamenti 5/1 (1982), 1177; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 18/IV/1982), 12.


 

num grau altíssimo. E assim « chega àquela per- feição que nasce da caridade, mediante a fidelida- de ao espírito dos referidos conselhos. Tal perfei- ção é possível e acessível a cada homem ».170

 

  1. A virgindade tem o valor simbólico do amor que não necessita de possuir o outro, reflec- tindo assim a liberdade do Reino dos Céus. É um convite para os esposos viverem o seu amor con- jugal na perspectiva do amor definitivo a Cristo, como um caminho comum rumo à plenitude do Por sua vez, o amor dos esposos apresenta outros valores simbólicos: por um lado, é reflexo peculiar da Trindade, porque a Trindade é unida- de plena na qual existe também a distinção. Além disso, a família é um sinal cristológico, porque mostra a proximidade de Deus que compartilha a vida do ser humano unindo-Se-lhe na encarna- ção, na cruz e na ressurreição: cada cônjuge tor- na-se « uma só carne » com o outro e oferece-se a si mesmo para partilhar tudo com ele até ao fim. Enquanto a virgindade é um sinal « escatológico» de Cristo ressuscitado, o matrimónio é um sinal

« histórico » para nós que caminhamos na terra, um sinal de Cristo terreno que aceitou unir-Se a nós e Se deu até ao derramamento do seu san- gue. A virgindade e o matrimónio são – e devem ser – modalidades diferentes de amar, porque « o homem não pode viver sem amor. Ele perma- nece para si próprio um ser incompreensível  e

 

170 Ibidem.


 

a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor ».171

 

  1. O celibato corre o risco de ser uma có- moda solidão, que dá liberdade para se mover autonomamente, mudar de local, tarefa e opção, dispor do seu próprio dinheiro, conviver com as mais variadas pessoas segundo a atracção do mo- Neste caso, sobressai o testemunho das pessoas casadas. Aqueles que foram chamados à virgindade podem encontrar, nalguns casais de esposos, um sinal claro da fidelidade generosa e indestrutível de Deus à sua Aliança, que pode es- timular os seus corações a uma disponibilidade mais concreta e oblativa. Com efeito, há pessoas casadas que mantêm a sua fidelidade, quando o cônjuge se tornou fisicamente desagradável ou deixou de satisfazer as suas necessidades; e fa- zem-no, não obstante muitas ocasiões os convi- darem à infidelidade ou ao abandono. Uma mu- lher pode cuidar do marido doente e ali, ao pé da Cruz, volta a oferecer o « sim » do seu amor até à morte. Em semelhante amor, manifesta-se de forma esplêndida a dignidade de quem ama, dignidade como reflexo da caridade, já que é mais próprio da caridade amar do que ser amado.172Uma capacidade de serviço oblativo e carinhoso pode ser observada também em muitas famílias

 

171 idem, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), 10: AAS 71 (1979), 274.

172 Cf. tomás de Aquino, Summa theologiae, II-II, q. 27,

art. 1.


 

com filhos difíceis e até ingratos. Isto faz desses pais um sinal do amor livre e desinteressado de Jesus. Tudo isto se torna, para as pessoas celiba- tárias, um convite a viverem a sua dedicação ao Reino com maior generosidade e disponibilidade. Hoje, a secularização ofuscou o valor duma união para toda a vida e debilitou a riqueza da dedica- ção matrimonial, pelo que « é preciso aprofundar os aspectos positivos do amor conjugal ».173

 

A trAnsFormAção do Amor

  1. O alongamento da vida provocou algo que não era comum noutros tempos: a relação íntima e a mútua pertença devem ser mantidas durante quatro, cinco ou seis décadas, e isto gera a necessidade de renovar repetidas vezes a re- cíproca escolha. Talvez o cônjuge já não esteja apaixonado com um desejo sexual intenso que o atraia para outra pessoa, mas sente o prazer de lhe pertencer e que esta pessoa lhe pertença, de saber que não está só, de ter um « cúmplice» que conhece tudo da sua vida e da sua história e tudo partilha. É o companheiro no caminho da vida, com quem se pode enfrentar as dificulda- des e gozar das coisas Também isto gera uma satisfação, que acompanha a decisão própria do amor conjugal. Não é possível prometer que teremos os mesmos sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um projecto comum

 

173  pont. conselho  pArA  A FAmíliA, Família, matrimónio e

« uniões de facto » (26 de Julho de 2000), 40.


 

estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos separe, e viver sem- pre uma rica intimidade. O amor, que nos pro- metemos, supera toda a emoção, sentimento ou estado de ânimo, embora possa incluí-los. É um querer-se bem mais profundo, com uma decisão do coração que envolve toda a existência. Assim, no meio dum conflito não resolvido e ainda que muitos sentimentos confusos girem pelo cora- ção, mantém-se viva dia-a-dia a decisão de amar, de se pertencer, de partilhar a vida inteira e con- tinuar a amar-se e perdoar-se. Cada um dos dois realiza um caminho de crescimento e mudança pessoal. No curso de tal caminho, o amor celebra cada passo, cada etapa nova.

 

  1. Na história dum casal, a aparência física muda, mas isso não é motivo para que a atracção amorosa Um cônjuge enamora-se pela pessoa inteira do outro, com uma identidade pró- pria, e não apenas pelo corpo, embora este cor- po, independentemente do desgaste do tempo, nunca deixe de expressar de alguma forma aquela identidade pessoal que cativou o coração. Quan- do os outros já não podem reconhecer a beleza desta identidade, o cônjuge enamorado continua a ser capaz de a individuar com o instinto do amor, e o carinho não desaparece. Reitera a sua decisão de lhe pertencer, volta a escolhê-lo, e ex- prime esta escolha numa proximidade fiel e cheia de ternura. A nobreza da sua opção pelo outro, por ser intensa e profunda, desperta uma nova


 

forma de emoção no cumprimento desta missão conjugal. Com efeito, « a emoção provocada por outro ser humano como pessoa (...) não tende, de per si, para o acto conjugal ».174 Adquire outras expressões sensíveis, porque o amor « é uma única realidade, embora com distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais ».175 O vínculo encontra novas modalidades e exige a decisão de reatá-lo repetidamente; e não só para o conservar, mas para o fazer crescer. É o caminho de se construir dia após dia. Entretanto nada disto é possível, se não se invoca o Espírito Santo, se não se clama todos os dias pedindo a sua graça, se não se procura a sua força sobre- natural, se não Lhe fazemos presente o desejo de que derrame o seu fogo sobre o nosso amor para o fortalecer, orientar e transformar em cada nova situação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

174 João pAulo ii, Catequese (31 de Outubro de 1984), 6: Insegnamenti 7/2 (1984), 1072; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 04/XI/1984), 12.

175 bento xVi, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezem- bro de 2005), 8: AAS 98 (2006), 224.


 


 

 

 

 

 

CAPÍTULO V

o Amor que se tornA Fecundo

 

 

  1. O amor sempre dá vida. Por isso, o amor conjugal « não se esgota no interior do próprio casal (...). Os cônjuges, enquanto se doam entre si, doam para além de si mesmos a realidade do filho, reflexo vivo do seu amor, sinal permanente da unidade conjugal e síntese viva e indissociável do ser pai e mãe».176

 

Acolher umA noVA VidA

  1. A família é o âmbito não só da geração, mas também do acolhimento da vida que che- ga como um presente de Cada nova vida

« permite-nos descobrir a dimensão mais gratuita do amor, que nunca cessa de nos surpreender. É a beleza de ser amado primeiro: os filhos são amados antes de chegar ».177 Isto mostra-nos o primado do amor de Deus que sempre toma a iniciativa, porque os filhos « são amados antes de ter feito algo para o merecer ».178 Mas, « desde o início, numerosas crianças são rejeitadas, abando-

 

176 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 14: AAS 74 (1982), 96.

177  FrAncisco, Catequese (11 de Fevereiro de 2015): L’Os- servatore Romano (ed. semanal portuguesa de 12/II/2015), 16.

178 Ibidem.


 

nadas e subtraídas à sua infância e ao seu futuro. Alguns ousam dizer, como que para se justificar, que foi um erro tê-las feito vir ao mundo. Isto é vergonhoso! (...) Que aproveitam as solenes de- clarações dos direitos do homem e dos direitos da criança, se depois punimos as crianças pelos erros dos adultos? »179 Se uma criança chega ao mundo em circunstâncias não desejadas, os pais ou os outros membros da família devem fazer todo o possível para aceitá-la como dom de Deus e assumir a responsabilidade de a acolher com magnanimidade e carinho. Com efeito, « quando se trata de crianças que vêm ao mundo, nenhum sacrifício dos adultos será julgado demasiado oneroso ou grande, contanto que se evite que uma criança chegue a pensar que é um erro, que não vale nada e que está abandonada aos infortú- nios da vida e à prepotência dos homens ».180 O dom dum novo filho, que o Senhor confia ao pai e à mãe, tem início com o seu acolhimento, con- tinua com a sua guarda ao longo da vida terrena e tem como destino final a alegria da vida eterna. Um olhar sereno voltado para a realização final da pessoa humana tornará os pais ainda mais conscientes do precioso dom que lhes foi confia- do; de facto, Deus concede-lhes fazer a escolha do nome com que Ele chamará cada um dos seus filhos por toda a eternidade.181

 

179 idem, Catequese (8 de Abril de 2015): L’Osservatore Ro- mano (ed. semanal portuguesa de 09/IV/2015), 16.

180 Ibidem.

181 « Todos tenham bem presente que a vida humana e a


 

  1. As famílias numerosas são uma alegria para a Nelas, o amor manifesta a sua fecundida- de generosa. Isto não implica esquecer uma sã ad- vertência de São João Paulo II, quando explicava que a paternidade responsável não é « procriação ilimitada ou falta de consciência acerca daquilo que é necessário para o crescimento dos filhos, mas é, antes, a faculdade que os cônjuges têm de usar a sua liberdade inviolável de modo sábio e responsável, tendo em consideração tanto as reali- dades sociais e demográficas, como a sua própria situação e os seus legítimos desejos ».182

 

O amor na expectativa própria da gravidez

  1. A gravidez é um período difícil, mas tam- bém um tempo maravilhoso. A mãe colabora com Deus, para que se verifique o milagre duma nova A maternidade surge duma « particular potencialidade do organismo feminino, que, com a sua peculiaridade criadora, serve para a concep- ção e a geração do ser humano ».183 Cada mulher

 

missão de a transmitir não se limitam a este mundo, nem podem ser medidas ou compreendidas unicamente em função dele, mas que estão sempre relacionadas com o eterno destino do homem » (conc. ecum. VAt. ii, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 51).

182 Carta à Secretária-Geral da Conferência Internacional da ONU sobre População e Desenvolvimento (18 de Março de 1994): Insegnamenti 17/1 (1994), 750-751; L’Osservatore Romano (ed. se- manal portuguesa de 02/IV/1994), 4.

183 João pAulo ii, Catequese (12 de Março de 1980), 3: Insegnamenti 3/1 (1980), 543; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 16/III/1980), 12.


 

participa do « mistério da criação, que se reno- va na geração humana ».184 Assim diz o Salmo: Senhor, « formaste-me no seio de minha mãe» (Sl 139/138, 13). Cada criança, que se forma den- tro de sua mãe, é um projecto eterno de Deus Pai e do seu amor eterno: « Antes de te haver forma- do no ventre materno, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei » (Jr 1, 5). Cada criança está no coração de Deus desde sempre e, no momento em que é concebida, realiza-se o sonho eterno do Criador. Pensemos quanto vale o embrião, desde que é concebido! É preciso contemplá-lo com este olhar amoroso do Pai, que vê para além de toda a aparência.

 

  1. A mulher grávida pode participar deste projecto de Deus, sonhando o seu filho: « Toda a mãe e todo o pai sonharam o seu filho durante nove (...) Não é possível uma família sem o sonho. Numa família, quando se perde a capa- cidade de sonhar, os filhos não crescem, o amor não cresce; a vida debilita-se e apaga-se ».185 Nes- te sonho, para um casal cristão, aparece necessa- riamente o baptismo. Os pais preparam-no com a sua oração, confiando o filho a Jesus já antes do seu nascimento.

 

  1. Hoje, com os progressos feitos pela ciên- cia, é possível saber de antemão a cor que terá o

 

184 idem.

185  FrAncisco, Discurso no encontro com as famílias, em Mani- la (16 de Janeiro de 2015): AAS 107 (2015), 176.


 

cabelo da criança e as doenças que poderá ter no futuro, porque todas as características somáticas daquela pessoa estão inscritas no seu código ge- nético já no estado embrionário. Mas, conhecê-

-lo em plenitude, só consegue o Pai do Céu que o criou: o mais precioso, o mais importante só Ele conhece, pois é Ele que sabe quem é aquela criança, qual é a sua identidade mais profunda. A mãe, que o traz no ventre, precisa de pedir luz a Deus para poder conhecer em profundidade o seu próprio filho e saber esperá-lo como ele é. Alguns pais sentem que o seu filho não chega no melhor momento; faz-lhes falta pedir ao Senhor que os cure e fortaleça para aceitarem plena- mente aquele filho, para o esperarem com todo o coração. É importante que aquela criança se sinta esperada. Não é um complemento ou uma solução para uma aspiração pessoal, mas um ser humano, com um valor imenso, e não pode ser usado para benefício próprio. Por conseguinte, não é importante se esta nova vida te será útil ou não, se possui características que te agradam ou não, se corresponde ou não aos teus projectos e sonhos. Porque « os filhos são uma dádiva! Cada um é único e irrepetível (...). Um filho é amado porque é filho: não, porque é bonito ou porque é deste modo ou daquele, mas porque é filho! Não, porque pensa como eu, nem porque encarna as minhas aspirações. Um filho é um filho ».186 O

 

186 idem, Catequese (11 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 12/II/2015), 16.


 

amor dos pais é instrumento do amor de Deus Pai, que espera com ternura o nascimento de cada criança, aceita-a incondicionalmente e aco- lhe-a gratuitamente.

 

  1. A cada mulher grávida, quero pedir-lhe afectuosamente: Cuida da tua alegria, que nada te tire a alegria interior da Aquela criança merece a tua alegria. Não permitas que os medos, as preocupações, os comentários alheios ou os problemas apaguem esta felicidade de ser instrumento de Deus para trazer uma nova vida ao mundo. Ocupa-te daquilo que é preciso fazer ou preparar, mas sem obsessões, e louva como Maria: « A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador. Porque pôs os olhos na humildade da sua serva » (Lc 1, 46-48). Vive, com sereno entusiasmo, no meio dos teus incómodos e pede ao Senhor que guarde a tua alegria para poderes transmiti-la ao teu filho.

 

Amor de mãe e de pai

  1. « Recém-nascidas, as crianças começam a receber em dom, juntamente com o alimento e os cuidados, a confirmação das qualidades espiri- tuais do Os gestos de amor passam através do dom do seu nome pessoal, da partilha da lin- guagem, das intenções dos olhares, das ilumina- ções dos sorrisos. Assim, aprendem que a beleza do vínculo entre os seres humanos mostra a nos- sa alma, procura a nossa liberdade, aceita a diver- sidade do outro, reconhece-o e respeita-o como


 

interlocutor. (...) E isto é amor, que contém uma centelha do amor de Deus».187 Toda a criança tem direito a receber o amor de uma mãe e de um pai, ambos necessários para o seu amadurecimento íntegro e harmonioso. Como disseram os bispos da Austrália, ambos « contribuem, cada um à sua maneira, para o crescimento duma criança. Res- peitar a dignidade duma criança significa afirmar a sua necessidade e o seu direito natural a ter uma mãe e um pai ».188 Não se trata apenas do amor do pai e da mãe separadamente, mas também do amor entre eles, captado como fonte da própria existência, como ninho acolhedor e como fun- damento da família. Caso contrário, o filho pa- rece reduzir-se a uma posse caprichosa. Ambos, homem e mulher, pai e mãe, são « cooperadores do amor de Deus criador e como que os seus intérpretes ».189 Mostram aos seus filhos o rosto materno e o rosto paterno do Senhor. Além dis- so, é juntos que eles ensinam o valor da recipro- cidade, do encontro entre seres diferentes, onde cada um contribui com a sua própria identidade e sabe também receber do outro. Se, por alguma razão inevitável, falta um dos dois, é importante procurar alguma maneira de o compensar, para favorecer o adequado amadurecimento do filho.

 

187 idem, Catequese (14 de Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 15/X/2015), 12.

188 conFerênciA dos bispos cAtólicos dA AustráliA, Carta pastoral Don’t Mess with Marriage (24 de Novembro de 2015), 11.

189  conc. ecum. VAt. ii, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 50.


 

  1. O sentimento de ser órfãos, que hoje experimentam muitas crianças e jovens, é mais profundo do que Hoje reconhecemos como plenamente legítimo, e até desejável, que as mulheres queiram estudar, trabalhar, desenvol- ver as suas capacidades e ter objectivos pessoais. Mas, ao mesmo tempo, não podemos ignorar a necessidade que as crianças têm da presença materna, especialmente nos primeiros meses de vida. A realidade é que « a mulher apresenta-se diante do homem como mãe, sujeito da nova vida humana, que nela é concebida e se desen- volve, e dela nasce para o mundo ».190 O enfra- quecimento da presença materna, com as suas qualidades femininas, é um risco grave para a nossa terra. Aprecio o feminismo, quando não pretende a uniformidade nem a negação da ma- ternidade. Com efeito, a grandeza das mulheres implica todos os direitos decorrentes da sua dig- nidade humana inalienável, mas também do seu génio feminino, indispensável para a sociedade. As suas capacidades especificamente femininas

– em particular a maternidade – conferem-lhe também deveres, já que o seu ser mulher implica também uma missão peculiar nesta terra, que a sociedade deve proteger e preservar para bem de todos.191

 

190 João pAulo ii, Catequese (12 de Março de 1980), 2: Insegnamenti 3/1 (1980), 542; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 16/III/1980), 12.

191 Cf. idem, Carta ap. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988), 30-31: AAS 80 (1988), 1726-1729.


 

  1. De facto, « as mães são o antídoto mais forte contra o propagar-se do individualismo egoísta. (...) São elas que testemunham a beleza da vida ».192 Sem dúvida, « uma sociedade sem mães seria uma sociedade desumana, porque as mães sabem testemunhar sempre, mesmo nos piores momentos, a ternura, a dedicação, a força moral. As mães transmitem, muitas vezes, tam- bém o sentido mais profundo da prática religio- sa: nas primeiras orações, nos primeiros gestos de devoção que uma criança aprende (...). Sem as mães, não somente não haveria novos fiéis, mas a fé perderia boa parte do seu calor simples e (...) Queridas mães, obrigado, obriga- do por aquilo que sois na família e pelo que dais à Igreja e ao mundo ».193

 

  1. A mãe, que ampara o filho com a sua ter- nura e compaixão, ajuda a despertar nele a con- fiança, a experimentar que o mundo é um lugar bom que o acolhe, e isto permite desenvolver uma auto-estima que favorece a capacidade de intimidade e a Por sua vez, a figura do pai ajuda a perceber os limites da realidade, ca- racterizando-se mais pela orientação, pela saída para o mundo mais amplo e rico de desafios, pelo convite a esforçar-se e lutar. Um pai com uma clara e feliz identidade masculina, que por sua vez combine no seu trato com a esposa o

 

192  FrAncisco, Catequese (7 de Janeiro de 2015): L’Osserva- tore Romano (ed. semanal portuguesa de 8/I/2015), 12.

193 Ibidem.


 

carinho e o acolhimento, é tão necessário como os cuidados maternos. Há funções e tarefas flexí- veis, que se adaptam às circunstâncias concretas de cada família, mas a presença clara e bem defi- nida das duas figuras, masculina e feminina, cria o âmbito mais adequado para o amadurecimento da criança.

 

  1. Diz-se que a nossa sociedade é uma « so- ciedade sem pais ». Na cultura ocidental, a figura do pai estaria simbolicamente ausente, distorci- da, Até a virilidade pareceria pos- ta em questão. Verificou-se uma compreensível confusão, já que, « num primeiro momento, isto foi sentido como uma libertação: libertação do pai-patrão, do pai como representante da lei que se impõe de fora, do pai como censor da felici- dade dos filhos e impedimento à emancipação e à autonomia dos jovens. Por vezes, havia casas em que no passado reinava o autoritarismo, em certos casos até a prepotência ».194 Mas, « como acontece muitas vezes, passa-se de um extremo ao outro. O problema nos nossos dias não parece ser tanto a presença invasora do pai, mas sim a sua ausência, o facto de não estar presente. Por vezes o pai está tão concentrado em si mesmo e no próprio trabalho ou então nas próprias reali- zações individuais que até se esquece da família. E deixa as crianças e os jovens sozinhos».195A

 

194 idem, Catequese (28 de Janeiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/I/2015), 16.

195 Ibidem.


 

presença paterna e, consequentemente, a sua au- toridade são afectadas também pelo tempo cada vez maior que se dedica aos meios de comuni- cação e à tecnologia da distracção. Além disso, hoje, a autoridade é olhada com suspeita e os adultos são duramente postos em discussão. Eles próprios abandonam as certezas e, por isso, não dão orientações seguras e bem fundamentadas aos seus filhos. Não é saudável que sejam inver- tidas as funções entre pais e filhos: prejudica o processo adequado de amadurecimento que as crianças precisam de fazer e nega-lhes um amor capaz de as orientar e que as ajude a maturar.196

 

  1. Deus coloca o pai na família, para que, com as características preciosas da sua masculinidade,

« esteja próximo da esposa, para compartilhar tudo, alegrias e dores, dificuldades e esperanças. E esteja próximo dos filhos no seu crescimento: quando brincam e quando se aplicam, quando estão descontraídos e quando se sentem angus- tiados, quando se exprimem e quando permane- cem calados, quando ousam e quando têm medo, quando dão um passo errado e quando voltam a encontrar o caminho; pai presente, sempre. Es- tar presente não significa ser controlador, porque os pais demasiado controladores aniquilam os filhos ».197 Alguns pais sentem-se inúteis ou des- necessários, mas a verdade é que « os filhos têm

 

196 Cf. Relatio Finalis 2015, 28.

197  FrAncisco, Catequese (4 de Fevereiro de 2015): L’Osser- vatore Romano (ed. semanal portuguesa de 5/II/2015), 16.


 

necessidade de encontrar um pai que os espera quando voltam dos seus fracassos. Farão de tudo para não o admitir, para não o revelar, mas preci- sam dele ».198 Não é bom que as crianças fiquem sem pais e, assim, deixem de ser crianças antes do tempo.

 

FecundidAde AlArgAdA

  1. Àqueles que não podem ter filhos, lembra- mos que « o matrimónio não foi instituído só em ordem à procriação (...). E por isso, mesmo que faltem os filhos, tantas vezes ardentemente dese- jados, o matrimónio conserva o seu valor e indis- solubilidade, como comunidade e comunhão de toda a vida ».199 Além disso, « a maternidade não é uma realidade exclusivamente biológica, mas ex- pressa-se de diversas maneiras ».200

 

  1. A adopção é um caminho para realizar a maternidade e a paternidade de uma forma mui- to generosa, e desejo encorajar aqueles que não podem ter filhos a alargar e abrir o seu amor con- jugal para receber quem está privado de um am- biente familiar Nunca se arrependerão de ter sido generosos. Adoptar é o acto de amor que oferece uma família a quem não a tem. É im- portante insistir para que a legislação possa faci-

 

198 Ibidem.

199  conc. ecum. VAt. ii, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 50.

200  V conFerênciA gerAl  do episcopAdo lAtino-Ame- ricAno e do cAribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007), 457.


 

litar o processo de adopção, sobretudo nos casos de filhos não desejados, evitando assim o aborto ou o abandono. Aqueles que assumem o desa- fio de adoptar e acolhem uma pessoa de manei- ra incondicional e gratuita, tornam-se mediação do amor de Deus que diz: « Ainda que a tua mãe chegasse a esquecer-te, Eu nunca te esqueceria» (cf. Is 49, 15).

 

  1. « A opção da adopção e do acolhimento ex- prime uma fecundidade particular da experiência conjugal, mesmo para além dos casos de esposos com problemas de fertilidade (...). Ao contrário das situações em que o filho é desejado a todo o custo, como um direito ao próprio completamen- to, a adopção e o acolhimento, rectamente com- preendidos, mostram um aspecto importante da paternidade e da filiação ajudando a reconhecer que os filhos, quer naturais quer adoptivos ou aco- lhidos, são em si mesmos outro sujeito e é preci- so recebê-los, amá-los, cuidar deles e não apenas trazê-los ao O interesse prevalecente da criança deveria sempre inspirar as decisões sobre a adopção e o acolhimento ».201 Por outro lado, « de- ve-se impedir o tráfico de crianças entre países e continentes, por meio de oportunas medidas legis- lativas e controle estatal ».202

 

  1. Convém lembrar-nos também de que a procriação e a adopção não são as únicas ma-

 

201 Relatio Finalis 2015, 65.

202 Ibidem.


 

neiras de viver a fecundidade do amor. Mesmo a família com muitos filhos é chamada a deixar a sua marca na sociedade onde está inserida, de- senvolvendo outras formas de fecundidade que são uma espécie de extensão do amor que a sus- tenta. As famílias cristãs não esqueçam que « a fé não nos tira do mundo, mas insere-nos mais profundamente nele. (...) A cada um de nós cabe um papel especial na preparação da vinda do Rei- no de Deus ».203 A família não deve imaginar-se como um recinto fechado, procurando prote- ger-se da sociedade. Não fica à espera, mas sai de si mesma à procura de solidariedade. Assim transforma-se num lugar de integração da pessoa com a sociedade e num ponto de união entre o público e o privado. Os cônjuges precisam de ad- quirir consciência clara e convicta dos seus deve- res sociais. Quando isto acontece, não diminui o carinho que os une; antes, enche-se de nova luz, como está expresso nos seguintes versos:

« As tuas mãos são a minha carícia, o meu despertar diário

amo-te porque tuas mãos trabalham pela justiça.

 

Se te amo, é porque és

o meu amor, o meu cúmplice e tudo e na rua, lado a lado,

somos muito mais que dois ».204

 

203  FrAncisco, Discurso no encontro com as famílias, em Mani- la (16 de Janeiro de 2015): AAS 107 (2015), 178.

204 mário benedetti, « Te quiero », in Poemas de otros

(Buenos Aires 1993), 316.


 

  1. Nenhuma família pode ser fecunda, se se concebe como demasiado diferente ou « separa- da ». Para evitar este risco, lembremo-nos que a família de Jesus, cheia de graça e sabedoria, não era vista como uma família « estranha », como um lar alheado e distante da gente. Por isso mesmo as pessoas sentiram dificuldade em reconhecer a sabedoria de Jesus e diziam: « De onde é que isto lhe vem? (…) Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria? » (Mc 6, 2.3). « Não é Ele o filho do carpinteiro? » (Mt 13, 55). Isto confirma que era uma família simples, próxima de todos, integra- da normalmente na povoação. E Jesus também não cresceu numa relação fechada e exclusiva com Maria e José, mas de bom grado movia-se na família alargada, onde encontrava os parentes e os Isto explica por que, quando regres- savam de Jerusalém, os seus pais admitissem a possibilidade de o Menino de doze anos vagar pela caravana um dia inteiro, ouvindo as histórias e partilhando as preocupações de todos: « Pen- sando que Ele Se encontrava na caravana, fize- ram um dia de viagem » (Lc 2, 44). Mas, às vezes, acontece que algumas famílias cristãs, pela lin- guagem que usam, a maneira de dizer as coisas, o estilo do seu tratamento, a repetição constante de dois ou três assuntos, são vistas como distantes, separadas da sociedade, e até os próprios paren- tes se sentem desprezados ou julgados por elas.

 

  1. Um casal de esposos, que experimenta a força do amor, sabe que este amor é chamado


 

a sarar as feridas dos abandonados, estabelecer a cultura do encontro, lutar pela justiça. Deus confiou à família o projecto de tornar « domés- tico » o mundo,205 de modo que todos cheguem a sentir cada ser humano como um irmão: « Um olhar atento à vida quotidiana dos homens e das mulheres de hoje demonstra imediatamente a ne- cessidade que há, em toda a parte, duma vigorosa injecção de espírito familiar. (...) Não só a orga- nização da vida comum encalha cada vez mais numa burocracia totalmente alheia aos vínculos humanos fundamentais, mas até o costume social e político mostra frequentemente sinais de de- gradação ».206 Pelo contrário, as famílias magnâ- nimas e solidárias abrem espaço aos pobres, são capazes de tecer uma amizade com aqueles que estão a viver pior do que elas. Se realmente têm a peito o Evangelho, não podem esquecer o que diz Jesus: « Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes » (Mt 25, 40). Em última análise, vivem o que nos é pedido, de forma tão eloquente, neste texto: « Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos; não vão eles também convidar-te, por sua vez, e assim retribuir-te. Quando deres um banque-

 

205  Cf.  FrAncisco,  Catequese  (16  de  Setembro  de  2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 17/IX/2015), 20.

206 idem, Catequese (7 de Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 08/X/2015), 24.


 

te, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. E serás feliz » (Lc 14, 12-14). Serás feliz! Aqui está o segredo duma família feliz.

 

  1. Com o testemunho e também com a pala- vra, as famílias falam de Jesus aos outros, trans- mitem a fé, despertam o desejo de Deus e mos- tram a beleza do Evangelho e do estilo de vida que nos propõe. Assim os esposos cristãos pin- tam o cinzento do espaço público, colorindo-o de fraternidade, sensibilidade social, defesa das pessoas frágeis, fé luminosa, esperança A sua fecundidade alarga-se, traduzindo-se em mil e uma maneiras de tornar o amor de Deus pre- sente na sociedade.

 

Distinguir o Corpo

  1. Nesta linha, convém tomar muito a sé- rio um texto bíblico que habitualmente é inter- pretado fora do seu contexto ou duma maneira muito geral, pelo que é possível negligenciar o seu sentido mais imediato e directo, que é mar- cadamente Trata-se da primeira Carta aos Coríntios (11, 17-34), onde São Paulo enfrenta uma situação vergonhosa da comunidade. Nela, algumas pessoas facultosas tendiam a discrimi- nar os pobres, e isto verificava-se mesmo na ága- pe que acompanhava a celebração da Eucaristia. Enquanto os ricos se deleitavam com seus man- jares, os pobres olhavam e passavam fome: « En- quanto um passa fome, outro fica embriagado. Porventura não tendes casas para comer e beber?


 

Ou desprezais a Igreja de Deus e quereis enver- gonhar aqueles que nada têm? » (vv. 21-22).

 

  1. A Eucaristia exige a integração no úni- co corpo eclesial. Quem se abeira do Corpo e do Sangue de Cristo não pode ao mesmo tem- po ofender aquele mesmo Corpo, fazendo divi- sões e discriminações escandalosas entre os seus membros. Na realidade, trata-se de « distinguir » o Corpo do Senhor, de O reconhecer com fé e caridade, quer nos sinais sacramentais quer na comunidade; caso contrário, come-se e bebe-se a própria condenação (cf. 29). Este texto bíblico é um sério aviso para as famílias que se fecham na própria comodidade e se isolam e, de modo es- pecial, para as famílias que ficam indiferentes aos sofrimentos das famílias pobres e mais necessita- das. Assim, a celebração eucarística torna-se um apelo constante a cada um para que « se examine a si mesmo » (v. 28), a fim de abrir as portas da própria família a uma maior comunhão com os descartados da sociedade e depois, sim, receber o sacramento do amor eucarístico que faz de nós um só corpo. Não se deve esquecer que « a “mís- tica” do sacramento tem um carácter social».207Quando os comungantes se mostram relutantes em deixar-se impelir a um compromisso a favor dos pobres e atribulados ou consentem diferen- tes formas de divisão, desprezo e injustiça, rece- bem indignamente a Eucaristia. Ao contrário, as

 

207 bento xVi, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezem- bro de 2005), 14: AAS 98 (2006), 228.


 

famílias, que se alimentam da Eucaristia com a disposição adequada, reforçam o seu desejo de fraternidade, o seu sentido social e o seu com- promisso para com os necessitados.

 

A VidA nA FAmíliA em sentido Amplo

  1. O núcleo familiar restrito não deveria iso- lar-se da família alargada, onde estão os pais, os tios, os primos e até os vizinhos. Nesta família ampla, pode haver pessoas necessitadas de ajuda, ou pelo menos de companhia e gestos de cari- nho, ou pode haver grandes sofrimentos que pre- cisam de 208 Às vezes o individualismo destes tempos leva a fechar-se na segurança dum pequeno ninho e a sentir os outros como um incómodo. Todavia este isolamento não propor- ciona mais paz e felicidade, antes fecha o coração da família e priva-a do horizonte amplo da exis- tência.

 

Ser filho

  1. Em primeiro lugar, falemos dos pais pró- Jesus lembrava aos fariseus que o abando- no dos pais é contrário à Lei de Deus (cf. Mc 7, 8-13). Não faz bem a ninguém perder a cons- ciência de ser filho. Em cada pessoa, « mesmo quando se torna adulta ou idosa, quando passa também a ser progenitora ou desempenha fun- ções de responsabilidade, por baixo de tudo isso

 

208 Cf. Relatio Finalis 2015, 11.


 

permanece a identidade de filho. Todos somos filhos. E isto recorda-nos sempre que a vida não no-la demos sozinhos, mas recebemo-la. O gran- de dom da vida é o primeiro presente que rece- bemos ».209

 

  1. Por isso, « o quarto mandamento pede aos filhos (…) que honrem o pai e a mãe (cf. Ex 20, 12). Este mandamento vem logo após aqueles que dizem respeito ao próprio Com efeito, contém algo de sagrado, algo de divino, algo que está na raiz de todos os outros tipos de respei- to entre os homens. E, na formulação bíblica do quarto mandamento, acrescenta-se: “para que se prolonguem os teus dias sobre a terra que o Se- nhor, teu Deus, te dá”. O vínculo virtuoso entre as gerações é garantia de futuro e de uma histó- ria verdadeiramente humana. Uma sociedade de filhos que não honram os pais é uma sociedade sem honra (...). É uma sociedade destinada a en- cher-se de jovens áridos e ávidos ».210

 

  1. Mas há também a outra face da moeda:

« O homem deixará o pai e a mãe » (Gn 2, 24), diz a Palavra de Deus. Às vezes, isto não é cumprido, nunca se chegando a assumir o matrimónio, por- que falta esta renúncia e esta dedicação. Os pais não devem ser abandonados nem transcurados,

 

209  FrAncisco, Catequese (18 de Março de 2015): L’Osserva- tore Romano (ed. semanal portuguesa de 19/III/2015), 20.

210 idem, Catequese (11 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 12/II/2015), 16.


 

mas, para unir-se em matrimónio, é preciso dei- xá-los, de modo que o novo lar seja a morada, a protecção, a plataforma e o projecto, e seja pos- sível tornar-se verdadeiramente « uma só carne » (Gn 2, 24). Sucede, em alguns casais, ocultar ao próprio cônjuge muitas coisas, que entretanto se dizem aos pais, chegando ao ponto de se impor- tar mais com as opiniões destes do que com os sentimentos e as opiniões do cônjuge. Não é fácil manter esta situação por muito tempo, e só pro- visoriamente poderia ter lugar, isto é, enquanto se criam as condições para crescer na confiança e no diálogo. O matrimónio desafia a encontrar uma nova maneira de ser filho.

 

Os idosos

  1. « Não me rejeites no tempo da velhice; não me abandones, quando já não tiver forças » (Sl 71/70, 9). É o brado do idoso, que teme o esquecimento e o desprezo. Assim como Deus nos convida a ser seus instrumentos para escutar a súplica dos pobres, assim também espera que ouçamos o brado dos 211 Isto interpela as famílias e as comunidades, porque « a Igreja não pode nem quer conformar-se com uma menta- lidade de impaciência, e muito menos de indife- rença e desprezo, em relação à velhice. Devemos despertar o sentido colectivo de gratidão, apreço, hospitalidade, que faça o idoso sentir-se parte

 

211 Cf. Relatio Finalis 2015, 17-18.


 

viva da sua comunidade. Os idosos são homens e mulheres, pais e mães que, antes de nós, per- correram o nosso próprio caminho, estiveram na nossa mesma casa, combateram a nossa mesma batalha diária por uma vida digna ».212 Por isso,

« como gostaria duma Igreja que desafia a cultu- ra do descarte com a alegria transbordante dum novo abraço entre jovens e idosos! »213

 

  1. São João Paulo II convidou-nos a prestar atenção ao lugar do idoso na família, porque há culturas que, « especialmente depois dum desen- volvimento industrial e urbanístico desordenado, forçaram, e continuam a forçar, os idosos a situa- ções inaceitáveis de marginalização».214 Os ido- sos ajudam a perceber « a continuidade das gera- ções », com « o carisma de lançar uma ponte »215entre Muitas vezes são os avós que assegu- ram a transmissão dos grandes valores aos seus netos, e « muitas pessoas podem constatar que devem a sua iniciação na vida cristã precisamente aos avós ».216 As suas palavras, as suas carícias ou a simples presença ajudam as crianças a reconhe-

 

212  FrAncisco, Catequese (4 de Março de 2015): L’Osservato- re Romano (ed. semanal portuguesa de 05/III/2015), 16.

213 idem, Catequese (11 de Março de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 12/III/2015), 16.

214 Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 27: AAS 74 (1982), 113.

215 idem, Discurso aos participantes no « Fórum Internacional sobre o Envelhecimento Activo » (5 de Setembro de 1980), 5: Insegna- menti 3/2 (1980), 539; L’Osservatore Romano (ed. semanal portu- guesa de 21/IX/1980), 14.

216 Relatio Finalis 2015, 18.


 

cer que a história não começa com elas, que são herdeiras dum longo caminho e que é necessário respeitar o fundamento que as precede. Quem quebra os laços com a história terá dificuldade em tecer relações estáveis e reconhecer que não é o dono da realidade. Com efeito, « a atenção aos idosos distingue uma civilização. Numa civiliza- ção, presta-se atenção ao idoso? Há lugar para o idoso? Esta civilização irá em frente, se souber respeitar a sabedoria dos idosos ».217

 

  1. A falta de memória histórica é um defeito grave da nossa É a mentalidade ima- tura do « já está ultrapassado ». Conhecer e ser ca- paz de tomar posição perante os acontecimentos passados é a única possibilidade de construir um futuro que tenha sentido. Não se pode educar sem memória: « Recordai os dias passados » (Heb 10, 32). As histórias dos idosos fazem muito bem às crianças e aos jovens, porque os ligam à histó- ria vivida tanto pela família como pela vizinhança e o país. Uma família que não respeita nem cuida dos seus avós, que são a sua memória viva, é uma família desintegrada; mas uma família que recor- da é uma família com futuro. Por isso, « numa civilização em que não há espaço para os idosos ou onde eles são descartados porque criam pro- blemas, tal sociedade traz em si o vírus da mor-

 

217  FrAncisco, Catequese (4 de Março de 2015): L’Osservato- re Romano (ed. semanal portuguesa de 05/III/2015), 16.


 

te »,218 porque « se separa das próprias raízes ».219 O fenómeno contemporâneo de sentir-se órfão, em termos de descontinuidade, desenraizamento e perda das certezas que dão forma à vida, desa- fia-nos a fazer das nossas famílias um lugar onde as crianças possam lançar raízes no terreno duma história colectiva.

 

Ser irmão

  1. A relação entre os irmãos aprofunda-se com o passar do tempo, e « o laço de fraternidade que se forma na família entre os filhos, quando se verifica num clima de educação para a abertu- ra aos outros, é uma grande escola de liberdade e de Em família, entre irmãos, aprendemos a convivência humana (…). Talvez nem sempre estejamos conscientes disto, mas é precisamente a família que introduz a fraternidade no mundo. A partir desta primeira experiência de fraterni- dade, alimentada pelos afectos e pela educação familiar, o estilo da fraternidade irradia-se como uma promessa sobre a sociedade inteira ».220

 

  1. Crescer entre irmãos proporciona a bela experiência de cuidar uns dos outros, de ajudar e ser Por isso, « a fraternidade na família

 

218 Ibidem.

219 idem, Discurso no Encontro com os Idosos (28 de Setem- bro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 02/X/2014), 8.

220 idem, Catequese (18 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 19/II/2015), 20.


 

resplandece de modo especial quando vemos a solicitude, a paciência e o carinho com que é cir- cundado o irmãozinho ou a irmãzinha mais frá- gil, doente ou deficiente ».221 Faz falta reconhecer que « ter um irmão, uma irmã que te ama é uma experiência forte, inestimável, insubstituível »,222 mas é preciso ensinar, com paciência, os filhos a tratar-se como irmãos. Esta aprendizagem, por vezes fadigosa, é uma verdadeira escola de sociabilidade. Nalguns países, existe uma forte tendência para ter apenas um filho, pelo que a experiência de ser irmão começa a ser rara. Nos casos em que não se pôde ter mais de um filho, é preciso encontrar formas de a criança não cres- cer sozinha ou isolada.

 

Um coração grande

  1. Com efeito, além do círculo pequeno for- mado pelos cônjuges e seus filhos, temos a fa- mília alargada, que não pode ser Com efeito, « o amor entre o homem e a mulher no matrimónio e, de forma derivada e ampla, o amor entre os membros da mesma família – entre pais e filhos, entre irmãos e irmãs, entre parentes e familiares – é animado e impelido por um dina- mismo interior e incessante, que leva a família a uma comunhão sempre mais profunda e inten- sa, fundamento e alma da comunidade conjugal

 

221 Ibidem.

222 Ibidem.


 

e familiar ».223 Aí se integram também os amigos e as famílias amigas, e mesmo as comunidades de famílias que se apoiam mutuamente nas suas dificuldades, no seu compromisso social e na fé.

 

  1. Esta família alargada deveria acolher, com tanto amor, as mães solteiras, as crianças sem pais, as mulheres abandonadas que devem continuar a educação dos seus filhos, as pessoas deficientes que requerem muito carinho e proxi- midade, os jovens que lutam contra uma depen- dência, as pessoas solteiras, separadas ou viúvas que sofrem a solidão, os idosos e os doentes que não recebem o apoio dos seus filhos, até incluir no seio dela « mesmo os mais desastrados nos comportamentos da sua vida».224 E pode tam- bém ajudar a compensar as fragilidades dos pais, ou a descobrir e denunciar a tempo possíveis si- tuações de violência ou mesmo de abuso sofridas pelas crianças, dando-lhes um amor sadio e um sustentáculo familiar, quando os seus pais não o podem

 

  1. Por fim, não se pode esquecer que, nesta família alargada, estão também o sogro, a sogra e todos os parentes do cônjuge. Uma delicadeza própria do amor é evitar vê-los como concor- rentes, como pessoas perigosas, como

 

223 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 18: AAS 74 (1982), 101.

224  FrAncisco, Catequese (7 de Outubro de 2015): L’Osser- vatore Romano (ed. semanal portuguesa de 08/X/2015), 24.


 

A união conjugal exige que se respeite as suas tradições e costumes, se procure compreender a sua linguagem, evitar maledicências, cuidar deles e integrá-los dalguma forma no próprio coração, embora se deva preservar a legítima autonomia e a intimidade do casal. Estas atitudes são também uma excelente maneira de exprimir a generosi- dade da dedicação amorosa ao próprio cônjuge.


 


 

 

 

 

 

CAPÍTULO VI

AlgumAs perspectiVAs pAstorAis

 

  1. Os debates do caminho sinodal puseram a descoberto a necessidade de desenvolver no- vos caminhos pastorais, que procurarei agora resumir em geral. As diferentes comunidades é que deverão elaborar propostas mais práticas e eficazes, que tenham em conta tanto a doutrina da Igreja como as necessidades e desafios Sem pretender apresentar aqui uma pastoral da família, limitar-me-ei a coligir alguns dos princi- pais desafios pastorais.

 

AnunciAr hoJe o eVAngelho dA FAmíliA

  1. Os Padres sinodais insistiram no facto de que as famílias cristãs são, pela graça do sacra- mento nupcial, os sujeitos principais da pastoral familiar, sobretudo oferecendo « o testemunho jubiloso dos cônjuges e das famílias, igrejas do- mésticas ».225 Para isso – sublinharam – é preci- so fazer-lhes « experimentar que o Evangelho da família é alegria que “enche o coração e a vida inteira”, porque, em Cristo, somos “libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isola- mento” (Evangelii gaudium, 1). À luz da parábo-

 

225 Relatio Synodi 2014, 30.


 

la do semeador (cf. Mt 13, 3-9), a nossa tarefa consiste em cooperar na sementeira: o resto é obra de Deus. E não se deve esquecer também que a Igreja, que prega sobre a família, é sinal de contradição »,226 mas os esposos agradecem que os pastores lhes ofereçam motivações para uma aposta corajosa num amor forte, sólido, du- radouro, capaz de enfrentar todos os imprevistos que lhes surjam. É com humilde compreensão que a Igreja quer chegar às famílias, com o desejo de « acompanhar todas e cada uma delas a fim de que descubram a saída melhor para superar as dificuldades que encontram no seu caminho».227 Não basta inserir uma genérica preocupação pela família nos grandes projectos pastorais; para que as famílias possam ser sujeitos cada vez mais ac- tivos da pastoral familiar, requer-se « um esforço evangelizador e catequético dirigido à família»,228 que a encaminhe nesta direcção.

 

  1. « Por isso exige-se a toda a Igreja uma con- versão missionária: é preciso não se contentar com um anúncio puramente teórico e desligado dos problemas reais das pessoas ».229 A pastoral familiar « deve fazer experimentar que o Evan- gelho da família é resposta às expectativas mais profundas da pessoa humana: a sua dignidade e plena realização na reciprocidade, na comunhão

 

226 Ibid., 31.

227 Relatio Finalis 2015, 56.

228 Ibid., 89.

229 Relatio Synodi 2014, 32.


 

e na fecundidade. Não se trata apenas de apresen- tar uma normativa, mas de propor valores, cor- respondendo à necessidade deles que se constata hoje, mesmo nos países mais secularizados ».230 De igual modo « sublinhou-se a necessidade duma evangelização que denuncie, com desas- sombro, os condicionalismos culturais, sociais, políticos e económicos, bem como o espaço ex- cessivo dado à lógica do mercado, que impedem uma vida familiar autêntica, gerando discrimina- ção, pobreza, exclusão e violência. Para isso, te- mos de entrar em diálogo e cooperação com as estruturas sociais, bem como encorajar e apoiar os leigos que se comprometem, como cristãos, no âmbito cultural e sociopolítico ».231

 

  1. « A principal contribuição para a pastoral familiar é oferecida pela paróquia, que é uma fa- mília de famílias, onde se harmonizam os contri- butos das pequenas comunidades, movimentos e associações eclesiais ».232 A par duma pastoral es- pecificamente voltada para as famílias, há necessi- dade duma « formação mais adequada dos presbí- teros, diáconos, religiosos e religiosas, catequistas e restantes agentes pastorais ».233 Nas respostas às consultações promovidas em todo o mundo, res- saltou-se que os ministros ordenados carecem, habitualmente, de formação adequada para tratar

 

230  Ibid., 33.

231  Ibid., 38.

232 Relatio Finalis 2015, 77.

233 Ibid., 61.


 

dos complexos problemas atuais das famílias; para isso, pode ser útil também a experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados.

 

  1. Os seminaristas deveriam ter acesso a uma formação interdisciplinar mais ampla sobre namoro e matrimónio, não se limitando à dou- trina. Além disso, a formação nem sempre lhes permite desenvolver o seu mundo Alguns carregam, na sua vida, a experiência da sua própria família ferida, com a ausência de pais e instabilidade emocional. É preciso garantir um amadurecimento, durante a formação, para que os futuros ministros possuam o equilíbrio psíqui- co que a sua missão lhes exige. Os laços familia- res são fundamentais para fortificar a auto-esti- ma sadia dos seminaristas. Por isso, é importante que as famílias acompanhem todo o processo do Seminário e do sacerdócio, pois ajudam a revigo- rá-lo de forma realista. Neste sentido, é salutar a combinação de tempos de vida no Seminário com outros de vida em paróquias, que permitam tomar maior contacto com a realidade concre- ta das famílias. De facto, ao longo da sua vida pastoral, o sacerdote encontra-se sobretudo com famílias. « A presença dos leigos e das famílias, particularmente a presença feminina, na forma- ção sacerdotal, favorece o apreço pela variedade e complementaridade das diferentes vocações na Igreja ».234

 

234 Ibidem.


 

  1. As respostas às consultações exprimem, com insistência, também a necessidade de formar agentes leigos de pastoral familiar, com a ajuda de psicopedagogos, médicos de família, médicos de comunidade, assistentes sociais, advogados de menores e família, predispondo-os para re- ceber as contribuições da psicologia, sociologia, sexologia e até Os profissionais, particularmente aqueles que têm experiência de acompanhamento, ajudam a encarnar as propos- tas pastorais nas situações reais e nas preocu- pações concretas das famílias. « Os itinerários e cursos de formação destinados especificamente aos agentes pastorais poderão torná-los idóneos a inserir o próprio caminho de preparação para o matrimónio na dinâmica mais ampla da vida eclesial ».235 Uma boa preparação pastoral é im- portante, « sobretudo tendo em vista as particu- lares situações de emergência decorrentes dos casos de violência doméstica e abuso sexual».236Tudo isto em nada diminui, antes integra, o valor fundamental da direcção espiritual, dos recursos espirituais inestimáveis da Igreja e da Reconcilia- ção sacramental.

 

guiAr os noiVos no cAminho de prepArAção pArA o mAtrimónio

  1. Os Padres sinodais afirmaram, de várias maneiras, que é preciso ajudar os jovens a des-

 

235 Ibidem.

236 Ibidem.


 

cobrir o valor e a riqueza do matrimónio.237 De- vem poder captar o fascínio duma união plena que eleva e aperfeiçoa a dimensão social da vida, confere à sexualidade o seu sentido maior, ao mesmo tempo que promove o bem dos filhos e lhes proporciona o melhor contexto para o seu amadurecimento e educação.

 

  1. « A complexa realidade social e os de- safios, que a família é chamada a enfrentar ac- tualmente, exigem um empenhamento maior de toda a comunidade cristã na preparação dos noivos para o matrimónio. É necessário lembrar a importância das virtudes. Dentre elas, resulta ser condição preciosa para o crescimento genuí- no do amor interpessoal a castidade. A respeito desta necessidade, os Padres sinodais foram con- cordes em sublinhar a exigência dum maior en- volvimento de toda a comunidade, privilegiando o testemunho das próprias famílias, e a exigência ainda duma radicação da preparação para o ma- trimónio no caminho da iniciação cristã, subli- nhando o nexo do matrimónio com o baptismo e os outros Da mesma forma, evi- denciou-se a necessidade de programas especí- ficos de preparação próxima para o matrimónio que sejam verdadeira experiência de participação na vida eclesial e aprofundem os vários aspectos da vida familiar ».238

 

237 Cf. Relatio Synodi 2014, 26.

238 Ibid., 39.


 

  1. Convido as comunidades cristãs a reco- nhecerem que é um bem para elas mesmas acom- panhar o caminho de amor dos Como justamente disseram os bispos da Itália, aqueles que se casam são, para as comunidades cristãs,

« um recurso precioso, porque, esforçando-se sinceramente por crescer no amor e no dom recí- proco, podem contribuir para renovar o próprio tecido de todo o corpo eclesial: a forma particular de amizade que vivem pode tornar-se contagio- sa, fazendo crescer na amizade e na fraternidade a comunidade cristã de que fazem parte ».239 Há várias maneiras legítimas de organizar a prepara- ção próxima para o matrimónio e cada Igreja lo- cal discernirá a que for melhor, procurando uma formação adequada que, ao mesmo tempo, não afaste os jovens do sacramento. Não se trata de lhes ministrar o Catecismo inteiro nem de os sa- turar com demasiados temas, sendo válido tam- bém aqui que « não é o muito saber que enche e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear interior- mente as coisas ».240 Interessa mais a qualidade do que a quantidade, devendo-se dar prioridade

  • juntamente com um renovado anúncio do que- rigma – àqueles conteúdos que, comunicados de forma atraente e cordial, os ajudem a compro- meter-se num percurso da vida toda « com ânimo

 

239  conFerênciA episcopAl itAliAnA. comissão episcopAl pArA  A  FAmíliA  e  A  VidA, Orientamenti pastorali sulla preparazione al matrimonio e alla famiglia (22 de Outubro de 2012), 1.

240  inácio de loyolA, Exercícios espirituais, anotação 2.


 

grande e liberalidade ».241 Trata-se duma espécie de « iniciação » ao sacramento do matrimónio, que lhes forneça os elementos necessários para poderem recebê-lo com as melhores disposições e iniciar com uma certa solidez a vida familiar.

 

  1. Além disso, convém encontrar os modos
  • através das famílias missionárias, das próprias famílias dos noivos e de vários recursos pastorais
  • para oferecer uma preparação remota que faça amadurecer o amor deles com um acompanha- mento rico de proximidade e testemunho. Ha- bitualmente, são muito úteis os grupos de noi- vos e a oferta de palestras opcionais sobre uma variedade de temas que realmente interessam aos Entretanto são indispensáveis alguns momentos personalizados, dado que o objectivo principal é ajudar cada um a aprender a amar esta pessoa concreta com quem pretende partilhar a vida inteira. Aprender a amar alguém não é algo que se improvisa, nem pode ser o objectivo dum breve curso antes da celebração do matrimónio. Na realidade, cada pessoa prepara-se para o ma- trimónio, desde o seu nascimento. Tudo o que a família lhe deu, deveria permitir-lhe aprender da própria história e torná-la capaz dum compro- misso pleno e definitivo. Provavelmente os que chegam melhor preparados ao casamento são aqueles que aprenderam dos seus próprios pais o que é um matrimónio cristão, onde se escolhe-

 

241 Ibid., anotação 5.


 

ram um ao outro sem condições e continuam a renovar esta decisão. Neste sentido todas as acti- vidades pastorais, que tendem a ajudar os cônju- ges a crescer no amor e a viver o Evangelho na família, são uma ajuda inestimável a fim de que os seus filhos se preparem para a sua futura vida matrimonial. Também não devemos esquecer os valiosos recursos da pastoral popular. Só para dar um exemplo simples, lembro o Dia de São Valen- tim, que, em alguns países, é melhor aproveitado pelos comerciantes do que pela criatividade dos pastores.

 

  1. A preparação dos que já formalizaram o noivado, quando a comunidade paroquial con- segue acompanhá-los com bom período de an- tecipação, deve dar-lhes também a possibilidade de individuar incompatibilidades e Assim é possível chegarem a dar-se conta de que não é razoável apostar naquela relação, para não se expor a um previsível fracasso que terá conse- quências muito dolorosas. O problema é que o deslumbramento inicial leva a procurar esconder ou relativizar muitas coisas, evitam-se as diver- gências, limitando-se assim a adiar as dificuldades para depois. Os noivos deveriam ser incentivados e ajudados a poderem expressar o que cada um espera dum eventual matrimónio, a sua manei- ra de entender o que é o amor e o compromis- so, aquilo que se deseja do outro, o tipo de vida em comum que se quer projectar. Estes diálogos podem ajudar a ver que, na realidade, os pontos


 

de contacto são escassos e que a mera atracção mútua não será suficiente para sustentar a união. Não há nada de mais volúvel, precário e imprevi- sível que o desejo, e nunca se deve encorajar uma decisão de contrair matrimónio se não se apro- fundaram outras motivações que confiram a este pacto reais possibilidades de estabilidade.

 

  1. No caso de se reconhecer com clareza os pontos fracos do outro, é preciso que exista uma efectiva confiança na possibilidade de ajudá-lo a desenvolver o melhor da sua personalidade para contrabalançar o peso das suas fragilidades, com um decidido interesse em promovê-lo como ser Isto implica aceitar com vontade firme a possibilidade de enfrentar algumas renúncias, momentos difíceis e situações de conflito, e a sólida decisão de preparar-se para isso. Deve ser possível detectar os sinais de perigo que poderá apresentar a relação, para se encontrar, antes do matrimónio, os meios que permitam enfrentá-los com bom êxito. Infelizmente, muitos chegam às núpcias sem se conhecer. Limitaram-se a diver- tir-se juntos, a fazer experiências juntos, mas não enfrentaram o desafio de se manifestar a si mes- mos e apreender quem é realmente o outro.

 

  1. Tanto a preparação próxima como o acompanhamento mais prolongado devem pro- curar que os noivos não considerem o matrimó- nio como o fim do caminho, mas o assumam como uma vocação que os lança para diante, com a decisão firme e realista de atravessarem juntos


 

todas as provações e momentos difíceis. Tanto a pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que aju- dem quer a amadurecer o amor quer a superar os momentos duros. Estas contribuições não são apenas convicções doutrinais, nem se podem reduzir aos preciosos recursos espirituais que a Igreja sempre oferece, mas devem ser também percursos práticos, conselhos bem encarnados, estratégias tomadas da experiência, orientações psicológicas. Tudo isto cria uma pedagogia do amor, que não pode ignorar a sensibilidade ac- tual dos jovens, para conseguir mobilizá-los in- teriormente. Ao mesmo tempo, na preparação dos noivos, deve ser possível indicar-lhes lugares e pessoas, consultórios ou famílias prontas a aju- dar, aonde poderão dirigir-se em busca de ajuda se surgirem dificuldades. Mas nunca se deve es- quecer de lhes propor a Reconciliação sacramen- tal, que permite colocar os pecados e os erros da vida passada e da própria relação sob o influxo do perdão misericordioso de Deus e da sua força sanadora.

 

A preparação da celebração

  1. A preparação próxima do matrimónio tende a concentrar-se nos convites, na roupa, na festa com os seus inumeráveis detalhes que consomem tanto os recursos económicos como as energias e a Os noivos chegam desfa- lecidos e exaustos ao casamento, em vez de de-


 

dicarem o melhor das suas forças a preparar-se como casal para o grande passo que, juntos, vão dar. Esta mesma mentalidade subjaz também à decisão dalgumas uniões de facto que nunca mais chegam ao matrimónio, porque pensam nas ele- vadas despesas da festa, em vez de darem priori- dade ao amor mútuo e à sua formalização diante dos outros. Queridos noivos, tende a coragem de ser diferentes, não vos deixeis devorar pela socie- dade do consumo e da aparência. O que importa é o amor que vos une, fortalecido e santificado pela graça. Vós sois capazes de optar por uma festa austera e simples, para colocar o amor aci- ma de tudo. Os agentes pastorais e toda a comu- nidade podem ajudar para que esta prioridade se torne a norma e não a excepção.

 

  1. Na preparação mais imediata, é importan- te esclarecer os noivos para viverem com grande profundidade a celebração litúrgica, ajudando-os a compreender e viver o significado de cada ges- Lembremo-nos de que um compromisso tão grande como este expresso no consentimento matrimonial e a união dos corpos que consuma o matrimónio, quando se trata de dois baptiza- dos, só podem ser interpretados como sinais do amor do Filho de Deus feito carne e unido com a sua Igreja em aliança de amor. Nos baptizados, as palavras e os gestos transformam-se numa linguagem que manifesta a fé. O corpo, com os significados que Deus lhe quis infundir ao criá-lo,

« transforma-se na linguagem dos ministros do


 

sacramento, conscientes de que, no pacto conju- gal, se manifesta e realiza o mistério ».242

 

  1. Às vezes, os noivos não percebem o peso teológico e espiritual do consentimento, que ilu- mina o significado de todos os gestos É necessário salientar que aquelas palavras não podem ser reduzidas ao presente; implicam uma totalidade que inclui o futuro: « até que a morte vos separe ». O sentido do consentimento mostra que « liberdade e fidelidade não se opõem uma à outra, aliás apoiam-se reciprocamente quer nas relações interpessoais quer nas sociais. De facto, pensemos nos danos que produzem, na civiliza- ção da comunicação global, o aumento de pro- messas não mantidas (...). A honra à palavra dada, a fidelidade à promessa não se podem comprar nem vender. Não podem ser impostas com a for- ça, nem guardadas sem sacrifício ».243

 

  1. Os bispos do Quénia fizeram notar que

« os futuros esposos, muito concentrados com o dia da boda, esquecem-se de que estão a pre- parar-se para um compromisso que dura a vida inteira ».244 Temos de ajudá-los a darem-se conta de que o sacramento não é apenas um momento

 

242 João pAulo ii, Catequese (27 de Junho de 1984), 4: In- segnamenti 7/1 (1984), 1941; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 01/VII/1984), 12.

243  FrAncisco, Catequese (21 de Outubro de 2015): L’Osser- vatore Romano (ed. semanal portuguesa de 22/X/2015), 16.

244  conFerênciA episcopAl do quéniA, Mensagem de Qua- resma (18 de Fevereiro de 2015).


 

que depois passa a fazer parte do passado e das recordações, mas exerce a sua influência sobre toda a vida matrimonial, de maneira permanen- te.245 O significado procriador da sexualidade, a linguagem do corpo e os gestos de amor vividos na história dum casal de esposos transformam-se numa « continuidade ininterrupta da linguagem litúrgica » e « a vida conjugal torna-se de algum modo liturgia ».246

 

  1. Também se pode meditar com as leituras bíblicas e enriquecer a compreensão do significa- do das alianças que trocam entre si, ou doutros sinais que fazem parte do Mas não seria bom chegarem ao matrimónio sem ter rezado juntos, um pelo outro, pedindo ajuda a Deus para serem fiéis e generosos, perguntando juntos a Deus que espera deles, e inclusive consagrando o seu amor diante duma imagem de Maria. Quem os acom- panha na preparação do matrimónio deveria orientá-los para que saibam viver estes momen- tos de oração, que lhes podem fazer muito bem.

« A liturgia nupcial é um evento único, que se vive no contexto familiar e social duma festa. Jesus começou os seus milagres no banquete das bo- das de Caná: o vinho bom do milagre do Senhor, que alegra o nascimento duma nova família, é o

 

245 Cf. pio xi, Carta enc. Casti connubii (31 de Dezembro de 1930): AAS 22 (1930), 583.

246 João pAulo ii, Catequese (4 de Julho de 1984), 3.6: In- segnamenti 7/2 (1984), 9.10; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 08/VII/1984), 12.


 

vinho novo da Aliança de Cristo com os homens e mulheres de cada tempo. (...) Frequentemente, o celebrante tem a oportunidade de se dirigir a uma assembleia formada por pessoas que partici- pam pouco na vida eclesial ou pertencem a outra confissão cristã ou comunidade religiosa. Trata-

-se, pois, duma preciosa ocasião para anunciar o Evangelho de Cristo ».247

 

AcompAnhAmento nos primeiros Anos dA VidA mAtrimoniAl

  1. Temos de reconhecer como um grande valor que se compreenda que o matrimónio é uma questão de amor: só se podem casar aque- les que se escolhem livremente e se Ape- sar disso, se o amor se reduzir a mera atracção ou a uma vaga afectividade, isto faz com que os cônjuges sofram duma extraordinária fragilidade quando a afectividade entra em crise ou a atrac- ção física diminui. Uma vez que estas confusões são frequentes, torna-se indispensável o acom- panhamento dos esposos nos primeiros anos de vida matrimonial, para enriquecer e aprofundar a decisão consciente e livre de se pertencerem e amarem até ao fim. Muitas vezes o tempo de noivado não é suficiente, a decisão de casar-se apressa-se por várias razões e, como se não bas- tasse, atrasou a maturação dos jovens. Assim os recém-casados têm de completar aquele percurso que deveria ter sido feito durante o noivado.

 

247 Relatio Finalis 2015, 59.


 

  1. Por outro lado, quero insistir que um de- safio da pastoral familiar é ajudar a descobrir que o matrimónio não se pode entender como algo A união é real, é irrevogável e foi con- firmada e consagrada pelo sacramento do ma- trimónio; mas, ao unir-se, os esposos tornam-se protagonistas, senhores da sua própria história e criadores dum projecto que deve ser levado para a frente conjuntamente. O olhar volta-se para o futuro, que é preciso construir dia-a-dia com a graça de Deus e, por isso mesmo, não se preten- de do cônjuge que seja perfeito. É preciso pôr de lado as ilusões e aceitá-lo como é: inacaba- do, chamado a crescer, em caminho. Quando o olhar sobre o cônjuge é constantemente crítico, isto indica que o matrimónio não foi assumido também como um projecto a construir juntos, com paciência, compreensão, tolerância e gene- rosidade. Isto faz com que o amor seja substi- tuído pouco a pouco por um olhar inquisidor e implacável, pelo controle dos méritos e direitos de cada um, pelas reclamações, a competição e a autodefesa. Deste modo tornam-se incapazes de se apoiarem um ao outro para o amadureci- mento de ambos e para o crescimento da união. Aos novos cônjuges, é necessário apresentar isto com clareza realista desde o início, de modo que tomem consciência de que estão apenas a come- çar. O « sim » que deram um ao outro é o início dum itinerário, cujo objectivo se propõe superar as circunstâncias que surgirem e os obstáculos que se interpuserem. A bênção recebida é uma


 

graça e um impulso para este caminho sempre aberto. Habitualmente ajuda sentar-se a dialogar para elaborar o seu projecto concreto com os seus objectivos, meios, detalhes.

 

  1. Lembro-me dum refrão que dizia que a água estagnada corrompe-se, estraga-se. O mes- mo acontece com a vida do amor nos primei- ros anos do matrimónio quando fica estagnada, cessa de mover-se, perde aquela inquietude sadia que a faz avançar. A dança conduzida com aquele amor jovem, a dança com aqueles olhos ilumina- dos pela esperança, não deve No noivado e nos primeiros anos de matrimónio, é a esperança que tem em si a força do fermento, que faz olhar para além das contradições, conflitos, contingên- cias, que sempre faz ver mais além; é ela que põe em movimento a ânsia de se manter num cami- nho de crescimento. A mesma esperança convi- da-nos a viver em cheio o presente, colocando o coração na vida familiar, porque a melhor forma de preparar e consolidar o futuro é viver bem o presente.

 

  1. O caminho implica passar por diferentes etapas, que convidam a doar-se com generosi- dade: do impacto inicial caracterizado por uma atracção decididamente sensível, passa-se à ne- cessidade do outro sentido como parte da vida própria. Daqui passa-se ao gosto da pertença mútua, seguido pela compreensão da vida inteira como um projecto de ambos, pela capacidade de colocar a felicidade do outro acima das neces-


 

sidades próprias, e pela alegria de ver o próprio matrimónio como um bem para a sociedade.  O amadurecimento do amor implica também aprender a « negociar ». Não se trata duma atitu- de interesseira nem dum jogo de tipo comercial, mas, em última análise, dum exercício do amor recíproco, já que esta negociação é um entrelaça- do de recíprocas ofertas e renúncias para o bem da família. Em cada nova etapa da vida matrimo- nial, é preciso sentar-se e negociar novamente os acordos, de modo que não haja vencedores nem vencidos, mas ganhem ambos. No lar, as decisões não se tomam unilateralmente, e ambos compar- tilham a responsabilidade pela família; mas cada lar é único e cada síntese conjugal é diferente.

 

  1. Uma das causas que leva a rupturas matri- moniais é ter expectativas demasiado altas sobre a vida Quando se descobre a realidade mais limitada e problemática do que se sonhara, a solução não é pensar imediata e irresponsavel- mente na separação, mas assumir o matrimónio como um caminho de amadurecimento, onde cada um dos cônjuges é um instrumento de Deus para fazer crescer o outro. É possível a mudança, o crescimento, o desenvolvimento das potencia- lidades boas que cada um traz dentro de si. Cada matrimónio é uma « história de salvação », o que supõe partir duma fragilidade que, graças ao dom de Deus e a uma resposta criativa e generosa, pouco a pouco vai dando lugar a uma realidade cada vez mais sólida e preciosa. Talvez a maior


 

missão dum homem e duma mulher no amor seja esta: a de se tornarem, um ao outro, mais homem e mais mulher. Fazer crescer é ajudar o outro a moldar-se na sua própria identidade. Por isso o amor é artesanal. Quando se lê a passagem da Bíblia sobre a criação do homem e da mulher, primeiro vê-se Deus que plasma o homem (cf. Gn 2, 7), depois dá-Se conta de que falta alguma coisa essencial e plasma a mulher, e então vê a surpresa do homem: « Ah! Agora sim! Esta sim! » E, em seguida, quase nos parece ouvir aquele es- tupendo diálogo no qual o homem e a mulher fazem a mútua descoberta. Com efeito, mesmo nos momentos difíceis, o outro volta a surpreen- der e abrem-se novas portas para se reencontrar, como se fosse a primeira vez; e, em cada nova etapa, tornam a « plasmar-se » um ao outro. O amor faz com que um espere pelo outro, exer- citando aquela paciência própria de artesão, que herdou de Deus.

 

  1. O acompanhamento deve encorajar os esposos a serem generosos na comunicação da vida. « De acordo com o carácter pessoal e hu- manamente completo do amor conjugal, o justo caminho para o planeamento familiar pressupõe um diálogo consensual entre os esposos, o res- peito dos tempos e a consideração da dignidade de ambos os membros do Neste sentido, é preciso redescobrir a Encíclica Humanae vitae (cf. nn. 10-14) e a Exortação apostólica Familiaris con- sortio (cf. nn. 14; 28-35) para se reavivar a disponi-


 

bilidade a procriar, contrastando uma mentalida- de frequentemente hostil à vida. (...) A opção da paternidade responsável pressupõe a formação da consciência que é “o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (Gaudium et spes, 16). Quanto mais procurarem os esposos ouvir, na sua consciência, a Deus e os seus mandamentos (cf. Rm 2, 15)  e se fizerem acompanhar espiritualmente, tanto mais a sua decisão será intimamente livre de um arbítrio subjectivo e da acomodação às modas de comportamento no seu ambiente ».248 Continua a ser válido o que ficou dito, com clareza, no Con- cílio Vaticano II: os cônjuges, « de comum acor- do e com esforço comum, formarão rectamente a própria consciência, tendo em conta o seu bem próprio e o dos filhos já nascidos ou que pre- vêem virão a nascer, sabendo ver as condições de tempo e da própria situação e tendo, finalmente, em consideração o bem da comunidade familiar, da sociedade temporal e da própria Igreja. São os próprios esposos que, em última instância, de- vem diante de Deus tomar esta decisão ».249 Por outro lado, « deve-se promover o uso dos méto- dos baseados nos “ritmos naturais da fecundida- de” (Humanae vitae, 11). Ponha-se em evidência também que “estes métodos respeitam o corpo dos esposos, estimulam a ternura entre eles e fa-

 

248 Ibid., 63.

249 Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo

Gaudium et spes, 50.


 

vorecem a educação duma liberdade autêntica” (Catecismo da Igreja Católica, 2370), insistindo sem- pre que os filhos são um dom maravilhoso de Deus, uma alegria para os pais e para a Igreja. Através deles, o Senhor renova o mundo ».250

 

Alguns recursos

  1. Os Padres sinodais afirmaram que « os primeiros anos de matrimónio são um período vital e delicado, durante o qual os cônjuges cres- cem na consciência dos desafios e do significado do matrimónio. Daí a necessidade dum acompa- nhamento pastoral que continue depois da cele- bração do sacramento (cf. Familiaris consortio, par- te III). Nesta pastoral, tem grande importância a presença de casais de esposos com experiência. A paróquia é considerada como o lugar onde casais especializados podem colocar à disposição dos casais mais jovens a sua ajuda, com o eventual apoio de associações, movimentos eclesiais e no- vas Deve-se encorajar os esposos para uma atitude fundamental de acolhimento do grande dom dos filhos. É preciso sublinhar a importância da espiritualidade familiar, da oração e da participação na Eucaristia dominical, e ani- mar os cônjuges a reunirem-se regularmente para promoverem o crescimento da vida espiritual e a solidariedade nas exigências concretas da vida. Liturgias, práticas devocionais e Eucaristias cele-

 

250 Relatio Finalis 2015, 63.


 

bradas para as famílias, sobretudo no aniversário de matrimónio, foram citadas como vitais para favorecer a evangelização através da família ».251

 

  1. Este caminho é uma questão de O amor precisa de tempo disponível e gratuito, co- locando outras coisas em segundo lugar. Faz falta tempo para dialogar, abraçar-se sem pressa, par- tilhar projectos, escutar-se, olhar-se nos olhos, apreciar-se, fortalecer a relação. Umas vezes, o problema é o ritmo frenético da sociedade, ou os horários impostos pelos compromissos laborais. Outras vezes, o problema é que o tempo trans- corrido em conjunto não tem qualidade; limitam-

-se a partilhar um espaço físico, mas sem pres- tar atenção um ao outro. Os agentes pastorais e os grupos de famílias deveriam ajudar os casais jovens ou frágeis a aprenderem a encontrar-se nestes momentos, a parar um diante do outro, e inclusive a partilhar momentos de silêncio que os obriguem a sentir a presença do cônjuge.

 

  1. Os esposos que têm uma boa experiência de « treino » nesta linha, podem oferecer os ins- trumentos práticos que lhes foram úteis: a pro- gramação dos momentos para estar juntos sem nada exigir, os tempos de recreação com os filhos, as várias maneiras de celebrar coisas importantes, os espaços de espiritualidade Mas po- dem também ensinar recursos que ajudam a en-

 

251 Relatio Synodi 2014, 40.


 

cher de conteúdo e sentido tais momentos, para se aprender a comunicar melhor. Isto é da má- xima importância quando se apagou a novidade do noivado. Com efeito, quando não se sabe que fazer com o tempo partilhado, um ou outro dos cônjuges acabará por se refugiar na tecnologia, inventará outros compromissos, buscará outros braços, ou escapará duma intimidade incómoda.

 

  1. Aos casais jovens, deve-se animar tam- bém a criar os seus próprios hábitos, que pro- porcionem uma salutar sensação de estabilidade e protecção e que se constroem com uma série de rituais diários compartilhados. É bom dar-se sempre um beijo pela manhã, benzer-se todas as noites, esperar pelo outro e recebê-lo à chegada, ter alguma saída juntos, compartilhar as tarefas domésticas. Ao mesmo tempo, porém, é bom vencer a rotina com a festa, não perder a capaci- dade de celebrar em família, alegrar-se e festejar as experiências Precisam de compartilhar a surpresa pelos dons de Deus e alimentar, juntos, o entusiasmo pela vida. Quando se sabe celebrar, esta capacidade renova a energia do amor, liber- ta-o da monotonia e enche de cor e esperança os hábitos diários.

 

  1. Nós, pastores, devemos animar as famílias a crescerem na fé. Para isso, é bom incentivar a confissão frequente, a direcção espiritual, a parti- cipação em Mas há que convidar também a criar espaços semanais de oração familiar, por- que « a família que reza unida permanece unida ».


 

Entretanto, quando visitamos os lares, devemos convidar todos os membros da família para um momento de oração, a fim de rezar uns pelos outros e entregar a família nas mãos do Senhor. Ao mesmo tempo, convém incentivar cada um dos cônjuges a reservar momentos de oração a sós diante de Deus, porque cada qual tem as suas cruzes secretas. Por que não contar a Deus o que turba o coração ou pedir-Lhe a força para curar as próprias feridas e pedir as luzes necessárias para poder cumprir o próprio compromisso? Os Padres sinodais salientaram também que « a Pala- vra de Deus é fonte de vida e espiritualidade para a família. Toda a pastoral familiar deverá deixar-

-se moldar interiormente e formar os membros da igreja doméstica, através da leitura orante e eclesial da Sagrada Escritura. A Palavra de Deus é não só uma boa nova para a vida privada das pessoas, mas também um critério de juízo e uma luz para o discernimento dos vários desafios que têm de enfrentar os cônjuges e as famílias».252

 

  1. Pode acontecer que um dos cônjuges não seja baptizado ou não queira viver os compro- missos da fé. Neste caso, o desejo que o outro tem de viver e crescer como cristão faz com que a indiferença do cônjuge seja vivida com amar- gura. Apesar disso, é possível encontrar alguns valores comuns que se podem partilhar e cultivar com Seja como for, amar o cônjuge

 

252 Ibid., 34.


 

não crente, fazê-lo feliz, aliviar os seus sofrimen- tos e partilhar a vida com ele é um verdadeiro caminho de santificação. Por outro lado, o amor é um dom de Deus e, onde se derrama, faz sentir a sua força transformadora, por vezes de maneira misteriosa, a ponto que « o marido não crente é santificado pela mulher, e a mulher não crente é santificada pelo marido» (1 Cor 7, 14).

 

  1. As paróquias, os movimentos, as escolas e outras instituições da Igreja podem desenvolver várias mediações para apoiar e reavivar as famí- lias. Por exemplo, através de recursos como reu- niões de casais vizinhos ou amigos, breves retiros para casais, conferências de especialistas sobre problemáticas muito concretas da vida familiar, centros de aconselhamento conjugal, agentes missionários preparados para falar com os casais acerca das suas dificuldades e aspirações, consul- tas sobre diferentes situações familiares (depen- dências, infidelidade, violência familiar), espaços de espiritualidade, escolas de formação para pais com filhos problemáticos, assembleias A secretaria paroquial deveria ter possibilidades de receber com cordialidade e ocupar-se das ur- gências familiares, ou encaminhá-las facilmente para quem possa dar ajuda. Há também um apoio pastoral que se verifica nos grupos de casais, se- jam eles de serviço ou de missão, de oração, de formação ou de mútua ajuda. Estes grupos pro- porcionam a ocasião de dar, de viver a abertura da família aos outros, de partilhar a fé, mas ao


 

mesmo tempo são um meio para fortalecer os cônjuges e fazê-los crescer.

 

  1. É verdade que muitos casais de esposos desaparecem da comunidade cristã depois do matrimónio, mas com frequência desperdiçamos algumas ocasiões em que eles voltam a estar pre- sentes e nas quais poderíamos tornar a propor-

-lhes, de forma atraente, o ideal do matrimónio cristão e aproximá-los a espaços de acompanha- mento. Refiro-me, por exemplo, ao baptismo dum filho, à Primeira Comunhão, ou quando participam num funeral ou no casamento dum parente ou amigo. Quase todos os casais voltam a aparecer nestas ocasiões, que se poderiam apro- veitar melhor. Outro caminho de abordagem é a bênção das casas ou a visita duma imagem da Virgem, que dão oportunidade para desenvolver um diálogo pastoral sobre a situação da família. Pode ser útil também confiar a casais mais ma- duros a tarefa de acompanhar casais mais recen- tes da sua própria vizinhança, a fim de os visitar, acompanhar nos seus inícios e propor-lhes um percurso de crescimento. Com o ritmo da vida actual, a maioria dos casais não estará disposta a reuniões frequentes, mas não podemos redu- zir-nos a uma pastoral de pequenas elites. Hoje, a pastoral familiar deve ser fundamentalmente missionária, em saída, por aproximação, em vez de se reduzir a ser uma fábrica de cursos a que poucos assistem.


 

iluminAr crises, AngústiAs e diFiculdAdes

  1. Deixo aqui uma palavra àqueles que, no amor, já envelheceram o vinho novo do Quando o vinho envelhece com esta experiência do caminho, então aparece, floresce em toda a sua plenitude a fidelidade dos momentos insig- nificantes da vida. É a fidelidade da espera e da paciência. Esta fidelidade, cheia de sacrifícios e alegrias, de certo modo vai florescendo na idade em que tudo fica « sazonado» e os olhos brilham com a contemplação dos filhos de seus filhos. Foi assim desde o início, mas agora tornou-se consciente, assente, amadurecido na  surpre- sa quotidiana da redescoberta dia após dia, ano após ano. Como ensinava São João da Cruz, « os velhos amantes são os já treinados e testados». Eles « já não têm aqueles fervores sensíveis nem aquelas ebulições e chamas externas de ardor, mas saboreiam a suavidade do vinho de amor bem sedimentado na sua substância (...) assente dentro da alma ».253 Isto supõe que foram capazes de superar, juntos, as crises e os momentos de angústia, sem fugir aos desafios nem esconder as dificuldades.

 

O desafio das crises

  1. A história duma família está marcada por crises de todo o género, que são parte também da sua dramática beleza. É preciso ajudar a desco-

 

253 Cântico espiritual B, XXV, 11.


 

brir que uma crise superada não leva a uma rela- ção menos intensa, mas a melhorar, sedimentar e maturar o vinho da união. Não se vive juntos para ser cada vez menos feliz, mas para aprender a ser feliz de maneira nova, a partir das possibilidades que abre uma nova etapa. Cada crise implica uma aprendizagem, que permite incrementar a inten- sidade da vida comum ou, pelo menos, encontrar um novo sentido para a experiência matrimonial. É preciso não se resignar de modo algum a uma curva descendente, a uma inevitável deterioração, a uma mediocridade que se tem de suportar. Pelo contrário, quando se assume o matrimónio como uma tarefa que implica também superar obstácu- los, cada crise é sentida como uma ocasião para chegar a beber, juntos, o vinho melhor. É bom acompanhar os cônjuges, para que sejam capazes de aceitar as crises que lhes sobrevêm, aceitar o desafio e atribuir-lhes um lugar na vida familiar. Os casais experientes e formados devem estar dispostos a acompanhar outros nesta descoberta, para que as crises não os assustem nem os levem a tomar decisões precipitadas. Cada crise escon- de uma boa notícia, que é preciso saber escutar, afinando os ouvidos do coração.

 

  1. Perante o desafio duma crise, a reacção imediata é resistir, pôr-se à defesa por sentir que escapa ao próprio controle, por mostrar a insuficiência da própria maneira de viver, e isto incomoda. Então usa-se o método de negar os problemas, escondê-los, relativizar a sua impor-


 

tância, apostar apenas em que o tempo passe. Mas isto adia a solução e leva a gastar muitas energias num ocultamento inútil que complicará ainda mais as coisas. Os vínculos vão-se deterio- rando e consolida-se um isolamento que danifica a intimidade. Numa crise não assumida, o que mais se prejudica é a comunicação. Assim, pouco a pouco, aquela que era « a pessoa que amo » pas- sa a ser « quem me acompanha sempre na vida », a seguir apenas « o pai ou a mãe dos meus filhos », e por fim um estranho.

 

  1. Para se enfrentar uma crise, é necessário estar É difícil, porque às vezes as pes- soas isolam-se para não mostrar o que sentem, trancam-se num silêncio mesquinho e engana- dor. Nestes momentos, é necessário criar espa- ços para comunicar de coração a coração. O pro- blema é que se torna ainda mais difícil comunicar num momento de crise, se nunca se aprendeu a fazê-lo. É uma verdadeira arte que se aprende em tempos calmos, para se pôr em prática nos tem- pos borrascosos. É preciso ajudar a descobrir as causas mais recônditas nos corações dos espo- sos e enfrentá-las como um parto que passará e deixará um novo tesouro. Mas, nas respostas às consultações realizadas, assinalava-se que, em si- tuações difíceis ou críticas, a maioria não recorre ao acompanhamento pastoral, porque não o sen- te compreensivo, próximo, realista, encarnado. Por isso, procuremos agora debruçar-nos sobre as crises conjugais com um olhar que não ignore a sua carga de sofrimento e angústia.


 

  1. Há crises comuns que costumam verifi- car-se em todos os matrimónios, como a crise ao início quando é preciso aprender a conciliar as diferenças e a desligar-se dos pais; ou a crise da chegada do filho, com os seus novos desafios emotivos; a crise de educar uma criança, que al- tera os hábitos do casal; a crise da adolescência do filho, que exige muitas energias, desestabiliza os pais e às vezes contrapõem-nos entre si; a cri- se do « ninho vazio », que obriga o casal a fixar de novo o olhar um no outro; a crise causada pela velhice dos pais dos cônjuges, que requer mais presença, solicitude e decisões difíceis. São situações exigentes, que provocam temores, sen- timentos de culpa, depressões ou cansaços que podem afectar gravemente a união.

 

  1. A estas crises, vêm juntar-se as crises pes- soais com incidência no casal, relacionadas com dificuldades económicas, laborais, afectivas, so- ciais, espirituais. E acrescentam-se circunstâncias inesperadas, que podem alterar a vida familiar e exigir um caminho de perdão e reconciliação. No próprio momento em que procura dar o passo do perdão, cada um deve questionar-se, com se- rena humildade, se não criou as condições para expor o outro a cometer certos erros. Algumas famílias sucumbem, quando os cônjuges se cul- pam mutuamente, mas « a experiência mostra que, com uma ajuda adequada e com a acção de reconciliação da graça, uma grande percentagem de crises matrimoniais é superada de forma satis-


 

fatória. Saber perdoar e sentir-se perdoado é uma experiência fundamental na vida familiar».254 « A fadigosa arte da reconciliação, que requer o apoio da graça, precisa da generosa colaboração de pa- rentes e amigos, e, eventualmente, até duma aju- da externa e profissional ».255

 

  1. Tornou-se frequente que, quando um cônjuge sente que não recebe o que deseja, ou não se realiza o que sonhava, isso lhe pareça ser suficiente para pôr termo ao matrimónio. Mas, assim, não haverá matrimónio que dure. Às ve- zes, para decidir que tudo acabou, basta uma desilusão, a ausência num momento em que se precisava do outro, um orgulho ferido ou um te- mor Há situações próprias da inevitá- vel fragilidade humana, a que se atribui um peso emotivo demasiado grande. Por exemplo, a sen- sação de não ser completamente correspondido, os ciúmes, as diferenças que podem surgir entre os dois, a atracção suscitada por outras pessoas, os novos interesses que tendem a apoderar-se do coração, as mudanças físicas do cônjuge e tantas outras coisas que, mais do que atentados contra o amor, são oportunidades que convidam a recriá-

-lo uma vez mais.

 

  1. Nestas circunstâncias, alguns têm a matu- ridade necessária para voltar a escolher o outro como companheiro de estrada, para além dos

 

254  Relatio Synodi 2014, 44.

255  Relatio Finalis 2015, 81


 

limites da relação, e aceitam com realismo que não se possam satisfazer todos os sonhos acalen- tados. Evitam considerar-se os únicos mártires, apreciam as pequenas ou limitadas possibilida- des que lhes oferece a vida em família e apostam em fortalecer o vínculo numa construção que exigirá tempo e esforço. No fundo, reconhecem que cada crise é como um novo « sim » que torna possível o amor renascer reforçado, transfigura- do, amadurecido, iluminado. A partir duma crise, tem-se a coragem de buscar as raízes profundas do que está a suceder, de voltar a negociar os acordos fundamentais, de encontrar um novo equilíbrio e de percorrer juntos uma nova etapa. Com esta atitude de constante abertura, podem-

-se enfrentar muitas situações difíceis. Em todo o caso, reconhecendo que a reconciliação é pos- sível, hoje descobrimos que « se revela particular- mente urgente um ministério dedicado àqueles cuja relação matrimonial se rompeu ».256

 

Velhas feridas

  1. É compreensível que, nas famílias, haja muitas dificuldades, quando um dos seus mem- bros não amadureceu a sua maneira de relacio- nar-se, porque não curou feridas dalguma etapa da sua vida. A própria infância e a própria ado- lescência mal vividas são terreno fértil para crises pessoais que acabam por afectar o matrimónio.

 

256 Ibid., 78.


 

Se todos fossem pessoas que amadureceram nor- malmente, as crises seriam menos frequentes e menos dolorosas. A verdade, porém, é que às ve- zes as pessoas precisam de realizar aos quarenta anos um amadurecimento atrasado que deveria ter sido alcançado no fim da adolescência. Às vezes ama-se com um amor egocêntrico próprio da criança, fixado numa etapa onde a realidade é distorcida e se vive o capricho de que tudo deva girar à volta do próprio eu. É um amor insaciá- vel, que grita e chora quando não obtém aquilo que deseja. Outras vezes ama-se com um amor fixado na fase da adolescência, caracterizado pelo confronto, a crítica ácida, o hábito de culpar os outros, a lógica do sentimento e da fantasia, onde os outros devem preencher os nossos vazios ou apoiar os nossos caprichos.

 

  1. Muitos terminam a sua infância sem nun- ca se terem sentido amados incondicionalmente, e isto compromete a sua capacidade de confiar e entregar-se. Uma relação mal vivida com os seus pais e irmãos, que nunca foi curada, reapa- rece e danifica a vida conjugal. Então é preciso fazer um percurso de libertação, que nunca se enfrentou. Quando a relação entre os cônjuges não funciona bem, antes de tomar decisões im- portantes, convém assegurar-se de que cada um tenha feito este caminho de cura da própria his- tória. Isto exige que se reconheça a necessidade de ser curado, que se peça com insistência a graça de perdoar e perdoar-se, que se aceite ajuda, se


 

procurem motivações positivas e se tente sempre de novo. Cada um deve ser muito sincero consi- go mesmo, para reconhecer que o seu modo de viver o amor tem estas imaturidades. Por mais evidente que possa parecer que toda a culpa seja do outro, nunca é possível superar uma crise es- perando que apenas o outro mude. É preciso também questionar-se a si mesmo sobre as coisas que poderia pessoalmente amadurecer ou curar para favorecer a superação do conflito.

 

Acompanhar depois das rupturas e dos divórcios

  1. Nalguns casos, a consideração da própria dignidade e do bem dos filhos exige pôr um li- mite firme às pretensões excessivas do outro, a uma grande injustiça, à violência ou a uma falta de respeito que se tornou crónica. É preciso re- conhecer que « há casos em que a separação é inevitável. Por vezes, pode tornar-se até moral- mente necessária, quando se trata de defender o cônjuge mais frágil, ou os filhos pequenos, das feridas mais graves causadas pela prepotência e a violência, pela humilhação e a exploração, pela alienação e a indiferença ».257 Mas « deve ser con- siderado um remédio extremo, depois que se te- nham demonstrado vãs todas as tentativas razoá- veis ».258

 

257  FrAncisco, Catequese (24 de Junho de 2015): L’Osserva- tore Romano (ed. semanal portuguesa de 25/VI/2015), 20.

258 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 83: AAS 74 (1982), 184.


 

  1. Os Padres disseram que « é indispensável um discernimento particular para acompanhar pastoralmente os separados, os divorciados, os abandonados. Tem-se de acolher e valorizar so- bretudo a angústia daqueles que sofreram injus- tamente a separação, o divórcio ou o abandono, ou então foram obrigados, pelos maus-tratos do cônjuge, a romper a convivência. Não é fácil o perdão pela injustiça sofrida, mas constitui um caminho que a graça torna possível. Daí a ne- cessidade duma pastoral da reconciliação e da mediação, inclusive através de centros de escuta especializados que se devem estabelecer nas dio- ceses ».259 Ao mesmo tempo, « as pessoas divor- ciadas que não voltaram a casar (que são muitas vezes testemunhas da fidelidade matrimonial) devem ser encorajadas a encontrar na Eucaristia o alimento que as sustente no seu estado. A co- munidade local e os pastores devem acompanhar estas pessoas com solicitude, sobretudo quando há filhos ou é grave a sua situação de pobreza ».260Um falimento matrimonial torna-se muito mais traumático e doloroso quando há pobreza, por- que se têm muito menos recursos para reorde- nar a existência. Uma pessoa pobre, que perde o ambiente protector da família, fica duplamente exposta ao abandono e a todo o tipo de riscos para a sua
  2. Quanto às pessoas divorciadas que vivem numa nova união, é importante fazer-lhes sentir

 

259 Relatio Synodi 2014, 47.

260 Ibid., 50.


 

que fazem parte da Igreja, que « não estão exco- mungadas » nem são tratadas como tais, porque sempre integram a comunhão eclesial.261 Estas si- tuações « exigem um atento discernimento e um acompanhamento com grande respeito, evitando qualquer linguagem e atitude que as faça sentir discriminadas e promovendo a sua participação na vida da comunidade. Cuidar delas não é, para a comunidade cristã, um enfraquecimento da sua fé e do seu testemunho sobre a indissolubilidade do matrimónio; antes, ela exprime precisamente neste cuidado a sua caridade».262

 

  1. Além disso, um grande número de Padres

« sublinhou a necessidade de tornar mais acessí- veis, ágeis e possivelmente gratuitos de todo os procedimentos para o reconhecimento dos casos de nulidade ».263 A lentidão dos processos irrita e cansa as pessoas. Os meus dois documentos recentes sobre tal matéria264 levaram a uma sim- plificação dos procedimentos para uma eventual declaração de nulidade matrimonial. Através de- les, quis também « evidenciar que o próprio bispo na sua Igreja, da qual está constituído pastor e

 

261  Cf. FrAncisco, Catequese (5 de Agosto de 2015): L’Os- servatore Romano (ed. semanal portuguesa de 06-13/VIII/2015), 16.

262 Relatio Synodi 2014, 51; cf. Relatio Finalis 2015, 84.

263 Relatio Synodi 2014, 48.

264 Cf. Motu proprio Mitis Iudex Dominus Iesus (15 de Agosto de 2015): L’Osservatore Romano (ed. diária italiana de 09/IX/2015), 3-4; Motu proprio Mitis et Misericors Iesus (15 de Agosto de 2015): L’Osservatore Romano (ed. diária italiana de 09/ IX/2015), 5-6.


 

chefe, é por isso mesmo juiz no meio dos fiéis a ele confiados».265 Por isso, « a aplicação destes documentos é uma grande responsabilidade para os Ordinários diocesanos, chamados eles pró- prios a julgar algumas causas e a garantir, de to- dos os modos possíveis, um acesso mais fácil dos fiéis à justiça. Isto implica a preparação de pes- soal suficiente, composto por clérigos e leigos, que se dedique de modo prioritário a este serviço eclesial. Por conseguinte, será necessário colocar à disposição das pessoas separadas ou dos casais em crise um serviço de informação, aconselha- mento e mediação, ligado à pastoral familiar, que possa também acolher as pessoas tendo em vista a investigação preliminar do processo matrimo- nial (cf. Mitis Iudex, arts. 2-3) ».266

 

  1. Os Padres sinodais puseram em evidên- cia também « as consequências da separação ou do divórcio sobre os filhos, em todo o caso ví- timas inocentes da situação ».267 Acima de todas as considerações que se queiram fazer, eles são a primeira preocupação, que não deve ser ofuscada por nenhum outro interesse ou Peço aos pais separados: « Nunca, nunca e nunca to- meis o filho como refém! Separastes-vos devido a muitas dificuldades e motivos, a vida deu-vos

 

265 Motu proprio Mitis Iudex Dominus Iesus (15 de Agosto de 2015), preâmbulo, III: L’Osservatore Romano (ed. diária italiana de 09/IX/2015), 3.

266  Relatio Finalis 2015, 82.

267  Relatio Synodi 2014, 47.


 

esta provação, mas os filhos não devem carre- gar o fardo desta separação; que eles não sejam usados como reféns contra o outro cônjuge, mas cresçam ouvindo a mãe falar bem do pai, em- bora já não estejam juntos, e o pai falar bem da mãe ».268 É irresponsável arruinar a imagem do pai ou da mãe com o objectivo de monopolizar o afecto do filho, para se vingar ou defender, por- que isso afectará a vida interior daquela criança e provocará feridas difíceis de curar.

 

  1. A Igreja, embora compreenda as situações conflituosas que devem atravessar os cônjuges, não pode cessar de ser a voz dos mais frágeis: os filhos, que sofrem muitas vezes em silêncio. Hoje, « não obstante a nossa sensibilidade apa- rentemente evoluída e todas as nossas análises psicológicas refinadas, pergunto-me se não nos entorpecemos também relativamente às feridas da alma das crianças. (...) Sentimos nós o peso da montanha que esmaga a alma duma criança, nas famílias onde se maltrata e magoa, até que- brar o vínculo da fidelidade conjugal? »269 Tais experiências molestas não ajudam estas crianças a amadurecer para serem capazes de compromis- sos Por isso, as comunidades cristãs não devem deixar sozinhos os pais divorciados que vivem numa nova união. Pelo contrário, de-

 

268  FrAncisco, Catequese (20 de Maio de 2015): L’Osservato- re Romano (ed. semanal portuguesa de 21/V/2015), 20.

269 idem, Catequese (24 de Junho de 2015): L’Osservatore Ro- mano (ed. semanal portuguesa de 25/VI/2015), 20.


 

vem integrá-los e acompanhá-los na sua função educativa. Aliás, « como poderíamos recomendar a estes pais que façam todo o possível por educar os seus filhos na vida cristã, dando-lhes o exem- plo duma fé convicta e praticada, se os mantivés- semos à distância da vida da comunidade, como se estivessem excomungados? Devemos pro- ceder de modo que não se acrescentem outros pesos àqueles que os filhos, nestas situações, já têm que suportar ».270 Ajudar a curar as feridas dos pais e sustentá-los espiritualmente é bom também para os filhos, que precisam do rosto familiar da Igreja que os ampare nesta experiên- cia traumática. O divórcio é um mal, e é muito preocupante o aumento do número de divórcios. Por isso, sem dúvida, a nossa tarefa pastoral mais importante relativamente às famílias é reforçar o amor e ajudar a curar as feridas, para podermos impedir o avanço deste drama do nosso tempo.

 

Algumas situações complexas

  1. « As questões relacionadas com os ma- trimónios mistos requerem uma atenção espe- cífica. Os matrimónios entre católicos e outros baptizados “apresentam, na sua fisionomia parti- cular, numerosos elementos que convém valori- zar e desenvolver quer pelo seu valor intrínseco quer pela ajuda que podem dar ao movimento ecuménico”. Com tal finalidade, “procure-se

 

270 idem, Catequese (5 de Agosto de 2015): L’Osservatore Ro- mano (ed. semanal portuguesa de 06-13/VIII/2015), 16.


 

(…) uma colaboração cordial entre o ministro católico e o não católico, desde o momento da preparação para o matrimónio e para as núpcias” (Familiaris consortio, 78). Quanto à participação eu- carística, recorda-se que “a decisão de admitir ou não a parte não católica do matrimónio à comu- nhão eucarística deve ser tomada de acordo com as normas gerais em vigor na matéria, tanto para os cristãos orientais como para os outros cris- tãos, e tendo em conta esta situação particular, isto é, que recebem o sacramento do matrimó- nio cristão dois cristãos baptizados. Embora os esposos de um matrimónio misto tenham em comum os sacramentos do baptismo e do ma- trimónio, a partilha da Eucaristia pode apenas ser excepcional e, em todo o caso, devem-se ob- servar as disposições indicadas” (Pont. Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Direc- tório para a Aplicação dos Princípios e das Normas sobre o Ecumenismo, 25 de Março de 1993, 159-160)».271

 

  1. « Os matrimónios com disparidade de cul- to constituem um lugar privilegiado de diálogo inter-religioso (...). Comportam algumas difi- culdades especiais quer em relação à identidade cristã da família quer quanto à educação religiosa dos (...) O número das famílias compostas por uniões conjugais com disparidade de culto, em aumento nos territórios de missão e tam- bém nos países de longa tradição cristã, requer

 

271 Relatio Finalis 2015, 72.


 

urgentemente uma atenção pastoral diferenciada segundo os distintos contextos sociais e culturais. Nalguns países, onde não há liberdade de reli- gião, o cônjuge cristão é obrigado a mudar de re- ligião para se poder casar, e não pode celebrar o matrimónio canónico com disparidade de culto nem baptizar os filhos. Devemos, pois, reafirmar a necessidade de que a liberdade religiosa seja respeitada em favor de todos ».272 « É necessário prestar uma atenção particular às pessoas que se unem em tais matrimónios, e não só no período anterior ao casamento. Enfrentam desafios pe- culiares os casais e as famílias, nos quais um dos cônjuges é católico e o outro não-crente. Em tais casos, é necessário testemunhar a capacidade que tem o Evangelho de mergulhar nestas situações para tornar possível a educação dos filhos na fé cristã ».273

 

  1. « Apresentam dificuldades particulares as situações que dizem respeito ao acesso ao baptismo de pessoas que estão numa condição matrimonial complexa. Trata-se de pessoas que contraíram uma união matrimonial estável, num tempo em que pelo menos uma delas ainda não conhecia a fé cristã. Os bispos são chamados a exercitar, nestes casos, um discernimento pasto- ral cônsono ao bem espiritual delas ».274

 

272  Ibid., 73.

273  Ibid., 74.

274  Ibid., 75.


 

  1. A Igreja conforma o seu comportamento ao do Senhor Jesus que, num amor sem frontei- ras, Se ofereceu por todas as pessoas sem exce- ção.275 Com os Padres sinodais, examinei a situa- ção das famílias que vivem a experiência de ter no seu seio pessoas com tendência homossexual, experiência não fácil nem para os pais nem para os Por isso desejo, antes de mais nada, rea- firmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procuran- do evitar « qualquer sinal de discriminação injus- ta »276 e particularmente toda a forma de agres- são e violência. Às famílias, por sua vez, deve-se assegurar um respeitoso acompanhamento, para que quantos manifestam a tendência homosse- xual possam dispor dos auxílios necessários para compreender e realizar plenamente a vontade de Deus na sua vida.277

 

  1. No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da família, os Padres sinodais anota- ram, quanto aos projetos de equiparação ao ma- trimónio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família. É « inacei-

 

275  Cf. FrAncisco, Bula Misericordiæ Vultus (11 de Abril de 2015), 12: AAS 107 (2015), 407.

276 Catecismo da Igreja Católica, 2358; cf. Relatio Finalis 2015, 76.

277 Cf. Catecismo da Igreja Católica, 2358.


 

tável que as Igrejas locais sofram pressões nesta matéria e que os organismos internacionais con- dicionem a ajuda financeira aos países pobres à introdução de leis que instituam o “matrimónio” entre pessoas do mesmo sexo ».278

 

  1. As famílias monoparentais têm frequen- temente origem a partir de « mães ou pais bio- lógicos que nunca quiseram integrar-se na vida familiar, situações de violência em que um dos progenitores teve de fugir com seus filhos, morte de um dos pais, abandono da família por um dos progenitores e outras situações. Seja qual for a causa, o progenitor que vive com a criança deve encontrar apoio e conforto nas outras famílias que formam a comunidade cristã, bem como nos organismos pastorais Além disso, es- tas famílias são muitas vezes afligidas pela gravi- dade dos problemas económicos, pela incerteza dum trabalho precário, pela dificuldade de man- ter os filhos, pela falta duma casa ».279

 

quAndo A morte crAVA o seu Aguilhão

  1. Às vezes, a vida familiar vê-se desafiada pela morte de um ente querido. Não podemos deixar de oferecer a luz da fé para acompanhar as famílias que sofrem em tais 280

 

278  Relatio Finalis 2015, 76; cf. congr. pArA  A doutrinA dA Fé, Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais (3 de Junho de 2003), 4.

279 Relatio Finalis 2015, 80.

280 Cf. ibid., 20.


 

Abandonar uma família atribulada por uma mor- te seria uma falta de misericórdia, seria perder uma oportunidade pastoral, e tal atitude pode fe- char-nos as portas para qualquer eventual acção evangelizadora.

 

  1. Compreendo a angústia de quem perdeu uma pessoa muito amada, um cônjuge com quem se partilhou tantas O próprio Jesus Se co- moveu e chorou no velório dum amigo (cf. Jo 11, 33.35). E como não compreender o lamento de quem perdeu um filho? Com efeito, « é como se o tempo parasse: abre-se um abismo que engole

o passado e também o futuro. (...) E às vezes che- ga-se até a dar a culpa a Deus! Quantas pessoas

– compreendo-as – se chateiam com Deus ».281

« A viuvez é uma experiência particularmente di- fícil (...). Alguns, quando têm de viver esta expe- riência, mostram que sabem fazer convergir as suas energias para uma dedicação ainda maior aos filhos e netos, encontrando nesta experiência de amor uma nova missão educativa. (...) Aque- les que já não podem contar com a presença de familiares a quem se dedicar e de quem receber carinho e proximidade, a comunidade cristã deve sustentá-los com particular atenção e disponibi- lidade, sobretudo se vivem em condições de in- digência ».282

 

281  FrAncisco, Catequese (17 de Junho de 2015): L’Osserva- tore Romano (ed. semanal portuguesa de 18/VI/2015), 16.

282 Relatio Finalis 2015, 19.


 

  1. Em geral, o luto pelos falecidos pode du- rar bastante tempo e, quando um pastor quer acompanhar este percurso, deve adaptar-se às necessidades de cada uma das suas Todo o percurso é atravessado por interrogativos sobre as causas da morte, o que poderia ter sido feito, o que uma pessoa vive nos momentos anteriores à morte... Com um caminho sincero e paciente de oração e libertação interior, volta a paz. No luto, há momentos em que é preciso ajudar a des- cobrir que, embora tenhamos perdido um ente querido, existe ainda uma missão a cumprir e não nos faz bem querer prolongar a tristeza, como se isto fosse uma homenagem. A pessoa amada não precisa da nossa tristeza, nem retém lisonjeiro que arruinemos a nossa vida. E também não é a melhor expressão de amor lembrá-la e nomeá-la a cada momento, porque significa estar preso a um passado que já não existe, em vez de amar a pessoa real que agora se encontra no Além. A sua presença física já não é possível; é verdade que a morte é algo de poderoso, mas « forte como a morte é o amor » (Ct 8, 6). O amor possui uma intuição que lhe permite escutar sem sons e ver no invisível. Isto não é imaginar o ente querido como era, mas poder aceitá-lo transformado, como é agora. Jesus ressuscitado, quando a sua amiga Maria Madalena quis abraçá-Lo intensa- mente, pediu-lhe que não O tocasse (cf. Jo 20,

17) para a levar a um encontro diferente.

 

  1. Consola-nos saber que não se verifica a destruição total dos que morrem, e a fé assegura-


 

-nos que o Ressuscitado nunca nos abandonará. Podemos, assim, impedir que a morte « envenene a nossa vida, torne vãos os nossos afectos e nos faça cair no vazio mais escuro».283 A Bíblia fala de um Deus que nos criou por amor, e fez-nos duma maneira tal que a nossa vida não termina com a morte (cf. Sab 3, 2-3). São Paulo fala-nos dum encontro com Cristo imediatamente depois da morte: « tenho o desejo de partir e estar com Cristo » (Flp 1, 23). Com Ele, espera-nos depois da morte aquilo que Deus preparou para aqueles que O amam (cf. 1 Cor 2, 9). De forma muito bela, assim se exprime o prefácio da Missa dos Defuntos: « Se a certeza da morte nos entristece, conforta-nos a promessa da imortalidade. Para os que crêem em Vós, Senhor, a vida não acaba, apenas se transforma». Com efeito, « os nossos entes queridos não desapareceram nas trevas do nada: a esperança assegura-nos que eles estão nas mãos bondosas e vigorosas de Deus ».284

 

  1. Uma maneira de comunicarmos com os seres queridos que morreram é rezar por 285Diz a Bíblia que « rezar pelos mortos » é « santo e piedoso » (2 Mac 12, 44.45). Rezar por eles « pode não só ajudá-los, mas também tornar mais eficaz a sua intercessão em nosso favor ».286 O Apoca-

 

283  FrAncisco, Catequese (17 de Junho de 2015): L’Osserva- tore Romano (ed. semanal portuguesa de 18/VI/2015), 16.

284 Ibidem.

285 Cf. Catecismo da Igreja Católica, 958.

286 Ibidem.


 

lipse apresenta os mártires a interceder pelos que sofrem injustiça na terra (cf. 6, 9-11), solidários com este mundo em caminho. Alguns Santos, antes de morrer, consolavam os seus entes que- ridos, prometendo-lhes que estariam perto aju- dando-os. Santa Teresa de Lisieux sentia vontade de continuar, do Céu, a fazer bem.287 E São Do- mingos afirmava que « seria mais útil, depois de morto (...), mais poderoso para obter graças ».288 São laços de amor,289 porque « de modo nenhum se interrompe a união dos que ainda caminham sobre a terra com os irmãos que adormeceram na paz de Cristo; mas (...) é reforçada pela comu- nicação dos bens espirituais ».290

 

  1. Se aceitarmos a morte, podemos prepa- rar-nos para ela. O caminho é crescer no amor para com aqueles que caminham connosco, até ao dia em que « não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor » (Ap 21, 4). Deste modo preparar-nos-emos também pera reencontrar os nossos entes queridos que morreram. Assim

 

287 Cf. « Últimos colóquios: “Caderno Amarelo” da Ma- dre Inês » (17 de Julho de 1897): Opere complete (Cidade do Va- ticano 1997), 1028. Nesta linha, é significativo o testemunho das carmelitas de que Santa Teresa prometera que a sua partida deste mundo havia de ser « como uma chuva de rosas » (Ibid., 9 de Junho de 1897: o. c., 991).

288 Jordão de sAxóniA, Libellus de principiis Ordinis predica- torum, 93: Monumenta Historica Sancti Patris Nostri Dominici, XVI, (Roma 1935), 69.

289 Cf. Catecismo da Igreja Católica, 957.

290  conc. ecum. VAt. ii, Const. dogm sobre a Igreja Lu- men gentium, 49


 

como Jesus entregou o filho que tinha morrido à sua mãe (cf. Lc 7, 15), de forma semelhante pro- cederá connosco. Não gastemos energias, deten- do-nos anos e anos no passado. Quanto melhor vivermos nesta terra, tanto maior felicidade po- deremos partilhar com os nossos entes queridos no céu. Quanto mais conseguirmos amadurecer e crescer, tanto mais poderemos levar-lhes coisas belas para o banquete celeste.


 

 

 

 

 

CAPÍTULO VII

reForçAr  A  educAção  dos  Filhos

 

 

  1. Os pais incidem sempre, para bem ou para mal, no desenvolvimento moral dos seus fi- lhos. Consequentemente, o melhor é aceitarem esta responsabilidade inevitável e realizarem-na de modo consciente, entusiasta, razoável e apro- Uma vez que esta função educativa das famílias é tão importante e se tornou muito com- plexa, quero deter-me de modo especial neste ponto.

 

onde estão os Filhos?

  1. A família não pode renunciar a ser lugar de apoio, acompanhamento, guia, embora tenha de reinventar os seus métodos e encontrar novos re- cursos. Precisa de considerar a que realidade quer expor os seus Para isso não deve deixar de se interrogar sobre quem se ocupa de lhes ofe- recer diversão e entretenimento, quem entra nas suas casas através dos écrans, a quem os entrega para que os guie nos seus tempos livres. Só os momentos que passamos com eles, falando com simplicidade e carinho das coisas importantes, e as possibilidades sadias que criamos para ocupa- rem o seu tempo permitirão evitar uma nociva invasão. Sempre faz falta vigilância; o abandono


 

nunca é sadio. Os pais devem orientar e alertar as crianças e os adolescentes para saberem enfren- tar situações onde possa haver risco, por exem- plo, de agressões, abuso ou consumo de droga.

 

  1. A obsessão, porém, não é educativa; e também não é possível ter o controle de todas as situações onde um filho poderá chegar a encon- trar-se. Vale aqui o princípio de que « o tempo é superior ao espaço »,291 isto é, trata-se mais de gerar processos que de dominar espaços. Se um progenitor está obcecado com saber onde está o seu filho e controlar todos os seus movimen- tos, procurará apenas dominar o seu espaço. Mas, desta forma, não o educará, não o reforçará, não o preparará para enfrentar os O que in- teressa acima de tudo é gerar no filho, com mui- to amor, processos de amadurecimento da sua li- berdade, de preparação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia. Só assim este filho terá em si mesmo os elementos de que pre- cisa para saber defender-se e agir com inteligên- cia e cautela em circunstâncias difíceis. Assim, a grande questão não é onde está fisicamente o filho, com quem está neste momento, mas onde se encontra em sentido existencial, onde está po- sicionado do ponto de vista das suas convicções, dos seus objectivos, dos seus desejos, do seu pro- jecto de vida. Por isso, eis as perguntas que faço aos pais: « Procuramos compreender “onde” os

 

291  FrAncisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novem- bro de 2013), 222: AAS 105 (2013), 1111.


 

filhos verdadeiramente estão no seu caminho? Sabemos onde está realmente a sua alma? E, so- bretudo, queremos sabê-lo? »292

 

  1. Se a maturidade fosse apenas o desen- volvimento de algo já contido no código ge- nético, quase nada poderíamos fazer. Mas não é! A prudência, o recto juízo e a sensatez não dependem de factores puramente quantitativos de crescimento, mas de toda uma cadeia de ele- mentos que se sintetizam no íntimo da pessoa; mais exactamente, no centro da sua É inevitável que cada filho nos surpreenda com os projectos que brotam desta liberdade, que rompa os nossos esquemas; e é bom que isto aconteça. A educação envolve a tarefa de promover liber- dades responsáveis, que, nas encruzilhadas, sai- bam optar com sensatez e inteligência; pessoas que compreendam sem reservas que a sua vida e a vida da sua comunidade estão nas suas mãos e que esta liberdade é um dom imenso.

 

A FormAção éticA dos Filhos

  1. Os pais necessitam também da escola para assegurar uma instrução de base aos seus filhos, mas a formação moral deles nunca a podem de- legar O desenvolvimento afectivo e ético duma pessoa requer uma experiência fun- damental: crer que os próprios pais são dignos de

 

292 idem, Catequese (20 de Maio de 2015): L’Osservatore Ro- mano (ed. semanal portuguesa de 21/V/2015), 20.


 

confiança. Isto constitui uma responsabilidade educativa: com o carinho e o testemunho, gerar confiança nos filhos, inspirar-lhes um respeito amoroso. Quando um filho deixa de sentir que é precioso para seus pais, embora imperfeito, ou deixa de notar que nutrem uma sincera preocu- pação por ele, isto cria feridas profundas que cau- sam muitas dificuldades no seu amadurecimento. Esta ausência, este abandono afectivo provoca um sofrimento mais profundo do que a eventual correcção recebida por uma má acção.

 

  1. A tarefa dos pais inclui uma educação da vontade e um desenvolvimento de hábitos bons e tendências afectivas para o bem. Isto implica que se apresentem como desejáveis os compor- tamentos a aprender e as tendências a fazer ma- turar. Mas trata-se sempre de um processo que vai da imperfeição para uma plenitude O desejo de se adaptar à sociedade ou o hábito de renunciar a uma satisfação imediata para se ade- quar a uma norma e garantir uma boa convivên- cia já é, em si mesmo, um valor inicial que cria disposições para se elevar depois rumo a valores mais altos. A formação moral deveria realizar-se sempre com métodos activos e com um diálo- go educativo que integre a sensibilidade e a lin- guagem própria dos filhos. Além disso, esta for- mação deve ser realizada de forma indutiva, de modo que o filho possa chegar a descobrir por si mesmo a importância de determinados valores, princípios e normas, em vez de lhos impor como verdades indiscutíveis.


 

  1. Para agir bem, não basta « julgar de modo adequado » ou saber com clareza aquilo que se deve fazer, embora isso seja prioritário. Com efeito, muitas vezes somos incoerentes com as nossas próprias convicções, mesmo quando são sólidas. Há ocasiões em que, por mais que a consciência nos dite determinado juízo moral, têm mais poder outras coisas que nos atraem; isto acontece, se não conseguirmos que o bem indivi- duado pela mente se radique em nós como uma profunda inclinação afectiva, como um gosto pelo bem que pese mais do que outros atractivos e nos faça perceber que aquilo que individuamos como bem é tal também « para nós » aqui e ago- ra. Uma formação ética válida implica mostrar à pessoa como é conveniente, para ela mesma, agir bem. Muitas vezes, hoje, é ineficaz pedir algo que exija esforço e renúncias, sem mostrar claramen-

te o bem que se poderia alcançar com isso.

 

  1. É necessário maturar hábitos. Os próprios hábitos adquiridos em criança têm uma função positiva, ajudando a traduzir em comportamen- tos externos sadios e estáveis os grandes valores interiorizados. Uma pessoa pode possuir senti- mentos sociáveis e uma boa disposição para com os outros, mas se não foi habituada durante muito tempo, por insistência dos adultos, a dizer « por favor », « com licença », « obrigado », a tal boa dis- posição interior não se traduzirá facilmente nes- tas expressões. O fortalecimento da vontade e a repetição de determinadas acções constroem a


 

conduta moral; mas, sem a repetição consciente, livre e elogiada de determinados comportamen- tos bons, nunca se chega a educar tal conduta. As motivações ou a atracção que sentimos por um determinado valor, não se tornam uma virtude sem estes actos adequadamente motivados.

 

  1. A liberdade é algo de grandioso, mas po- demos perdê-la. A educação moral é cultivar a liberdade através de propostas, motivações, apli- cações práticas, estímulos, prémios, exemplos, modelos, símbolos, reflexões, exortações, revi- sões do modo de agir e diálogos que ajudem as pessoas a desenvolver aqueles princípios interio- res estáveis que movem a praticar espontanea- mente o bem. A virtude é uma convicção que se transformou num princípio interior e estável do Assim, a vida virtuosa constrói a liberda- de, fortifica-a e educa-a, evitando que a pessoa se torne escrava de inclinações compulsivas desu- manizadoras e anti-sociais. Com efeito, a própria dignidade humana exige que cada um « proceda segundo a própria consciência e por livre adesão, ou seja, movido e induzido pessoalmente desde dentro ».293

 

o VAlor dA sAnção como estímulo

  1. De igual modo, é indispensável sensibili- zar a criança e o adolescente para se darem con-

 

293  conc. ecum. VAt. ii, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 17.


 

ta de que as más acções têm consequências. É preciso despertar a capacidade de colocar-se no lugar do outro e sentir pesar pelo seu sofrimento originado pelo mal que lhe fez. Algumas sanções

  • aos comportamentos anti-sociais agressivos – podem parcialmente cumprir esta finalidade. É importante orientar a criança, com firmeza, para que peça perdão e repare o mal causado aos ou- tros. Quando o percurso educativo mostra os seus frutos num amadurecimento da liberdade pessoal, a dado momento o próprio filho come- çará a reconhecer, com gratidão, que foi bom para ele crescer numa família e também suportar as exigências impostas por todo o processo for-

 

  1. A correcção é um estímulo quando, ao mesmo tempo, se apreciam e reconhecem os esforços e quando o filho descobre que os seus pais conservam viva uma paciente confiança. Uma criança corrigida com amor sente-se tida em consideração, percebe que é alguém, dá-se conta de que seus pais reconhecem as suas po- tencialidades. Isto não exige que os pais sejam irrepreensíveis, mas que saibam reconhecer, com humildade, os seus limites e mostrem o seu es- forço pessoal por ser Mas um testemu- nho de que os filhos precisam da parte dos pais, é que estes não se deixem levar pela ira. O filho, que comete uma má acção, deve ser corrigido, mas nunca como um inimigo ou como alguém sobre quem se descarrega a própria agressivida-


 

  1. Além disso, um adulto deve reconhecer que algumas más acções têm a ver com as fragilida- des e os limites próprios da idade. Por isso, se- ria nociva uma atitude constantemente punitiva, porque não ajudaria a notar a diferente gravidade das acções e provocaria desânimo e exaspera- ção: « Vós, pais, não exaspereis os vossos filhos » (Ef 6, 4; cf. Col 3, 21).

 

  1. Condição fundamental é que a disciplina não se transforme numa mutilação do desejo, mas se torne um estímulo para ir sempre mais além. Como integrar disciplina e dinamismo in- terior? Como fazer para que a disciplina seja li- mite construtivo do caminho que uma criança deve empreender e não um muro que a aniqui- le ou uma dimensão da educação que a iniba? É preciso saber encontrar um equilíbrio entre dois extremos igualmente nocivos: um seria pretender construir um mundo à medida dos desejos do filho, que cresceria sentindo-se sujeito de direi- tos mas não de responsabilidades; o outro extre- mo seria levá-lo a viver sem consciência da sua dignidade, da sua identidade singular e dos seus direitos, torturado pelos deveres e submetido à realização dos desejos

 

reAlismo pAciente

  1. A educação moral implica pedir a uma criança ou a um jovem apenas aquelas coisas que não representem, para eles, um sacrifício des- proporcionado, exigir-lhes apenas aquela dose


 

de esforço que não provoque ressentimento ou acções puramente forçadas. O percurso normal é propor pequenos passos que possam ser com- preendidos, aceites e apreciados, e impliquem uma renúncia proporcionada. Caso contrário, pedindo demasiado, nada se obtém. A pessoa, logo que puder livrar-se da autoridade, provavel- mente deixará de praticar o bem.

 

  1. Por vezes, a formação ética provoca des- prezo devido a experiências de abandono, desilu- são, carência afectiva, ou a uma má imagem dos Projectam-se sobre os valores éticos as ima- gens distorcidas das figuras do pai e da mãe ou as fraquezas dos adultos. Por isso, é preciso ajudar os adolescentes a porem em prática a analogia: os valores são cumpridos perfeitamente por al- gumas pessoas muito exemplares, mas também se realizam de forma imperfeita e em diferentes graus. E uma vez que as resistências dos jovens estão muito ligadas a experiências negativas, é preciso ao mesmo tempo ajudá-los a percorrer um itinerário de cura deste mundo interior feri- do, para poderem ter acesso à compreensão e à reconciliação com as pessoas e com a sociedade.

 

  1. Quando se propõe os valores, é preciso fazê-lo pouco a pouco, avançar de maneira di- ferente segundo a idade e as possibilidades con- cretas das pessoas, sem pretender aplicar meto- dologias rígidas e imutáveis. A psicologia e as ciências da educação, com suas valiosas contri- buições, mostram que é necessário um processo


 

gradual para se conseguir mudanças de compor- tamento e também que a liberdade precisa de ser orientada e estimulada, porque, abandonando-a a si mesma, não se garante a sua maturação. A li- berdade efectiva, real, é limitada e condicionada. Não é uma pura capacidade de escolher o bem, com total espontaneidade. Nem sempre se faz uma distinção adequada entre acto « voluntário » e acto « livre ». Uma pessoa pode querer algo de mal com uma grande força de vontade, mas por causa duma paixão irresistível ou duma educa- ção deficiente. Neste caso, a sua decisão é forte- mente voluntária, não contradiz a inclinação da sua vontade, mas não é livre, porque lhe resulta quase impossível não escolher aquele mal. É o que acontece com um dependente compulsivo da droga: quando a quer, fá-lo com todas as suas forças, mas está tão condicionado que, na hora, não é capaz de tomar outra decisão. Portanto, a sua decisão é voluntária, mas não livre. Não tem sentido « deixá-lo escolher livremente », porque, de facto, não pode escolher, e expô-lo à droga só aumenta a dependência. Precisa da ajuda dos outros e de um percurso educativo.

 

A VidA FAmiliAr como contexto educAtiVo

  1. A família é a primeira escola dos valores humanos, onde se aprende o bom uso da liber- dade. Há inclinações maturadas na infância, que impregnam o íntimo duma pessoa e permanecem toda a vida como uma inclinação favorável a um valor ou como uma rejeição espontânea de certos


 

comportamentos. Muitas pessoas actuam a vida inteira duma determinada forma, porque conside- ram válida tal forma de agir, que assimilaram desde a infância, como que por osmose: « Fui ensinado assim »; « isto é o que me inculcaram ». No âmbi- to familiar, pode-se aprender também a discernir, criticamente, as mensagens dos vários meios de comunicação. Muitas vezes, infelizmente, alguns programas televisivos ou algumas formas de pu- blicidade incidem negativamente e enfraquecem valores recebidos na vida familiar.

 

  1. Na época actual, em que reina a ansiedade e a pressa tecnológica, uma tarefa importantís- sima das famílias é educar para a capacidade de esperar. Não se trata de proibir as crianças de jo- garem com os dispositivos electrónicos, mas de encontrar a forma de gerar nelas a capacidade de diferenciarem as diversas lógicas e não aplicarem a velocidade digital a todas as áreas da vida. O adiamento não é negar o desejo, mas retardar a sua satisfação. Quando as crianças ou os adoles- centes não são educados para aceitar que algumas coisas devem esperar, tornam-se prepotentes, submetem tudo à satisfação das suas necessida- des imediatas e crescem com o vício do « tudo e súbito ». Este é um grande engano que não favo- rece a liberdade; antes, intoxica-a. Ao contrário, quando se educa para aprender a adiar algumas coisas e esperar o momento oportuno, ensina-

-se o que significa ser senhor de si mesmo, au-

tónomo face aos seus próprios impulsos. Assim,


 

quando a criança experimenta que pode cuidar de si mesma, enriquece a própria auto-estima. Ao mesmo tempo, isto ensina-lhe a respeitar a liber- dade dos outros. Naturalmente isto não significa pretender das crianças que actuem como adultos, mas também não se deve subestimar a sua capa- cidade de crescer na maturação duma liberdade responsável. Numa família sã, esta aprendizagem realiza-se de forma normal através das exigências da convivência.

 

  1. A família é o âmbito da socialização pri- mária, porque é o primeiro lugar onde se aprende a relacionar-se com o outro, a escutar, partilhar, suportar, respeitar, ajudar, A tarefa edu- cativa deve levar a sentir o mundo e a sociedade como « ambiente familiar »: é uma educação para saber « habitar » mais além dos limites da própria casa. No contexto familiar, ensina-se a recuperar a proximidade, o cuidado, a saudação. É lá que se rompe o primeiro círculo do egoísmo mortí- fero, fazendo-nos reconhecer que vivemos junto de outros, com outros, que são dignos da nossa atenção, da nossa gentileza, do nosso afecto. Não há vínculo social, sem esta primeira dimensão quotidiana, quase microscópica: conviver na pro- ximidade, cruzando-nos nos vários momentos do dia, preocupando-nos com aquilo que inte- ressa a todos, socorrendo-nos mutuamente nas pequenas coisas do dia-a-dia. A família tem de inventar, todos os dias, novas formas de promo- ver o reconhecimento mútuo.


 

  1. No ambiente familiar, é possível também repensar os hábitos de consumo, cuidando juntos da casa comum: « A família é a protagonista de uma ecologia integral, porque constitui o sujeito social primário, que contém no seu interior os dois princípios-base da civilização humana sobre a terra: o princípio da comunhão e o princípio da fecundidade».294 De igual modo, podem ser muito educativos os momentos difíceis e duros da vida É o que acontece, por exemplo, quando chega uma doença, porque, « diante da doença, até em família surgem dificuldades, por causa da debilidade humana. Mas, em geral, o tempo da enfermidade faz aumentar a força dos vínculos familiares. (...) Uma educação que negli- gencie a sensibilidade pela doença humana, torna árido o coração. E deixa os jovens “anestesiados” em relação ao sofrimento do próximo, incapazes de se confrontar com o sofrimento e de viver a experiência do limite ».295

 

  1. O encontro educativo entre pais e filhos pode ser facilitado ou prejudicado pelas tecnolo- gias de comunicação e distracção, cada vez mais Bem utilizadas, podem ser úteis para pôr em contacto os membros da família, que vi- vem longe. Os contactos podem ser frequentes

 

294  FrAncisco, Catequese (30 de Setembro de 2015): L’Os- servatore Romano (ed. semanal portuguesa de 01/X/2015), 24.

295 idem, Catequese (10 de Junho de 2015): L’Osservatore Ro- mano (ed. semanal portuguesa de 11/VI/2015), 16.


 

e ajudar a resolver dificuldades.296 Mas deve fi- car claro que não substituem nem preenchem a necessidade do diálogo mais pessoal e profundo que requer o contacto físico ou, pelo menos, a voz da outra pessoa. Sabemos que, às vezes, es- tes meios afastam em vez de aproximar, como quando, na hora da refeição, cada um está con- centrado no seu telemóvel ou quando um dos cônjuges adormece à espera do outro que passa horas entretido com algum dispositivo electróni- co. Na família, também isto deve ser motivo de diálogo e de acordos que permitam dar priori- dade ao encontro dos seus membros sem cair em proibições insensatas. Em todo o caso, não se podem ignorar os riscos das novas formas de comunicação para as crianças e os adolescentes, chegando às vezes a torná-los apáticos, desliga- dos do mundo real. Este « autismo tecnológico» expõe-nos mais facilmente às manipulações da- queles que procuram entrar na sua intimidade com interesses egoístas.

 

  1. Mas também não é bom que os pais se tornem seres omnipotentes para seus filhos, de modo que estes só poderiam confiar neles, por- que assim impedem um processo adequado de socialização e amadurecimento Para tornar eficaz o prolongamento da paternidade e da maternidade para uma realidade mais am- pla, « as comunidades cristãs são chamadas a dar

 

296 Cf. Relatio Finalis 2015, 67.


 

o seu apoio à missão educativa das famílias »,297 particularmente através da catequese de inicia- ção. Para favorecer uma educação integral, pre- cisamos de « reavivar a aliança entre a família e a comunidade cristã ».298 O Sínodo quis destacar a importância das escolas católicas, que « realizam uma função vital de ajuda aos pais no seu dever de educar os filhos. (...) As escolas católicas de- veriam ser incentivadas na sua missão de ajudar os alunos a crescer como adultos maduros que podem ver o mundo através do olhar de amor de Jesus e compreender a vida como uma chamada para servir a Deus».299 Para isso « deve-se afir- mar resolutamente a liberdade da Igreja ensinar a própria doutrina e o direito à objecção de cons- ciência por parte dos educadores».300

 

sim À educAção sexuAl

  1. O Concílio Vaticano II apresentava a ne- cessidade de « uma educação sexual positiva e prudente » oferecida às crianças e adolescentes « à medida que vão crescendo» e « tendo em conta os progressos da psicologia, pedagogia e didác- tica ».301 Deveríamos perguntar-nos se as nossas instituições educativas assumiram este desafio. É difícil pensar na educação sexual num tempo em

 

297  FrAncisco, Catequese (20 de Maio de 2015): L’Osservato- re Romano (ed. semanal portuguesa de 21/V/2015), 20.

298 idem, Catequese (9 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 10/IX/2015), 16.

299 Relatio Finalis 2015, 68.

300 Ibid., 58.

301 Decl. sobre a educação cristã Gravissimum educationis, 1.


 

que se tende a banalizar e empobrecer a sexuali- dade. Só se poderia entender no contexto duma educação para o amor, para a doação mútua; as- sim, a linguagem da sexualidade não acabaria tris- temente empobrecida, mas esclarecida. É possí- vel cultivar o impulso sexual num percurso de conhecimento de si mesmo e no desenvolvimen- to duma capacidade de autodomínio, que podem ajudar a trazer à luz capacidades preciosas de ale- gria e encontro amoroso.

 

  1. A educação sexual oferece informação, mas sem esquecer que as crianças e os jovens ainda não alcançaram plena maturidade. A in- formação deve chegar no momento apropriado e de forma adequada à fase que vivem. Não é útil saturá-los de dados, sem o desenvolvimento do sentido crítico perante uma invasão de pro- postas, perante a pornografia descontrolada e a sobrecarga de estímulos que podem mutilar a se- xualidade. Os jovens devem poder dar-se conta de que são bombardeados por mensagens que não procuram o seu bem e o seu amadurecimen- Faz falta ajudá-los a identificar e procurar as influências positivas, ao mesmo tempo que se afastam de tudo o que desfigura a sua capacidade de amar. De igual modo, devemos aceitar que « a necessidade duma linguagem nova e mais ade- quada se apresenta especialmente no momento de introduzir as crianças e os adolescentes no tema da sexualidade».302

 

302  Relatio Finalis 2015, 56.


 

  1. Tem um valor imenso uma educação se- xual que cuide um são pudor, embora hoje al- guns considerem que é questão doutros É uma defesa natural da pessoa que resguarda a sua interioridade e evita ser transformada em mero objecto. Sem o pudor, podemos reduzir o afecto e a sexualidade a obsessões que nos con- centram apenas nos órgãos genitais, em morbosi- dades que deformam a nossa capacidade de amar e em várias formas de violência sexual que nos levam a ser tratados de forma desumana ou a prejudicar os outros.

 

  1. Frequentemente a educação sexual con- centra-se no convite a « proteger-se », procuran- do um « sexo seguro ». Estas expressões transmi- tem uma atitude negativa a respeito da finalidade procriadora natural da sexualidade, como se um possível filho fosse um inimigo de que é preciso proteger-se. Deste modo promove-se a agressi- vidade narcisista, em vez do acolhimento. É ir- responsável qualquer convite aos adolescentes para que brinquem com os seus corpos e dese- jos, como se tivessem a maturidade, os valores, o compromisso mútuo e os objectivos próprios do matrimónio. Assim, são levianamente encora- jados a utilizar a outra pessoa como objecto de experiências para compensar carências e grandes limites. É importante, pelo contrário, ensinar um percurso pelas diversas expressões do amor, o cuidado mútuo, a ternura respeitosa, a comunica- ção rica de Com efeito, tudo isto prepara


 

para uma doação íntegra e generosa de si mes- mo que se expressará, depois dum compromisso público, na entrega dos corpos. Assim a união sexual no matrimónio aparecerá como sinal dum compromisso totalizante, enriquecido por todo o caminho anterior.

 

  1. É preciso não enganar os jovens, levan- do-os a confundir os planos: a atracção « cria, por um momento, a ilusão da “união”, mas, sem amor, tal união deixa os desconhecidos tão se- parados como antes ».303 A linguagem do corpo requer uma aprendizagem paciente que permita interpretar e educar os próprios desejos em or- dem a uma entrega de verdade. Quando se pre- tende entregar tudo duma vez, é possível que não se entregue nada. Uma coisa é compreender as fragilidades da idade ou as suas confusões, outra é encorajar os adolescentes a prolongarem a ima- turidade da sua forma de Mas, quem fala hoje destas coisas? Quem é capaz de tomar os jovens a sério? Quem os ajuda a preparar-se se- riamente para um amor grande e generoso? Não se toma a sério a educação sexual.

 

  1. A educação sexual deveria incluir tam- bém o respeito e a valorização da diferença, que mostra a cada um a possibilidade de superar o confinamento nos próprios limites para se abrir à aceitação do Para além de compreensí-

 

303  erich Fromm, The Art of  Loving (Nova York 1956), 54.


 

veis dificuldades que cada um possa viver, é pre- ciso ajudar a aceitar o seu corpo como foi criado, porque « uma lógica de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica, por vezes sub- til, de domínio sobre a criação. (...) Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder re- conhecer a si mesmo no encontro com o outro que é diferente. Assim, é possível aceitar com ale- gria o dom específico do outro ou da outra, obra de Deus criador, e enriquecer-se mutuamente».304 Só perdendo o medo à diferença é que uma pes- soa pode chegar a libertar-se da imanência do próprio ser e do êxtase por si mesmo. A educa- ção sexual deve ajudar a aceitar o próprio corpo, de modo que a pessoa não pretenda « cancelar a diferença sexual, porque já não sabe confrontar-

-se com ela ».305

 

  1. Também não se pode ignorar que, na con- figuração do próprio modo de ser – feminino ou masculino –, não confluem apenas factores bio- lógicos ou genéticos, mas uma multiplicidade de elementos que têm a ver com o temperamento, a história familiar, a cultura, as experiências vivi- das, a formação recebida, as influências de ami- gos, familiares e pessoas admiradas, e outras cir- cunstâncias concretas que exigem um esforço de

 

 

304  FrAncisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de Maio de 2015),

155.

305 idem, Catequese (15 de Abril de 2015): L’Osservatore Ro-

mano (ed. semanal portuguesa de 16/IV/2015), 20.


 

adaptação. É verdade que não podemos separar o que é masculino e feminino da obra criada por Deus, que é anterior a todas as nossas decisões e experiências e na qual existem elementos bio- lógicos que é impossível ignorar. Mas também é verdade que o masculino e o feminino não são qualquer coisa de rígido. Por isso é possível, por exemplo, que o modo de ser masculino do mari- do possa adaptar-se de maneira flexível à condi- ção laboral da esposa; o facto de assumir tarefas domésticas ou alguns aspectos da criação dos fi- lhos não o torna menos masculino nem significa um falimento, uma capitulação ou uma vergonha. É preciso ajudar as crianças a aceitar como nor- mais estes « intercâmbios » sadios que não tiram dignidade alguma à figura paterna. A rigidez tor- na-se um exagero do masculino ou do feminino, e não educa as crianças e os jovens para a reci- procidade encarnada nas condições reais do ma- trimónio. Tal rigidez, por seu lado, pode impedir o desenvolvimento das capacidades de cada um, tendo-se chegado ao ponto de considerar pouco masculino dedicar-se à arte ou à dança e pouco feminino desempenhar alguma tarefa de chefia. Graças a Deus, isto mudou; mas, nalguns lugares, certas ideias inadequadas continuam a condicio- nar a legítima liberdade e a mutilar o autêntico desenvolvimento da identidade concreta dos fi- lhos e das suas potencialidades.

 

trAnsmitir A Fé

  1. A educação dos filhos deve estar marcada por um percurso de transmissão da fé, que se vê


 

dificultado pelo estilo de vida actual, pelos horá- rios de trabalho, pela complexidade do mundo actual, onde muitos têm um ritmo frenético para poder sobreviver.306 Apesar disso, a família deve continuar a ser lugar onde se ensina a perceber as razões e a beleza da fé, a rezar e a servir o próxi- mo. Isto começa no baptismo, onde – como dizia Santo Agostinho – as mães que levam os seus filhos « cooperam no parto santo».307 Depois tem início o percurso de crescimento desta vida nova. A fé é dom de Deus, recebido no baptismo, e não o resultado duma acção humana; mas os pais são instrumentos de Deus para a sua maturação e desenvolvimento. Por isso, « é bonito quando as mães ensinam os filhos pequenos a enviar um beijo a Jesus ou a Nossa Senhora. Quanta ter- nura há nisto! Naquele momento, o coração das crianças transforma-se em lugar de oração ».308 A transmissão da fé pressupõe que os pais vivam a experiência real de confiar em Deus, de O pro- curar, de precisar d’Ele, porque só assim « cada geração contará à seguinte o louvor das obras [de Deus] e todos proclamarão as [Suas] proezas » (Sl 145/144, 4) e « o pai dará a conhecer aos seus filhos a [Sua] fidelidade » (Is 38, 19). Isto requer que imploremos a acção de Deus nos corações, aonde não podemos chegar. O grão de mostar- da, semente tão pequenina, transforma-se num

 

306 Cf. Relatio Finalis 2015, 13-14.

307 De sancta virginitate, 7, 7: PL 40, 400.

308  FrAncisco, Catequese (26 de Agosto de 2015): L’Osser- vatore Romano (ed. semanal portuguesa de 27/VIII/2015), 12.


 

grande arbusto (cf. Mt 13, 31-32), e, deste modo, reconhecemos a desproporção entre a acção e o seu efeito. Sabemos, assim, que não somos pro- prietários do dom, mas seus solícitos administra- dores. Entretanto o nosso esforço criativo é uma oferta que nos permite colaborar com a iniciativa divina. Por isso, « tenha-se o cuidado de valorizar os casais, as mães e os pais, como sujeitos activos da catequese (...). De grande ajuda é a catequese familiar, enquanto método eficaz para formar os pais jovens e torná-los conscientes da sua missão como evangelizadores da sua própria família ».309

 

  1. A educação na fé sabe adaptar-se a cada fi- lho, porque os recursos aprendidos ou as receitas às vezes não As crianças precisam de símbolos, gestos, narrações. Os adolescentes ha- bitualmente entram em crise com a autoridade e com as normas, pelo que é conveniente estimular as suas experiências pessoais de fé e oferecer-lhes testemunhos luminosos que se imponham sim- plesmente pela sua beleza. Os pais, que querem acompanhar a fé dos seus filhos, estão atentos às suas mudanças, porque sabem que a experiência espiritual não se impõe, mas propõe-se à sua li- berdade. É fundamental que os filhos vejam de maneira concreta que, para os seus pais, a oração é realmente importante. Por isso, os momentos de oração em família e as expressões da pieda- de popular podem ter mais força evangelizadora

 

309 Relatio Finalis 2015, 89.


 

do que todas as catequeses e todos os discursos. Quero exprimir a minha gratidão de forma espe- cial a todas as mães que rezam incessantemen- te, como fazia Santa Mónica, pelos filhos que se afastaram de Cristo.

 

  1. O exercício de transmitir aos filhos a fé, no sentido de facilitar a sua expressão e crescimento, permite que a família se torne evangelizadora e, espontaneamente, comece a transmiti-la a todos os que se aproximam dela e mesmo fora do pró- prio ambiente Os filhos que crescem em famílias missionárias, frequentemente tornam-se missionários, se os pais sabem viver esta tarefa duma maneira tal que os outros os sintam vizi- nhos e amigos, de tal modo que os filhos cresçam neste estilo de relação com o mundo, sem renun- ciar à sua fé nem às suas convicções. Lembremo-

-nos que o próprio Jesus comia e bebia com os pecadores (cf. Mc 2, 16; Mt 11, 19), podia deter-se a conversar com a Samaritana (cf. Jo 4, 7-26) e re- ceber de noite Nicodemos (cf. Jo 3, 1-21), deixava ungir os seus pés por uma mulher prostituta (cf. Lc 7, 36-50) e não hesitava em tocar os doentes (cf. Mc 1, 40-45; 7, 33). E o mesmo faziam os seus apóstolos, que não eram pessoas desprezadoras dos outros, fechadas em pequenos grupos de elei- tos, isoladas da vida do seu povo. Enquanto as au- toridades os perseguiam, eles gozavam da simpatia de todo o povo (cf. At 2, 47; 4, 21.33; 5, 13).

 

  1. « A família torna-se sujeito da acção pas- toral, através do anúncio explícito do Evangelho


 

e do legado de múltiplas formas de testemunho, nomeadamente a solidariedade com os pobres, a abertura à diversidade das pessoas, a salvaguarda da criação, a solidariedade moral e material para com as outras famílias, especialmente para com as mais necessitadas, o empenho na promoção do bem comum, inclusive através da transformação das estruturas sociais injustas, a partir do territó- rio onde vive a família, praticando as obras cor- porais e espirituais de misericórdia».310 Isto deve ser feito no contexto da convicção mais preciosa dos cristãos: o amor do Pai que nos sustenta e faz crescer, manifestado no dom total de Jesus Cristo, vivo no meio de nós, que nos torna capa- zes de enfrentar, unidos, todas as tempestades e todas as etapas da vida. E, no coração de cada fa- mília, deve ressoar também o querigma, a tempo e fora de tempo, para iluminar o caminho. Todos deveríamos poder dizer, a partir da vivência nas nossas famílias: « Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele » (1 Jo 4, 16). Só a partir desta experiência é que a pastoral familiar poderá conseguir que as famílias sejam simulta- neamente igrejas domésticas e fermento evange- lizador na sociedade.

 

 

 

 

 

 

310 Ibid., 93.


 

 

 

 

 

CAPÍTULO VIII

AcompAnhAr,  discernir e  integrAr  A  FrAgilidAde

 

  1. Os Padres sinodais afirmaram que, embo- ra a Igreja reconheça que toda a ruptura do vín- culo matrimonial « é contra a vontade de Deus, está consciente também da fragilidade de mui- tos dos seus filhos ».311 Iluminada pelo olhar de Cristo, a Igreja « dirige-se com amor àqueles que participam na sua vida de modo incompleto, re- conhecendo que a graça de Deus também actua nas suas vidas, dando-lhes a coragem para fazer o bem, cuidar com amor um do outro e estar ao serviço da comunidade onde vivem e traba- lham ».312 Aliás esta atitude vê-se corroborada no contexto de um Ano Jubilar dedicado à mi- sericórdia. Embora não cesse jamais de propor a perfeição e convidar a uma resposta mais plena a Deus, « a Igreja deve acompanhar, com atenção e solicitude, os seus filhos mais frágeis, marca- dos pelo amor ferido e extraviado, dando-lhes de novo confiança e esperança, como a luz do fa- rol dum porto ou duma tocha acesa no meio do povo para iluminar aqueles que perderam a rota

 

311 Relatio Synodi 2014, 24.

312 Ibid., 25.


 

ou estão no meio da tempestade».313 Não esque- çamos que, muitas vezes, o trabalho da Igreja é semelhante ao de um hospital de campanha.

 

  1. O matrimónio cristão, reflexo da união entre Cristo e a sua Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e uma mulher, que se doam reciprocamente com um amor exclusivo e livre fidelidade, se pertencem até à morte e abrem à transmissão da vida, consagrados pelo sacra- mento que lhes confere a graça para se consti- tuírem como igreja doméstica e serem fermento de vida nova para a Algumas formas de união contradizem radicalmente este ideal, en- quanto outras o realizam pelo menos de forma parcial e analógica. Os Padres sinodais afirmaram que a Igreja não deixa de valorizar os elementos construtivos nas situações que ainda não corres- pondem ou já não correspondem à sua doutrina sobre o matrimónio.314

 

A grAduAlidAde nA pAstorAl

  1. Os Padres consideraram também a situa- ção particular de um matrimónio apenas civil ou mesmo, ressalvadas as distâncias, da mera con- vivência: « quando a união atinge uma notável estabilidade através dum vínculo público e se ca- racteriza por um afecto profundo, responsabili- dade para com a prole, capacidade de superar as

 

313 Ibid., 28.

314 Cf. ibid., 41.43; Relatio Finalis 2015, 70.


 

provas, pode ser vista como uma ocasião a acom- panhar na sua evolução para o sacramento do matrimónio ».315 Além disso, é preocupante que hoje muitos jovens não tenham confiança no ma- trimónio e convivam adiando indefinidamente o compromisso conjugal, enquanto outros põem termo ao compromisso assumido e imediata- mente instauram um novo. Aqueles « que fazem parte da Igreja, precisam duma atenção pastoral misericordiosa e encorajadora».316 Com efeito, aos pastores compete não só a promoção do ma- trimónio cristão, mas também « o discernimento pastoral das situações de muitas pessoas que dei- xaram de viver esta realidade », para « entrar em diálogo pastoral com elas a fim de evidenciar os elementos da sua vida que possam levar a uma maior abertura ao Evangelho do matrimónio na sua plenitude ».317 No discernimento pastoral, convém « identificar elementos que possam favo- recer a evangelização e o crescimento humano e espiritual ».318

 

  1. « Muitas vezes a escolha do matrimónio ci- vil ou, em diversos casos, da simples convivência não é motivada por preconceitos ou relutância face à união sacramental, mas por situações cul- turais ou contingentes».319 Nestas situações, po-

 

315 Relatio Synodi 2014, 27.

316  Ibid., 26.

317  Ibid., 41.

318 Ibidem.

319 Relatio Finalis 2015, 71.


 

derão ser valorizados aqueles sinais de amor que refletem de algum modo o amor de Deus.320 Sa- bemos que « está em contínuo crescimento o nú- mero daqueles que, depois de terem vivido juntos longo tempo, pedem a celebração do matrimónio na Igreja. Muitas vezes, escolhe-se a simples con- vivência por causa da mentalidade geral contrária às instituições e aos compromissos definitivos, mas também porque se espera adquirir maior se- gurança existencial (emprego e salário fixo). Nou- tros países, por último, as uniões de facto são mui- to numerosas, não só pela rejeição dos valores da família e do matrimónio, mas sobretudo pelo fac- to de a cerimónia do casamento ser sentida como um luxo, pelas condições sociais, de modo que a miséria material impele a viver uniões de facto ».321 Mas « é preciso enfrentar todas estas situações de forma construtiva, procurando transformá-las em oportunidades de caminho para a plenitude do matrimónio e da família à luz do Evangelho. Tra- ta-se de acolhê-las e acompanhá-las com paciência e delicadeza ».322 Foi o que Jesus fez com a Sama- ritana (cf. Jo 4, 1-26): dirigiu uma palavra ao seu desejo de amor verdadeiro, para a libertar de tudo o que obscurecia a sua vida e guiá-la para a alegria plena do Evangelho.

 

  1. Nesta linha, São João Paulo II propunha a chamada « lei da gradualidade », ciente de que o

 

320 Cf. ibidem.

321 Relatio Synodi 2014, 42.

322 Ibid., 43.


 

ser humano « conhece, ama e cumpre o bem mo- ral segundo diversas etapas de crescimento».323 Não é uma « gradualidade da lei », mas uma gra- dualidade no exercício prudencial dos atos livres em sujeitos que não estão em condições de com- preender, apreciar ou praticar plenamente as exi- gências objectivas da lei. Com efeito, também a lei é dom de Deus, que indica o caminho; um dom para todos sem excepção, que se pode viver com a força da graça, embora cada ser humano

« avance gradualmente com a progressiva inte- gração dos dons de Deus e das exigências do seu amor definitivo e absoluto em toda a vida pessoal e social ».324

 

o discernimento dAs situAções chAmAdAs

« irregulAres »325

  1. O Sínodo referiu-se a diferentes situações de fragilidade ou imperfeição. A este respeito, que- ro lembrar aqui uma coisa que pretendi propor, com clareza, a toda a Igreja para não nos equi- vocarmos no caminho: « Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e (...) O caminho da Igreja, desde o Concílio de Je- rusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. (...) O caminho da Igreja é o de não condenar eternamente ninguém;

 

323 Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 34: AAS 74 (1982), 123.

324 Ibid., 9: o. c., 90.

325  Cf. FrAncisco, Catequese (24 de Junho de 2015): L’Os- servatore Romano (ed. semanal portuguesa de 25/VI/2015), 12.


 

derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero (...). Porque a caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita ».326 Por isso, « temos de evitar juízos que não tenham em conta a comple- xidade das diversas situações e é necessário estar atentos ao modo em que as pessoas vivem e so- frem por causa da sua condição ».327

 

  1. Trata-se de integrar a todos, deve-se aju- dar cada um a encontrar a sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que se sinta objecto duma misericórdia « imerecida, in- condicional e gratuita ». Ninguém pode ser con- denado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho! Não me refiro só aos divorciados que vivem numa nova união, mas a todos seja qual for a situação em que se Obvia- mente, se alguém ostenta um pecado objectivo como se fizesse parte do ideal cristão ou quer impor algo diferente do que a Igreja ensina, não pode pretender dar catequese ou pregar e, neste sentido, há algo que o separa da comunidade (cf. Mt 18, 17). Precisa de voltar a ouvir o anúncio do Evangelho e o convite à conversão. Mas, mesmo para esta pessoa, pode haver alguma maneira de participar na vida da comunidade, quer em tare- fas sociais, quer em reuniões de oração, quer na forma que lhe possa sugerir a sua própria inicia-

 

326  idem, Homilia na Eucaristia celebrada com os novos Cardeais

(15 de Fevereiro de 2015): AAS 107 (2015), 257.

327 Relatio Finalis 2015, 51.


 

tiva discernida juntamente com o pastor. Quanto ao modo de tratar as várias situações chamadas

« irregulares », os Padres sinodais chegaram a um consenso geral que eu sustento: « Na abordagem pastoral das pessoas que contraíram matrimónio civil, que são divorciadas novamente casadas, ou que simplesmente convivem, compete à Igreja revelar-lhes a pedagogia divina da graça nas suas vidas e ajudá-las a alcançar a plenitude do desíg- nio que Deus tem para elas »,328 sempre possível com a força do Espírito Santo.

 

  1. Os divorciados que vivem numa nova união, por exemplo, podem encontrar-se em si- tuações muito diferentes, que não devem ser catalogadas ou encerradas em afirmações dema- siado rígidas, sem deixar espaço para um adequa- do discernimento pessoal e pastoral. Uma coi- sa é uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, cons- ciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em cons- ciência, que se cairia em novas A Igreja reconhece a existência de situações em que « o homem e a mulher, por motivos sérios – como, por exemplo, a educação dos filhos – não se po- dem separar ».329 Há também o caso daqueles que

 

328 Relatio Synodi 2014, 25.

329 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 84: AAS 74 (1982), 186. Nestas situações, muitos, conhecendo e aceitando a possibilidade de conviver


 

fizeram grandes esforços para salvar o primeiro matrimónio e sofreram um abandono injusto, ou o caso daqueles que « contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às ve- zes, estão subjectivamente certos em consciên- cia de que o precedente matrimónio, irremedia- velmente destruído, nunca tinha sido válido».330 Coisa diferente, porém, é uma nova união que vem dum divórcio recente, com todas as conse- quências de sofrimento e confusão que afetam os filhos e famílias inteiras, ou a situação de alguém que faltou repetidamente aos seus compromissos familiares. Deve ficar claro que este não é o ideal que o Evangelho propõe para o matrimónio e  a família. Os Padres sinodais afirmaram que o discernimento dos pastores sempre se deve fazer

« distinguindo adequadamente »,331 com um olhar que discirna bem as situações.332 Sabemos que não existem « receitas simples ».333

 

  1. Acolho as considerações de muitos Pa- dres sinodais que quiseram afirmar que « os bap-

 

« como irmão e irmã » que a Igreja lhes oferece, assinalam que, se faltam algumas expressões de intimidade, « não raro se põe em risco a fidelidade e se compromete o bem da prole » (conc. ecum. VAt. ii, Const. past. sobre a Igreja no mundo contempo- râneo Gaudium et spes, 51).

330 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 84: AAS 74 (1982), 186.

331 Relatio Synodi 2014, 26.

332 Cf. ibid., 45.

333 bento xVi, Discurso no VII Encontro Mundial das Fa- mílias, em Milão (2 de Junho de 2012), resposta 5: Insegnamenti, 8/1 (2012), 691; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 09/VI/2012), 11.


 

tizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente devem ser mais integrados na comu- nidade cristã sob as diferentes formas possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo. A lógica da integração é a chave do seu acompanhamen- to pastoral, para saberem que não só pertencem ao Corpo de Cristo que é a Igreja, mas podem também ter disso mesmo uma experiência feliz e fecunda. São baptizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama neles dons e carismas para o bem de todos. A sua participação pode ex- primir-se em diferentes serviços eclesiais, sendo necessário, por isso, discernir quais das diferen- tes formas de exclusão actualmente praticadas em âmbito litúrgico, pastoral, educativo e insti- tucional possam ser superadas. Não só não de- vem sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como membros vivos da Igreja, sentin- do-a como uma mãe que sempre os acolhe, cuida afectuosamente deles e encoraja-os no caminho da vida e do Evangelho. Esta integração é neces- sária também para o cuidado e a educação cristã dos seus filhos, que devem ser considerados o elemento mais importante ».334

 

  1. Se se tiver em conta a variedade inume- rável de situações concretas, como as que men- cionamos antes, é compreensível que se não de- via esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os É possível apenas um novo

 

334 Relatio Finalis 2015, 84.


 

encorajamento a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que de- veria reconhecer: uma vez que « o grau de res- ponsabilidade não é igual em todos os casos »,335 as consequências ou efeitos duma norma não de- vem necessariamente ser sempre os mesmos.336 Os sacerdotes têm o dever de « acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discerni- mento segundo a doutrina da Igreja e as orienta- ções do bispo. Neste processo, será útil fazer um exame de consciência, através de momentos de reflexão e arrependimento. Os divorciados nova- mente casados deveriam questionar-se como se comportaram com os seus filhos, quando a união conjugal entrou em crise; se houve tentativas de reconciliação; como é a situação do cônjuge abandonado; que consequências têm a nova rela- ção sobre o resto da família e a comunidade dos fiéis; que exemplo oferece ela aos jovens que se devem preparar para o matrimónio. Uma refle- xão sincera pode reforçar a confiança na miseri- córdia de Deus que não é negada a ninguém ».337 Trata-se dum itinerário de acompanhamento e discernimento que « orienta estes fiéis na tomada de consciência da sua situação diante de Deus. O diálogo com o sacerdote, no foro interno, con-

 

335 Ibid., 51.

336 E também não devem ser sempre os mesmos na aplicação da disciplina sacramental, dado que o discernimento pode reconhecer que, numa situação particular, não há culpa grave. Neste caso, aplica-se o que afirmei noutro documento: cf. Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 44.47: AAS 105 (2013), 1038-1040.

337 Relatio Finalis 2015, 85.


 

corre para a formação dum juízo correto sobre aquilo que dificulta a possibilidade duma partici- pação mais plena na vida da Igreja e sobre os pas- sos que a podem favorecer e fazer crescer. Uma vez que na própria lei não há gradualidade (cf. Fa- miliaris consortio, 34), este discernimento não po- derá jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja. Para que isto aconteça, devem garantir-se as necessá- rias condições de humildade, privacidade, amor à Igreja e à sua doutrina, na busca sincera da vonta- de de Deus e no desejo de chegar a uma resposta mais perfeita à mesma ».338 Estas atitudes são fun- damentais para evitar o grave risco de mensagens equivocadas, como a ideia de que algum sacerdo- te pode conceder rapidamente « excepções », ou de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores. Quando uma pessoa responsável e discreta, que não pretende colocar os seus desejos acima do bem comum da Igreja, se encontra com um pastor que sabe reconhecer a seriedade da questão que tem entre mãos, evita-se o risco de que um certo discerni- mento leve a pensar que a Igreja sustente uma moral dupla.

 

As circunstânciAs AtenuAntes no discernimento pAstorAl

  1. Para se entender adequadamente por que é possível e necessário um discernimento espe-

 

338 Ibid., 86.


 

cial nalgumas situações chamadas « irregulares », há uma questão que sempre se deve ter em conta, para nunca se pensar que se pretende diminuir as exigências do Evangelho. A Igreja possui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes. Por isso, já não é pos- sível dizer que todos os que estão numa situação chamada « irregular » vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante. Os limi- tes não dependem simplesmente dum eventual desconhecimento da norma. Uma pessoa, mes- mo conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em compreender « os valores ineren- tes à norma »339 ou pode encontrar-se em con- dições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa. Como bem se expressaram os Padres sinodais, « pode haver factores que limi- tam a capacidade de decisão ».340 E São Tomás de Aquino reconhecia que alguém pode ter a graça e a caridade, mas é incapaz de exercitar bem al- guma das virtudes,341 pelo que, embora possua todas as virtudes morais infusas, não manifesta com clareza a existência de alguma delas, porque a prática exterior dessa virtude está dificultada:

« Diz-se que alguns Santos não têm certas virtu- des, enquanto experimentam dificuldade em pô-

 

339 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 33: AAS 74 (1982), 121.

340 Relatio Finalis 2015, 51.

341 Cf. Summa theologiae I-II, q. 65, art. 3, ad. 2; De malo, q. 2, a. 2.


 

-las em acto, embora tenham os hábitos de todas as virtudes ».342

  1. A propósito destes condicionamentos, o Catecismo da Igreja Católica exprime-se de maneira categórica: « A imputabilidade e responsabilidade dum acto podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e ou- tros factores psíquicos ou sociais ».343 E, noutro parágrafo, refere-se novamente às circunstâncias que atenuam a responsabilidade moral, nomea- damente « a imaturidade afectiva, a força de há- bitos contraídos, o estado de angústia e outros fatores psíquicos ou sociais ».344 Por esta razão, um juízo negativo sobre uma situação objetiva não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa 345 No con- texto destas convicções, considero muito apro- priado aquilo que muitos Padres sinodais quise- ram sustentar: « Em determinadas circunstâncias,

 

342 Summa theologiae I-II, q. 65, art. 3, ad. 3.

343 N. 1735.

344  N.  2352;  cf.  congr.  pArA  A  doutrinA  dA  Fé,  Decl. sobre a eutanásia Iura et bona (5 de Maio de 1980), II: AAS 72 (1980), 546. João Paulo II, ao criticar algumas leituras da catego- ria « opção fundamental », reconhecia que « podem, sem dúvida, verificar-se situações muito complexas e obscuras sob o ponto de vista psicológico, que influem na imputabilidade subjectiva do pecador » [Exort. ap. Reconciliatio et paenitentia (2 de Dezembro de 1984), 17: AAS 77 (1985), 223].

345  Cf.  pont.  conselho  pArA  os  textos  legislAtiVos, Decl. sobre A admissibilidade à Sagrada Comunhão dos divorciados que voltaram a casar (24 de Junho de 2000), 2.


 

as pessoas encontram grandes dificuldades para agir de maneira diferente. (...) O discernimento pastoral, embora tendo em conta a consciência rectamente formada das pessoas, deve ocupar-

-se destas situações. As próprias consequências dos actos praticados não são necessariamente as mesmas em todos os casos».346

 

  1. A partir do reconhecimento do peso dos condicionamentos concretos, podemos acres- centar que a consciência das pessoas deve ser melhor incorporada na práxis da Igreja em algu- mas situações que não realizam objetivamente a nossa conceção do matrimónio. É claro que de- vemos incentivar o amadurecimento duma cons- ciência esclarecida, formada e acompanhada pelo discernimento responsável e sério do pastor, e propor uma confiança cada vez maior na graça. Mas esta consciência pode reconhecer não só que uma situação não corresponde objectivamente à proposta geral do Evangelho, mas reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança moral que esta é a doação que o próprio Deus está a pedir no meio da complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente o ideal Em todo  o caso, lembremo-

-nos que este discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas etapas de

 

346 Relatio Finalis 2015, 85.


 

crescimento e novas decisões que permitam rea- lizar o ideal de forma mais completa.

 

As normAs e o discernimento

  1. É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para dis- cernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta dum ser Peço enca- recidamente que nos lembremos sempre de algo que ensina São Tomás de Aquino e aprendamos a assimilá-lo no discernimento pastoral: « Embora nos princípios gerais tenhamos o carácter neces- sário, todavia à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbito da acção, a verdade ou a rectidão prática não são iguais em todas as aplicações particula- res, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a rectidão é idêntica nas próprias acções, esta não é igualmente conhecida por todos. (...) Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação ».347 É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem transcurar, mas, na sua formu- lação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado

 

347 Summa theologiae I-II, q. 94, art. 4.


 

à categoria de norma. Isto não só geraria uma casuística insuportável, mas também colocaria em risco os valores que se devem preservar com particular cuidado.348

 

  1. Por isso, um pastor não pode sentir-se sa- tisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações « irregulares », como se fos- sem pedras que se atiram contra a vida das pes- soas. É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamen- tos da Igreja « para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficia- lidade, os casos difíceis e as famílias feridas ».349Na mesma linha se pronunciou a Comissão Teo- lógica Internacional: « A lei natural não pode ser apresentada como um conjunto já constituído de regras que se impõem a priori ao sujeito moral, mas é uma fonte de inspiração objectiva para o seu processo, eminentemente pessoal, de tomada de decisão ».350 Por causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objectiva de pe-

 

348 Referindo-se ao conhecimento geral da norma e ao conhecimento particular do discernimento prático, São Tomás chega a dizer que, « se existir apenas um dos dois conhecimen- tos, é preferível que este seja o conhecimento da realidade par- ticular porque está mais próximo do agir » [Sententia libri Ethico- rum, VI, 6 (ed. Leonina, t. 47, 354)].

349  FrAncisco, Discurso no encerramento da XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9.

350 À procura duma ética universal: um novo olhar sobre a lei na- tural (2009), 59.


 

cado – mas subjectivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja.351 O discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites. Por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus. Lembremo-nos de que « um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades».352 A pastoral concreta dos ministros e das comuni- dades não pode deixar de incorporar esta reali- dade.

 

  1. Em toda e qualquer circunstância, perante quem tenha dificuldade em viver plenamente a lei de Deus, deve ressoar o convite a percorrer a via caritatis. A caridade fraterna é a primeira lei dos cristãos (cf. Jo 15, 12; Gal 5, 14). Não esqueçamos

 

351 Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, « aos sacerdotes, lembro que o confes- sionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia  do  Senhor »  [FrAncisco,  Exort.  ap.  Evangelii  gau- dium (24 de Novembro de 2013), 44: AAS 105 (2013), 1038]. E de igual modo assinalo que a Eucaristia « não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos » [Ibid., 47: o. c., 1039].

352 Ibid., 44: o. c., 1038-1039.


 

a promessa feita na Sagrada Escritura: « Acima de tudo, mantende entre vós uma intensa carida- de, porque o amor cobre a multidão de pecados » (1 Ped 4, 8); « redime o teu pecado pela justiça; e as tuas iniquidades, pela piedade para com os in- felizes » (Dn 4, 24); « a água apaga o fogo ardente, e a esmola expia o pecado » (Sir 3, 30). O mesmo ensina também Santo Agostinho: « Tal como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fos- se uma fonte que nos é oferecida e da qual pode- mos tomar a água para extinguir o incêndio ».353

 

A lógicA dA misericórdiA pAstorAl

  1. Para evitar qualquer interpretação tenden- ciosa, lembro que, de modo algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do matrimónio, o projecto de Deus em toda a sua grandeza: « É preciso encorajar os jovens baptizados para não hesitarem perante a riqueza que o sacramento do matrimónio oferece aos seus projectos de amor, com a força do apoio que recebem da graça de Cristo e da possibilidade de participar plenamen-

 

353  De catechizandis rudibus, I, 14, 22: PL 40, 327; cf. FrAn- cisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 193: AAS 105 (2013), 1101.


 

te na vida da Igreja ».354 A tibieza, qualquer forma de relativismo ou um excessivo respeito na hora de propor o sacramento seriam uma falta de fide- lidade ao Evangelho e também uma falta de amor da Igreja pelos próprios jovens. A compreensão pelas situações excepcionais não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser humano. Hoje, mais importante do que uma pastoral dos falimentos é o esforço pastoral para consolidar os matrimónios e assim evitar as rupturas.

 

  1. Todavia, da nossa consciência do peso das circunstâncias atenuantes – psicológicas, históricas e mesmo biológicas – conclui-se que,

« sem diminuir o valor do ideal evangélico, é pre- ciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia », dando lugar à « misericórdia do Senhor que nos incen- tiva a praticar o bem possível ».355 Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objectiva,

« não renuncia ao bem possível, ainda que corra

 

354 Relatio Synodi 2014, 26.

355  FrAncisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novem- bro de 2013), 44: AAS 105 (2013), 1038.


 

o risco de sujar-se com a lama da estrada ».356 Os pastores, que propõem aos fiéis o ideal pleno do Evangelho e a doutrina da Igreja, devem ajudá-

-los também a assumir a lógica da compaixão pe- las pessoas frágeis e evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes. O próprio Evan- gelho exige que não julguemos nem condenemos (cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37). Jesus « espera que renuncie- mos a procurar aqueles abrigos pessoais ou co- munitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente».357

 

  1. É providencial que estas reflexões sejam desenvolvidas no contexto de um Ano Jubilar dedicado à misericórdia, porque, também peran- te as mais diversas situações que afectam a famí- lia, « a Igreja tem a missão de anunciar a miseri- córdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada A Esposa de Cristo assu- me o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém ».358Ela bem sabe que o próprio Jesus Se apresenta

 

356 Ibid., 45: o. c., 1039.

357 Ibid., 270: o. c., 1128.

358 idem, Bula Misericordiae Vultus (11 de Abril de 2015), 12: AAS 107 (2015), 407.


 

como Pastor de cem ovelhas, não de noventa e nove; e quer tê-las todas. A partir desta consciên- cia, tornar-se-á possível que « a todos, crentes e afastados, possa chegar o bálsamo da misericór- dia como sinal do Reino de Deus já presente no meio de nós ».359

 

  1. Não podemos esquecer que « a misericór- dia não é apenas o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus verda- deiros filhos. Em suma, somos chamados a vi- ver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada misericórdia para connosco».360Não é uma pro- posta romântica nem uma resposta débil ao amor de Deus, que sempre quer promover as pessoas, porque « a arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua acção pastoral de- veria estar envolvida pela ternura com que se di- rige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia ».361 É verdade que, às vezes, « agi- mos como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa ».362

 

  1. O ensino da teologia moral não deveria deixar de assumir estas considerações, porque,

 

359 Ibid., 5: o. c., 402.

360 Ibid., 9: o. c., 405.

361 Ibid., 10: o. c., 406.

362 idem, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 47: AAS 105 (2013), 1040.


 

embora seja verdade que é preciso ter cuidado com a integralidade da doutrina moral da Igreja, todavia sempre se deve pôr um cuidado especial em evidenciar e encorajar os valores mais altos e centrais do Evangelho,363 particularmente o pri- mado da caridade como resposta à iniciativa gra- tuita do amor de Deus. Às vezes custa-nos muito dar lugar, na pastoral, ao amor incondicional de Deus.364 Pomos tantas condições à misericórdia que a esvaziamos de sentido concreto e real sig- nificado, e esta é a pior maneira de aguar o Evan- gelho. É verdade, por exemplo, que a misericór- dia não exclui a justiça e a verdade, mas, antes de tudo, temos de dizer que a misericórdia é a ple- nitude da justiça e a manifestação mais luminosa da verdade de Deus. Por isso, convém sempre considerar « inadequada qualquer concepção teo- lógica que, em última instância, ponha em dúvida a própria omnipotência de Deus e, especialmen- te, a sua misericórdia ».365

 

363 Cf. ibid., 36-37: o. c., 1035.

364 Talvez por escrúpulo, oculto por detrás dum grande desejo de fidelidade à verdade, alguns sacerdotes exigem aos penitentes um propósito de emenda claro sem sombra alguma, fazendo com que a misericórdia se esfume debaixo da busca duma justiça supostamente pura. Por isso vale a pena recordar o ensinamento de São João Paulo II quando afirmou que a pre- visibilidade duma nova queda « não prejudica a autenticidade do propósito » [Carta ao Card. William W. Baum por ocasião do cur- so sobre o foro interno, organizado pela Penitenciaria Apostólica (22 de Março de 1996), 5: Insegnamenti, 19/1 (1996), 589; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 30/III/1996), 3].

365  comissão  teológicA  internAcionAl,  A  esperança  de

salvação para as crianças que morrem sem baptismo (19 de Abril de 2007), 2.


 

  1. Isto fornece-nos um quadro e um clima que nos impedem de desenvolver uma moral fria de escritório quando nos ocupamos dos temas mais delicados, situando-nos, antes, no contex- to dum discernimento pastoral cheio de amor misericordioso, que sempre se inclina para com- preender, perdoar, acompanhar, esperar e sobre- tudo integrar. Esta é a lógica que deve prevale- cer na Igreja, para « fazer a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais ».366 Convido os fiéis, que vivem situações complexas, a aproximar-se com confiança para falar com os seus pastores ou com leigos que vivem entregues ao Nem sempre encontrarão neles uma confirmação das próprias ideias ou desejos, mas seguramente re- ceberão uma luz que lhes permita compreender melhor o que está a acontecer e poderão desco- brir um caminho de amadurecimento pessoal. E convido os pastores a escutar, com carinho e serenidade, com o desejo sincero de entrar no coração do drama das pessoas e compreender o seu ponto de vista, para ajudá-las a viver melhor e reconhecer o seu lugar na Igreja.

 

 

 

 

 

 

 

366  FrAncisco,  Bula  Misericordiae  Vultus  (11  de  Abril  de 2015), 15: AAS 107 (2015), 409.


 


 

 

 

 

 

CAPÍTULO IX

espirituAlidAde  conJugAl e  FAmiliAr

 

  1. O amor assume matizes diferentes, segun- do o estado de vida a que cada um foi Várias décadas atrás, o Concílio Vaticano II, a propósito do apostolado dos leigos, punha em realce a espiritualidade que brota da vida familiar. Dizia que a espiritualidade dos leigos « deverá as- sumir características especiais » próprias, nomea- damente a partir do « estado do matrimónio e da família »,367 e que os cuidados familiares não de- vem ser alheios ao seu estilo de vida espiritual.368Por isso, vale a pena deter-nos brevemente a des- crever algumas características fundamentais des- ta espiritualidade específica que se desenrola no dinamismo das relações da vida familiar.

 

espirituAlidAde dA comunhão sobrenAturAl

  1. Sempre falamos da inabitação de Deus no coração da pessoa que vive na sua graça. Hoje podemos dizer também que a Trindade está pre- sente no templo da comunhão As-

 

367 Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuo- sitatem, 4.

368 Cf. ibidem.


 

sim como habita nos louvores do seu povo (cf. Sl 22/21, 4), assim também vive intimamente no amor conjugal que Lhe dá glória.

 

  1. A presença do Senhor habita na família real e concreta, com todos os seus sofrimen- tos, lutas, alegrias e propósitos diários. Quando se vive em família, é difícil fingir e mentir, não podemos mostrar uma máscara. Se o amor ani- ma esta autenticidade, o Senhor reina nela com a sua alegria e a sua paz. A espiritualidade do amor familiar é feita de milhares de gestos reais e concretos. Deus tem a sua própria habitação nesta variedade de dons e encontros que fazem maturar a comunhão. Esta dedicação une « o hu- mano e o divino »,369 porque está cheia do amor de Em suma, a espiritualidade matrimonial é uma espiritualidade do vínculo habitado pelo amor divino.

 

  1. A comunhão familiar bem vivida é um verdadeiro caminho de santificação na vida or- dinária e de crescimento místico, um meio para a união íntima com Com efeito, as exigên- cias fraternas e comunitárias da vida em família são uma ocasião para abrir cada vez mais o co- ração, e isto torna possível um encontro sempre mais pleno com o Senhor. Lê-se, na Palavra de Deus, que « quem tem ódio ao seu irmão está nas trevas » (1 Jo 2, 11), « permanece na morte » (1 Jo

 

369  conc. ecum. VAt. ii, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 49.


 

3, 14) e « não chegou a conhecer a Deus» (1 Jo 4, 8). O meu antecessor, Bento XVI, disse que « o fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus»370 e que, fundamental- mente, o amor é a única luz que « ilumina inces- santemente um mundo às escuras».371 Somente

« se nos amarmos uns aos outros, Deus perma- nece em nós e o seu amor chegou à perfeição em nós » (1 Jo 4, 12). Dado que « a pessoa humana tem uma inata e estrutural dimensão social »372 e

« a primeira e originária expressão da dimensão social da pessoa é o casal e a família »,373 a espiri- tualidade encarna-se na comunhão familiar. Por isso, aqueles que têm desejos espirituais profun- dos não devem sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas é um per- curso de que o Senhor Se serve para os levar às alturas da união mística.

 

unidos em orAção À luZ dA páscoA

  1. Se a família consegue concentrar-se em Cristo, Ele unifica e ilumina toda a vida Os sofrimentos e os problemas são vividos em comunhão com a Cruz do Senhor e, abraçados a Ele, pode-se suportar os piores momentos. Nos dias amargos da família, há uma união com Jesus

 

370 Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 16: AAS 98 (2006), 230.

371 Ibid., 39: o. c., 250.

372 João pAulo ii, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici

(30 de Dezembro de 1988), 40: AAS 81 (1989), 468.

373 Ibidem.


 

abandonado, que pode evitar uma ruptura. As famílias alcançam pouco a pouco, « com a graça do Espírito Santo, a sua santidade através da vida matrimonial, participando também no mistério da cruz de Cristo, que transforma as dificulda- des e os sofrimentos em oferta de amor ».374 Por outro lado, os momentos de alegria, o descanso ou a festa, e mesmo a sexualidade são sentidos como uma participação na vida plena da sua Res- surreição. Os cônjuges moldam, com vários ges- tos quotidianos, este « espaço teologal, onde se pode experimentar a presença mística do Senhor ressuscitado ».375

 

  1. A oração em família é um meio privile- giado para exprimir e reforçar esta fé pascal.376Podem-se encontrar alguns minutos cada dia para estar unidos na presença do Senhor vivo, dizer-Lhe as coisas que os preocupam, rezar pe- las necessidades familiares, orar por alguém que está a atravessar um momento difícil, pedir-Lhe ajuda para amar, dar-Lhe graças pela vida e as coisas boas, suplicar à Virgem que os proteja com o seu manto de Mãe. Com palavras simples, este momento de oração pode fazer muito bem à família. As várias expressões da piedade popular são um tesouro de espiritualidade para muitas fa- mílias. O caminho comunitário de oração atinge

 

374 Relatio Finalis 2015, 87.

375 João pAulo ii, Exort. ap. pós-sinodal Vita consecrata

(25 de Marco de 1996), 42: AAS 88 (1996), 416.

376 Cf. Relatio Finalis 2015, 87.


 

o seu ponto culminante ao participarem juntos na Eucaristia, sobretudo no contexto do descan- so dominical. Jesus bate à porta da família, para partilhar com ela a Ceia Eucarística (cf. Ap 3, 20). Aqui, os esposos podem voltar incessantemente a selar a aliança pascal que os uniu e reflecte a Aliança que Deus selou com a humanidade na Cruz.377 A Eucaristia é o sacramento da Nova Aliança, em que se actualiza a acção redentora de Cristo (cf. Lc 22, 20). Constatamos, assim, os laços íntimos que existem entre a vida conjugal e a Eucaristia.378 O alimento da Eucaristia é força e estímulo para viver cada dia a aliança matrimo- nial como « igreja doméstica ».379

 

espirituAlidAde do Amor exclusiVo e libertAdor

  1. No matrimónio, vive-se também o senti- do de pertencer completamente a uma única pes- soa. Os esposos assumem o desafio e o anseio de envelhecer e gastar-se juntos, e assim reflectem a fidelidade de Esta firme decisão, que mar- ca um estilo de vida, é uma « exigência interior do pacto de amor conjugal »,380 porque, « quem não

 

377 Cf. João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 57: AAS 74 (1982), 150.

378 Não esqueçamos que a Aliança de Deus com o seu povo se exprime como um desposório (cf. Ez 16, 8.60; Is 62, 5; Os 2, 21-22), e a nova Aliança é apresentada também como um matrimónio (cf. Ap 19, 7; 21, 2; Ef 5, 25).

379  conc. ecum. VAt. ii, Const. dogm. sobre a Igreja Lu- men gentium, 11.

380 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 11: AAS 74 (1982), 93.


 

se decide a amar para sempre, é difícil que possa amar deveras um só dia ».381 Mas isto não teria significado espiritual, se fosse apenas uma lei vi- vida com resignação. É uma pertença do coração, lá onde só Deus vê (cf. Mt 5, 28). Cada manhã, quando se levanta, o cônjuge renova diante de Deus esta decisão de fidelidade, suceda o que su- ceder ao longo do dia. E cada um, quando vai dormir, espera levantar-se para continuar esta aventura, confiando na ajuda do Senhor. Assim, cada cônjuge é para o outro sinal e instrumento da proximidade do Senhor, que não nos deixa so- zinhos: « Eu estarei sempre convosco, até ao fim dos tempos» (Mt 28, 20).

 

  1. Há um ponto em que o amor do casal al- cança a máxima libertação e se torna um espa- ço de sã autonomia: quando cada um descobre que o outro não é seu, mas tem um proprietário muito mais importante, o seu único Nin- guém pode pretender possuir a intimidade mais pessoal e secreta da pessoa amada, e só Ele pode ocupar o centro da sua vida. Ao mesmo tempo, o princípio do realismo espiritual faz com que o cônjuge não pretenda que o outro satisfaça com- pletamente as suas exigências. É preciso que o caminho espiritual de cada um – como justamen- te indicava Dietrich Bonhoeffer – o ajude a « de-

 

381 idem, Homilia na Eucaristia celebrada para as famílias, em Córdova/Argentina (8 de Abril de 1987), 4: Insegnamenti 10/1 (1987), 1161-1162; L´Osservatore Romano (ed. semanal portugue- sa de 08/V/1987), 6.


 

siludir-se » do outro,382 a deixar de esperar dessa pessoa aquilo que é próprio apenas do amor de Deus. Isto exige um despojamento interior. O espaço exclusivo, que cada um dos cônjuges re- serva para a sua relação pessoal com Deus, não só permite curar as feridas da convivência, mas possibilita também encontrar no amor de Deus o sentido da própria existência. Temos necessidade de invocar cada dia a acção do Espírito, para que esta liberdade interior seja possível.

 

espirituAlidAde dA solicitude, dA consolAção e do estímulo

  1. « Os esposos cristãos são cooperadores da graça e testemunhas da fé um para com o outro, para com os filhos e demais familiares ».383 Deus convida-os a gerar e a Por isso mesmo, a família « foi desde sempre o “hospital” mais pró- ximo ».384 Prestemo-nos cuidados, apoiemo-nos e estimulemo-nos mutuamente, e vivamos tudo isto como parte da nossa espiritualidade familiar. A vida em casal é uma participação na obra fe- cunda de Deus, e cada um é para o outro uma permanente provocação do Espírito. O amor de Deus exprime-se « através das palavras vivas e concretas com que o homem e a mulher se de-

 

382 Cf. Gemeinsames Leben (Munique 1973), 18.

383  conc. ecum. VAt. ii, Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, 11.

384  FrAncisco, Catequese (10 de Junho de 2015): L’Osserva- tore Romano (ed. semanal portuguesa de 11/VI/2015), 16.


 

claram o seu amor conjugal ».385 Assim, os dois são entre si reflexos do amor divino, que con- forta com a palavra, o olhar, a ajuda, a carícia, o abraço. Por isso, « querer formar uma família é ter a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem de sonhar com Ele, a coragem de cons- truir com Ele, a coragem de unir-se a Ele nesta história de construir um mundo onde ninguém se sinta só ».386

 

  1. Toda a vida da família é um « pastoreio » Cada um, cuidadosamente, dese- nha e escreve na vida do outro: « A nossa carta sois vós, uma carta escrita nos nossos corações (...) não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo» (2 Cor 3, 2-3). Cada um é um « pescador de homens » (Lc 5, 10) que, em nome de Jesus, lança as redes (cf. Lc 5, 5) para os outros, ou um lavrador que trabalha nesta terra fresca que são os seus entes queridos, incentivando o me- lhor deles. A fecundidade matrimonial implica promover, porque « amar uma pessoa é esperar dela algo indefinível e imprevisível; e é, ao mes- mo tempo, proporcionar-lhe de alguma forma os meios para satisfazer tal expectativa ».387 Isto é um culto a Deus, pois foi Ele que semeou muitas

 

385 João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de No- vembro de 1981), 12: AAS 74 (1982), 93.

386  FrAncisco, Discurso na Festa das Famílias e Vigília de Ora- ção, em Filadélfia (26 de Setembro de 2015): L’Osservatore Roma- no (ed. semanal portuguesa de 08/X/2015), 2.

387  gAbriel mArcel, Homo viator: prolégomènes à une méta- physique de l´espérance (Paris 1944), 63.


 

coisas boas nos outros, com a esperança de que as façamos crescer.

 

  1. É uma experiência espiritual profunda contemplar cada ente querido com os olhos de Deus e reconhecer Cristo nele. Isto exige uma disponibilidade gratuita que permita apreciar a sua É possível estar plenamente pre- sente diante do outro, se uma pessoa se entre- ga gratuitamente, esquecendo tudo o que existe em redor. Assim a pessoa amada merece toda a atenção. Jesus era um modelo, porque, quando alguém se aproximava para falar com Ele, fixava nele o seu olhar, olhava com amor (cf. Mc 10, 21). Ninguém se sentia transcurado na sua pre- sença, pois as suas palavras e gestos eram expres- são desta pergunta: « Que queres que te faça? » (Mc 10, 51). Vive-se isto na vida quotidiana da família. Nela, recordamos que a pessoa que vive connosco merece tudo, pois tem uma dignidade infinita por ser objecto do amor imenso do Pai. Assim floresce a ternura, capaz de « suscitar no outro a alegria de sentir-se amado. Exprime-se, de modo particular, no debruçar-se com delicada atenção sobre os limites do outro, especialmente quando aparecem de forma evidente ».388

 

  1. Sob o impulso do Espírito, o núcleo fa- miliar não só acolhe a vida gerando-a no próprio seio, mas abre-se também, sai de si para derramar

 

388 Relatio Finalis 2015, 88.


 

o seu bem nos outros, para cuidar deles e pro- curar a sua felicidade. Esta abertura exprime-se particularmente na hospitalidade,389 que a Pala- vra de Deus encoraja de forma sugestiva: « Não vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos » (Heb 13, 2). Quando a família acolhe e sai ao encontro dos outros, especialmente dos pobres e abando- nados, é « símbolo, testemunho, participação da maternidade da Igreja ».390 Na realidade, o amor social, reflexo da Trindade, é o que unifica o sen- tido espiritual da família e a sua missão fora de si mesma, porque torna presente o querigma com todas as suas exigências comunitárias. A família vive a sua espiritualidade própria, sendo ao mes- mo tempo uma igreja doméstica e uma célula viva para transformar o mundo.391

 

* * *

 

  1. As palavras do Mestre (cf. Mt 22, 30) e as de São Paulo (cf. 1 Cor 7, 29-31) sobre o ma- trimónio estão inseridas – não por acaso – na di- mensão última e definitiva da nossa existência, que precisamos de Assim, os esposos poderão reconhecer o sentido do caminho que estão a percorrer. Com efeito, como recordamos

 

389 Cf. João pAulo ii, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 44: AAS 74 (1982), 136.

390 Ibid., 49: o. c., 141.

391 Sobre os aspectos sociais da família, cf. pont. conse- lho « JustiçA e pAZ », Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 248- 254.


 

várias vezes nesta Exortação, nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada duma vez para sempre, mas requer um progressivo amadu- recimento da sua capacidade de amar. Há um ape- lo constante que provém da comunhão plena da Trindade, da união estupenda entre Cristo e a sua Igreja, daquela comunidade tão bela que é a famí- lia de Nazaré e da fraternidade sem mácula que existe entre os Santos do céu. Mas contemplar a plenitude que ainda não alcançámos permite-nos também relativizar o percurso histórico que es- tamos a fazer como família, para deixar de pre- tender das relações interpessoais uma perfeição, uma pureza de intenções e uma coerência que só poderemos encontrar no Reino definitivo. Além disso, impede-nos de julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande fragilidade. Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver neste estímulo constante. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! Aquilo que se nos promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida.

 

Oração à Sagrada Família

Jesus, Maria e José,

em Vós contemplamos

o esplendor do verdadeiro amor, confiantes, a Vós nos consagramos.


 

Sagrada Família de Nazaré, tornai também as nossas famílias

lugares de comunhão e cenáculos de oração, autênticas escolas do Evangelho

e pequenas igrejas domésticas.

 

Sagrada Família de Nazaré,

que nunca mais haja nas famílias

episódios de violência, de fechamento e divisão; e quem tiver sido ferido ou escandalizado

seja rapidamente consolado e curado.

 

Sagrada Família de Nazaré,

fazei que todos nos tornemos conscientes do carácter sagrado e inviolável da família, da sua beleza no projecto de Deus.

 

Jesus, Maria e José,

ouvi-nos e acolhei a nossa súplica. Ámen.

 

Dado em Roma, junto de São Pedro, no Jubileu Extraordinário da Misericórdia, a 19 de Março – solenidade de São José – do ano 2016, quarto do meu Pontificado.

 

 
   

 


 

ÍNDICE

 

 

 

A AlegriA do Amor [1-7]  .  .  .  .  .  .  .  .        3

cApítulo i

À luZ dA pAlAVrA

tu e A  tuA esposA [9-13].   .   .   .   .   .   . .  .   10

os teus Filhos como rebentos de oliVeirA

[14-18]  .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   . .  .        13

um rAsto de soFrimento e sAngue [19-22]   .    17

o Fruto do teu próprio trAbAlho [23-26]   .   19

A ternurA do AbrAço [27-30]   .   .   .   . .  .     21

cApítulo ii

A reAlidAde e os desAFios dAs FAmíliAs

A situAção ActuAl dA FAmíliA [32-49]   .   .   .     25

Alguns desAFios [50-57]                                   .   .   .   .   .   .  .  .            42

cApítulo iii

o olhAr Fixo em Jesus: A VocAção dA FAmíliA

Jesus recuperA e reAliZA plenAmente o proJecto diVino [61-66]  .   .   .   .   .   .   .            52

A FAmíliA nos documentos dA igreJA [67-70]    56

o sAcrAmento do mAtrimónio [71-75]              59

sementes do Verbo e situAções imperFeitAs

[76-79]  .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   . .  .        63


 

A trAnsmissão dA VidA e A educAção dos Fil-

hos [80-85]  .   .   .   .   .   .   .   .   .   . .  .        66 A FAmíliA e A igreJA [86-88]  .   .   .   .   . .  .   71

 

cApítulo iV

 

o Amor no mAtrimónio

o nosso Amor quotidiAno [90] .   .   . .  .         73

Paciência [91-92] .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .      74

Atitude de serviço [93-94] .   .   .   .   .  .   .  .  76

Curando a inveja [95-96]  .  .  .  .  .  .  .  .  77  Sem ser arrogante nem se orgulhar [97-98] . . 78 Amabilidade [99-100]  .   .   .   .   .   .   .   .   .     80

Desprendimento [101-102].  .   .   .   .   .   .   .   81 Sem violência interior [103-104]  .  .  .  .  .   83 Perdão [105-108] .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .        84

Alegrar-se com os outros [109-110] .   .   .   .   .     86

Tudo desculpa [111-113] .  .  .  .  .  .  .  .      87

Confia [114-115] .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .  89

Espera [116-117].   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   90

Tudo suporta [118-119]   .   .   .   .   .   .   .   .  91

crescer nA cAridAde conJugAl [120-122].   .        93 A vida toda, tudo em comum [123-125] . . . 95 Alegria e beleza [126-130]   .  .  .  .  .  .   .      98

Casar-se por amor [131-132]................................... 101

Amor que se manifesta e cresce [133-135]   .   .   103

O diálogo [136-141].............................................. 106

Amor ApAixonAdo [142]................................... 109

O mundo das emoções [143-146]................................ 110

Deus ama a alegria dos seus filhos [147-149] . 112 A dimensão erótica do amor [150-152] . . . 114 Violência e manipulação [153-157]       116

Matrimónio e virgindade [158-162]............................. 120

A trAnsFormAção do Amor [163-164]   .   .   . 125

 

266


 

 

cApítulo V

 

o Amor que se tornA Fecundo

Acolher umA  noVA VidA [166-167]................ 129

O amor na expectativa própria da gravidez

[168-171]  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .      131

Amor de mãe e de pai [172-177]................................. 134

FecundidAde AlArgAdA [178-184] ................... 140

Distinguir o Corpo [185-186]................................... 145

A VidA  nA FAmíliA em sentido Amplo [187]   .     147

Ser filho [188-190]....................................... 147

Os idosos [191-193]..................................... 149

Ser irmão [194-195]..................................... 152

Um coração grande [196-198].................................. 153

 

cApítulo Vi

 

AlgumAs perspectiVAs pAstorAis

AnunciAr   hoJe   o  eVAngelho   dA   FAmíliA

[200-204]  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .      157

guiAr os noiVos no cAminho de prepArAção

pArA o mAtrimónio [205-211] ...................... 161

A preparação da celebração [212-216]......................... 167

AcompAnhAmento nos primeiros Anos dA

VidA mAtrimoniAl [217-222] ......................... 171

Alguns recursos [223-230]............................ 177

iluminAr crises, AngústiAs e diFiculdAdes [231]     183

O desafio das crises [232-238].................................. 183

Velhas feridas [239-240]............................... 188

Acompanhar depois das rupturas e dos divórcios

[241-246]  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .      190

Algumas situações complexas [247-252] . . .                   195

quAndo A morte crAVA o seu Aguilhão

[253-258]  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .      199


 

 

cApítulo Vii

 

reForçAr A educAção dos Filhos

onde estão os Filhos? [260-262].............. 205

A FormAção éticA dos Filhos [263-267]  .  . 207 o VAlor dA sAnção como estímulo [268-270] 210

reAlismo pAciente [271-273] ......................... 212

A VidA  FAmiliAr  como  contexto  educAtiVo

[274-279]  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .      214

sim À educAção sexuAl [280-286] ................... 219

trAnsmitir A Fé [287-290] ............................... 224

 

cApítulo Viii

 

AcompAnhAr, discernir e integrAr A FrAgilidAde

A grAduAlidAde nA pAstorAl [293-295] .   .      230 o discernimento dAs situAções chAmAdAs

« irregulAres » [296-300]......................... 233

As circunstânciAs AtenuAntes no discerni-

mento pAstorAl [301-303] .......................... 239

As normAs e o discernimento [304-306] .  .         243 A lógicA dA misericórdiA pAstorAl [307-312]                                                                             246

 

cApítulo ix

espirituAlidAde conJugAl e FAmiliAr

espirituAlidAde dA comunhão sobrenAturAl

[314-316]  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .      253

unidos em orAção À luZ dA páscoA [317-318]          255

espirituAlidAde do Amor exclusiVo e liber-

tAdor [319-320] ............................................ 257

espirituAlidAde dA solicitude, dA conso-

lAção e do estímulo [321-324] ................ 259

Oração à Sagrada Família [325]................................ 263

 

 

 

 

 

 

 

TIPOGRAFIA VATICANA

            Com a Matrimoniologia contribuo para a santidade do amor e do casamento, com a esperança de que a sexologia um dia siga estes caminhos como forma de amor no casamento e nas relações estáveis, deixando de compreender o casamento e o amor apenas como expressão sexual ou do sexo e da filogênese, indo além, para a espiritualidade nas relações afetivas.

 

 

Osny Mattanó Júnior

Londrina, 05 de janeiro de 2019.